segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

A passagem do ano

Estamos prestes a entrar em mais um ano, passar do dia 31 de dezembro para o dia 1 de janeiro. Umas transição festiva que onde se auguram coisas boas e desejos positivos para o ano que se avizinha. Há várias formas de viver estes dias, em casa na companhia da lareira, de amigos ou familiares ou ar livre com garrafa de champanhe em punho e as passas no bolso prestes a serem contadas e retiradas quando soam as doze badaladas e começa um novo ano.
O articular de pensamentos e ideias nesta transição esvoaçam entre trabalho e saúde, para nós e para os que que nos estão mais próximos. A linearidade das ideias transvassam na importância da sua realização para que possamos entrar com o pé direito e de forma positiva no ano novo.

terça-feira, 13 de novembro de 2012

Sensações estranhas

O prazer da escrita é-me algo intrínseco que eu não consigo descrever, funciono muito por impulsos e motivações. Lamento não ter consigo manter a regularidade na edição de textos, tendo decorrido um interregno de cerca de duas semanas.
 
Nos últimos tempos tenho convivido com sensações estranhas que eu muitas vezes não consigo descrever ou perceber. Há poucos dias tivemos a visita da chanceler alemã que veio averiguar o estado da nação portuguesa. A História diz-nos que algures em séculos passados houve países que foram colonizados hoje não se impregna o mesmo termo no entanto as consequências são similares. Vivemos numa sociedade que está a ferver. Pergunto quando será que irá explodir? Será que isso vai acontecer? As consequências são boas ou más?

As sensações estranhas que eu tenho convivido prendem-se com o estado do meu país mas também devido às convivências com uma sociedade que não olha para o lado, cansada e focada apenas no trabalho, ou quando não o têm nas preocupações do desemprego. Refiro-me ao cansaço, quando vejo pessoas a trabalhar desalmadamente, com objetivo de ganhar um mísero ordenado que em nada recompensa o valor das tarefas desempenhadas.

Com a crise as pessoas perderam esperança e deixaram de ter objetivos a longo prazo pensando apenas no dia de amanhã, focando-se apenas nos planos a curto prazo. O risco de perder o emprego retrai e induz as pessoas ao silêncio engolindo muitas injustiças. Todas estas contingências são aproveitadas pelo Estado Português e capitalista que reina na Europa e no Mundo.

Eu induzido num ritmo louco de trabalho vejo-me por vezes com receio de onde eu irei parar. É alucinante o ritmo de trabalho no ensino privado. Nota-se diariamente uma competitividade latente e eu dou por mim naturalmente a ter que ir aos meus limites.
Questiono até quando aguentarão os portugueses os sacrifícios que estão a ser sujeitos

A neurociência ao serviço da aprendizagem

Poucos conseguirão ficar indiferentes quando se fala em cérebro. Aliás, os vários crânios “trepanados” ainda no período da Pré-História, encontrados, por exemplo, em múltiplos locais da Europa, parecem constituir um indício de que o interesse do Homem pela compreensão do cérebro (leia-se, pela compreensão do “eu” mais profundo…) o acompanha desde as suas mais recônditas origens.
            Ao longo das últimas décadas têm sido verdadeiramente surpreendentes os avanços verificados neste domínio, destacando-se os trabalhos de vários neurologistas, como sejam, apenas a título meramente exemplificativo, António Damásio ou a sua esposa Hanna Damásio.
            As implicações dessas recém-descobertas começam agora a chegar, paulatinamente, ao domínio da Educação. De um modo simplificado, imagine-
-se o alcance de conclusões deste género: a consciência começa por ser um sentimento; as emoções desempenham um papel fundamental no processo de tomada de decisões e na própria regulação homeostática; o “cérebro” não cristaliza e à medida que aprendemos ele parece reajustar-se. Outras duas conclusões de um estudo dinamizado pelo português Paulo Ventura, em articulação com investigadores internacionais, seguem nesta mesma linha: “Aprender a ler, mesmo na idade adulta, é uma experiência tão importante para o cérebro que este concentra todas as suas forças neste acto e muda para conseguir realizar esta actividade. […] O que acontece é que quando se aprende a ler existe uma reciclagem neuronal: o cérebro aproveita as áreas que realizam funções semelhantes à leitura para poder ler” (Cf. http://brissoslino.wordpress.com/2010/11/12/aprender-a-ler-muda-o-cerebro/). Consequentemente, um estímulo a valer e quase tudo pode acontecer…
            É na linha do que temos vindo a escrever que a neurociência, aqui entendida enquanto estudo científico do cérebro e do sistema nervoso, pode desempenhar um papel importante, sendo a este propósito inevitável falar da mais recente obra do investigador Rafael Silva Pereira – Programa de Neurociência: Intervenção em Leitura e Escrita. Se existem mesmo livros que não temos o direito de guardar só para nós, este é, em nosso entender, um deles. E é, afinal, este desejo de partilha que motiva este breve artigo.
            A referida obra, que complementa o anterior Programa de Intervenção e Reeducação em Dislexia e Disortografia, constitui, segundo a nossa perspectiva, uma das poderosas ferramentas de auxílio para todos aqueles que, diariamente, têm a nobre, mas extenuante, missão de ajudar a ler e escrever todas as crianças, mas, sobretudo, aquelas que registam dificuldades de aprendizagem.      O trabalho dado à estampa em 2011 começa por apresentar, em traços gerais, uma fundamentação teórica, que procura assim introduzir o leitor menos familiarizado nestas temáticas. Depois, o professor/investigador propõe um conjunto de exercícios lúdicos que “comprovadamente ajudam o aluno a melhorar a sua capacidade de memória, atenção, linguagem, raciocínio lógico e visão espacial” (Cf. Rafael Silva Pereira, 2011, p. 9). Por fim, são apresentados exercícios que enformam um programa de desenvolvimento da consciência fonológica (engloba todos os níveis de consciência da estrutura sonora das palavras), através da exploração da “motricidade fina” e da estimulação multissensorial. Pena é, na nossa opinião, que o autor não tenha optado por direccionar o seu programa para um grupo etário específico, pois talvez assim conseguisse maximizar os efeitos da intervenção. Como refere a neurocientista Sally Shaywitz: “o que funciona melhor para uma criança de 6 anos de idade não irá ser a abordagem mais útil para um sujeito de 16 anos” (Cf. Vencer a dislexia: Como dar resposta às perturbações da leitura em qualquer fase da vida, 1.ª edição, 2008, Porto, Porto Editora, p. 189).
            Num mundo em que os ponteiros do relógio parecem avançar a um ritmo alucinante, em que quase tudo se decide à velocidade da luz, é verdadeiramente dramático ver o sacrifício que uma criança disléxica, com uma inteligência (pelo menos) média, sublinhe-se, faz para conseguir, quando consegue, alinhavar uma palavra ou “simplesmente” lê-la. E, recorde-se, ao contrário do que durante muito tempo se pensou, a dislexia (cujo diagnóstico é de natureza clínica) existe mesmo, tem na sua raiz um factor neurobiológico, não se resolve com a simples passagem dos anos e tem consequências em todo o processo de desenvolvimento (Cf. a este propósito Sally Shaywitz, M. D., ob. cit., pp. 13-82). Programas de intervenção pedagógica como aquele que Rafael Silva Pereira nos confia podem fazer toda a diferença no futuro da vida de muitos meninos, desde que, importa reforçá-lo, sejam trabalhados em estreita articulação entre os vários agentes (família, professores…). Programas deste género poderão, afinal, fazer toda a diferença entre a inclusão efectiva e a exclusão.
            Claro está que a Educação Especial desempenha aqui um papel determinante, desde que, também importa reforçá-lo, não seja apenas percepcionada como mais um apoio às áreas académicas tradicionais, mas se assuma como um agente de intervenção face às dificuldades específicas dos alunos e, naturalmente, tendo em consideração os avanços científicos registados. Daí a necessidade de investigar constantemente (uma tarefa difícil face à actual malha burocrática do sistema educativo) e de, entre outras áreas prementes, existirem pontes mais regulares entre as Universidades e as Escolas do Ensino Básico e Secundário ou mesmo entre os docentes, sobretudo, de ciclos diferentes (a efectiva articulação vertical ainda está a dar os primeiros passos…).
            Portanto, a metodologia correcta pode fazer toda a diferença, até porque “diferentes formas de aprender implicam necessariamente diferentes formas de ensinar”. Claro está que, se pretendemos efectivamente uma Escola inclusiva, promovendo uma filosofia de trabalho em conjunto, onde todos os alunos, considerados (ou não) como tendo Necessidades Educativas Especiais, podem ganhar, teremos de perceber que, numa fase inicial, isso implicará forçosamente estar disponível para investir mais. Trata-se, no entanto, de custos que serão recuperados a médio e longo prazo; ao passo que as perdas, essas sim, serão dificilmente recuperáveis.
            A este propósito, o Diário Insular de 7 de Novembro de 2012 trazia a seguinte notícia: “44 por cento dos jovens açorianos entre os 18 e os 24 anos não ultrapassa o 9.º ano de escolaridade” (p. 4). Poderíamos, ainda, fazer uso de outros números igualmente dramáticos, como sejam a taxa de abandono escolar no Ensino Secundário ou de reprovações, a percentagem de analfabetismo (já para não falar de iliteracia) ou os resultados nos Exames Nacionais… Todos os números nos demonstram que é urgente intervir e… precocemente, com equipas inter e multidisciplinares, científica e pedagogicamente sustentadas. E é aqui, mais uma vez, que também os serviços especializados das Escolas, nomeadamente no que diz respeito à Educação Especial, poderão fazer toda a diferença, numa área onde, apesar das inegáveis portas que se abriram depois da revolução de 25 de Abril de 1974, ainda existe um longo caminho a percorrer… Daí a importância de conhecer e dar a conhecer, para sensibilizar e intervir.                                                                                                            
                                                                                                           Renato Nunes    
                                                                                                        

sábado, 27 de outubro de 2012

Assinatura do contrato.

“O nosso Mundo”!! O texto publicado no blogue no dia 23 de Janeiro de 2010, que  me catapultou para egos mais elevados, escritas mais exigentes e públicos  mais diversos. No hiato temporal, que nos separa da data da publicação do texto atrás mencionado passaram-se muitos acontecimentos com relevância internacional, nacional e pessoal.

Apercebo-me nesta passagem pelo ensino privado, que a convulsão de tarefas me leva a pensar que para conseguirmos cumprir tudo com o rigor e exigência pedida, temos de gostar realmente daquilo que fazemos e ter uma organização e um rigor acima da média. Constatações minhas que me levam por vezes a interrogações e dúvidas.

Nos dias de hoje não há empregos para a vida, por isso a duração dos contratos é indiferente e os despedimentos ocorrem independentemente das características do contrato. Em consequência das contingências da minha vida habituei-me a dar um passo de cada vez e a ir de encontro a objetivos realizáveis. Ontem assinei com a empresa onde trabalho, um contrato sem termo algo que eu nunca conseguido antes. Apesar de não passar tudo de uma simples designação, podendo eu ser despedido, quando eles assim o entenderem, para mim não deixa de ser uma conquista.

sábado, 20 de outubro de 2012

Manuel António Pina

Em homanagem ao grande poeta Manuel António Pina Falecido ontem após uma intensa lutra contra o cancro, transcrevo um poema transcrito no blogue da minha cunhada Ana Lúcia Cruz (http://bloguedalucia.blogspot.pt/). Um poema lindo sobre um cão:

"O cão tinha um nome
por que o chamávamos
e por que respondia,

mas qual seria
o seu nome
só o cão obscuramente sabia.

Olhava-nos com uns olhos que havia
nos seus olhos
mas não se via o que ele via,

nem se nos via e nos reconecia
de algum modo essencial
que nos escapava

ou se via o que de nós passava
e não o que permanecia,
o mistério que nos esclarecia.

Onde nós não alcançávamos
dentro de nós
.o cão ía.

E aí adormecia
dum sono sem remorso
e sem melancolia,

Então sonhava
o sonho sólido em que existia
E não compreendia

Umdia chamávamos pelo cão e ele não estava
onde sempre estivera:
na sua exclusiva vida.
Alguém o chamara por outro nome,
um absoluto nome,
de muito longe.

E o cão partira
ao encontro desse nome
como chegara: só.

E a mãe enterrrou-o
sob a buganvilia
dizendo
´É a vida...."

Manuel António Pina

sábado, 13 de outubro de 2012

O fim da classe média

Parafrasenado Renato Nunes no seu post de 27 de Setembro, vivemos dias muitos estranhos. Ao longo da vida tenho-me apercebido-me de uma sociedade que devido às contingências sociais se vira cada vez mais para ela própria. O instinto de sobrevivência impera quando nos é imposta a lei do mais forte.
 
Já poucas coisas me surpreendem, no entanto há algo que me faz confusão e magoa, a desumanização que reina no mercado laboral onde os valores deixaram de existir. Esta semana soube do despedimento de um conhecido meu, que com vários anos dedicados ao ensino, foi depedido por simplesmente não assinar um papel que lhe imporia a necessidade de trabalhar mais e receber menos.
 
 Como será possível o Estado ficar indiferente aos despedimentos massivos, situações de pessoas desempregadas que dependiam do salário para a muito custo dar de comer aos seus. É triste e desolador aperceber-me de tudo isto, ver dia após dia ser aniquilado o que a muito custo foi conquistado após o 25 de Abril, o direito de ter uma classe média.

sábado, 6 de outubro de 2012

O dia 4 de Outubro

O passado dia 4 de Outubro, véspera do último feriado da República e do dia Mundial do professor, foi um dia especial para a minha briosa, que com o Hapoel Tel- Aviv, vi  pela primeira vez jogar na Europa. Independentemente do resultado desolador, pois deixámos escapar a vitória nos últimos instantes, foi algo que certamente não me sairá da memória. Coisas minhas!!!
 
 
No dia seguinte recebi a boa notícia, o dia 4 de Outubro, foi também a data  do nascimento da filha de um grande amigo meu de infância. Caramba eles merecem, há quantos anos esperavam este momento. Numa situação destas nasçam muitos filhos, Portugal bem precisa. Parabéns aos pais babados.

domingo, 30 de setembro de 2012

Mudanças sociais

Os dias esvoaçam a um ritmo infernal. Nos tempos mortos, poucas horas que me mantenho acordado, com pensamentos que divirjam do cerne da questão, a preparação das aulas. Os tempos para ver televisão são muito reduzidos e tento casualmente através da rádio escutar as diabruras do nosso tempo e perceber sinteticamente as convulsões que se passam à minha volta. Em Espanha, esta semana, mais uma vez houve manifestações, a que naturalmente se irão juntar outras. Começo a perceber que as manifestações e os insultos contra estas políticas deixam progressivamente de ser consideradas notícias.

Da varanda da minha casa na Venda do Pinheiro vou observando diariamente as rotinas dos meus vizinhos e dos transeuntes que diariamente se deslocam para trabalhar em Lisboa. Não é fácil a vida nos dias que correm. Ouvimos várias vezes falar das dificuldades da vida de outrora, onde a maior parte da população era pobre vivia daquilo que a terra dava. Atualmente as pessoas, grande parte com cursos superiores, ou com o 12º ano, vêm muitas dificuldades para conseguir ter um emprego, arrastando-se indefinidamente nas casas dos pais.
Em poucos anos a sociedade mudou assim como as expectativas das pessoas, no entanto atualmente como há  50 anos observa-se algo em comum, a falta de esperança e expectativas no futuro o que está a conduzir tal como aconteceu em meados do século passado, à emigração.

terça-feira, 25 de setembro de 2012

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

É só malandros!

A sacanice do momento, agora pela voz do obscuro e inenerrável ministro (?) Miguel Macedo.

A cigarra e a formiga...

La bise des marchés et la cigale athénienne

par Pierre-Antoine Delhommais


Jean de La Fontaine avait donc tout compris, tout analysé, tout deviné, même la crise financière grecque. La bise des marchés est venue et la cigale athénienne s'est retrouvée fort dépourvue. La fourmi allemande n'étant pas prêteuse, c'est là son moindre défaut, il a fallu que Dominique Strauss-Kahn et Jean-Claude Trichet interviennent pour forcer sa nature et convaincre Mme Merkel de la nécessité d'agir au plus vite. Ce sont pas moins de 25 milliards d'euros que Berlin va, selon toute vraisemblance, débourser pour sauver la Grèce, peut-être pas de la famine, mais au moins de la faillite. Cela fait cher le morceau de vermisseau.

Puisqu'on est dans les fables et les morales, restons-y. La crise grecque, c'est d'abord le triomphe de l'orthodoxie économique. De la gestion budgétaire rigoureuse, de l'obsession de la compétitivité et des excédents commerciaux à l'allemande sur les déficits et le gaspillage des deniers publics à la grecque. Lesquels, selon M. Papandréou lui-même, "au lieu d'être utilisés pour le développement ont fréquemment servi à acheter des maisons, des voitures, et à vivre dans le farniente".

On ne résiste pas au plaisir de paraphraser une nouvelle fois le footballeur anglais Gary Lineker : "L'euro, c'est une monnaie qui se partage à seize, et à la fin, c'est toujours l'Allemagne qui gagne."

Sauf que là, dans l'affaire grecque, tout le monde est perdant. A commencer par l'Allemagne, vilipendée pour son égoïsme, critiquée pour ses tergiversations... et qui n'est pas certaine du tout de récupérer un jour ses 25 milliards. Le président de l'Institut de conjoncture allemand IFO, Hans-Werner Sinn, est persuadé que non. Les Grecs, publiquement humiliés, contraints de faire la manche et promis à des années d'austérité. La zone euro, qui a affiché ses divisions et révélé ses gravissimes défauts de structure et de conception. Les banques françaises, qui ont démontré leur imprudence en se gavant d'emprunts grecs (52 milliards d'euros). Jean-Claude Trichet qui, après avoir exclu catégoriquement que le FMI puisse intervenir, a dû s'y résoudre, ce qui a fait gentiment dire à Mme Lagarde "qu'il n'y a que les imbéciles qui ne changent pas d'avis". L'Elysée, aussi, persuadé dans un premier temps que la crise grecque avait du bon puisqu'elle permettait de faire baisser l'euro et de relancer les exportations et qui n'a rien fait pour arrêter à temps la gangrène. Les dirigeants politiques, qui ont prouvé leur impuissance face aux mouvements d'humeur des marchés financiers. Les contribuables européens, enfin, qui seront sollicités tôt ou tard pour payer in fine un prêt à la Grèce que les Etats eux-mêmes financent par l'emprunt. On ne fait que creuser des trous et des déficits pour en boucher d'autres.
Après tout, l'affaire grecque ne serait pas si grave si on pouvait se dire qu'elle est terminée. Les 120 milliards qu'Athènes va toucher devraient certes lui éviter une crise de liquidités et un défaut de paiement. Ils ne serviront en revanche pas à grand-chose pour résoudre sa crise de compétitivité. Il faut tout changer de "fond en comble", reconnaît M. Papandréou, faire en trois ans ce qui n'a pas été réalisé en trente ans. Passer de la fabrication d'huile d'olive à celle de produits industriels performants, transformer les Cyclades en Silicon Valley, ce n'est pas gagné. Et ce qui vaut pour la Grèce vaut aussi pour le Portugal et l'Espagne. Comment ces pays feront-ils pour retrouver de la croissance sans pouvoir dévaluer tout en pratiquant des politiques de rigueur extrême ? Une fois n'est pas coutume, les agences de notation semblent avoir fait preuve de simple bon sens en abaissant cette semaine la note de ces trois pays. Au lieu de cela, on préfère dire, comme l'Elysée, qu'elles ont une attitude "criminelle". Le politiquement correct ne fait pas bon ménage avec l'économiquement sérieux.

C'est aussi au nom du politiquement correct que personne, il y a quinze ans, n'avait voulu prêter attention aux dirigeants de la Bundesbank qui expliquaient, un peu abruptement, certes, qu'il était dangereux - pour eux comme pour leurs partenaires - que les pays d'Europe du Sud rejoignent trop tôt la zone euro. A l'époque, c'était tellement facile, les gnomes de Francfort furent accusés de racisme monétaire. Ce ne sont sûrement pas aujourd'hui les Grecs, durablement promis à vivre l'horreur économique, qui diraient que ces avertissements et ces réserves étaient injustifiés.

En ces temps si sombres, il convient de dire un grand merci au Parti socialiste français, dont la lecture des 23 pages du document de travail pour un "Nouveau modèle économique, social et écologique" nous a fait passer un bon moment. Et bien fait rire. On a préféré en rire pour ne pas en pleurer. Eric Le Boucher, dans un point de vue publié sur le site Slate, a trouvé ce texte "consternant ". Comme nous. Il évoque le retour des années 1970. C'est cela. Une sorte de programme commun mais nappé de sauce verdâtre, un cocktail de dirigisme et d'écolo-boboisme, Georges Marchais revisité par Nicolas Hulot.

A bas l'entreprise et vive l'Etat, qui seul garantira le bien-être économique pour tous ! Dans ce monde idéal vers lequel le PS promet de nous conduire en 2012, tout sera juste : le commerce (le juste-échange remplacera le libre-échange), les salaires, la fiscalité locale, la rémunération des agriculteurs, les services publics, etc. L'industrie sera forte, cela va de soi, et le consommateur sera remplacé par un "consom'acteur". Tout sera fait pour les jeunes mais aussi pour les retraités - à 60 ans - "parce qu'il y a une vie après le travail qui mérite d'être vécue pleinement".

Le plus inquiétant, dans ces 23 pages, ce n'est pas tant l'absence de mesures concrètes et détaillées pour édifier ce paradis, ce n'est pas tant la stratégie d'évitement sur des sujets essentiels (la gouvernance mondiale, la concurrence de la Chine, la compétitivité, la dette publique), ce n'est pas tant le manque total d'inventivité et la mièvrerie générale du discours et son côté "Oui-Oui fait de l'économie". Non, c'est l'impression de grand renfermement qui le parcourt de bout en bout. De peur du monde extérieur, de grand repli sur soi, une volonté de se réfugier dans une sorte de cocooning économique. "Collectivement, une société sous pression est une société stérile, incapable de créer, d'innover." Tout est dit.

transcrito, com a devida vénia, de Le Monde de hoje

sábado, 22 de setembro de 2012

Uma sociedade egoísta

Sento-me na secretária e organizo os papéis e o grande número de tarefas que me esperam para poder enfrentar mais um dia. Tento pensar em mim embora por vezes não seja fácil. A experiência adquirida ao longo dos três anos de serviço como docente é lisonjeira, para fazer face às adversidades da minha atividade profissional, no setor privado. Muitas vezes sinto-me perdido embora na prática tenha sempre de passar uma mensagem contrária. A liberalização do mercado de trabalho está progressivamente a destruir a dignidade humana, tonando esta uma sociedade, onde apenas os fortes triunfam, os mais fracos sentem cada vez mais dificuldades e são muitas vezes marginalizados.

Entristece-me perceber que não posso ter uma casa minha, pois o meu emprego deslocaliza-se geograficamente de um modo aleatório sem que eu possa controlar, ou saber o lar que estarei a habitar daqui por uns meses. Atualmente e felizmente posso dizer que tenho um quarto e um trabalho, no entanto interrogo-me sobre como será o meu dia de amanhã. Apercebo-me através de mensagens governativas que me referem ”não há empregos para a vida” e por isso não devo pensar a longo prazo. É o que eu subentendo desta expressão. Será que nesta sociedade dita democrática eu já não posso pensar no meu futuro e na minha felicidade e tenho de me subjugar a um sistema onde o trabalhador tem de se sujeitar às regras, onde funciona tudo para conseguir espezinhar quem é mais fraco. Não foi este o futuro que eu pensei para mim, sinto que com estas medidas de austeridade estão a tornar os portugueses mais tristes, pois sentem que estão a destruir algo que nos é querido, o nosso Portugal.

Na passada sexta feira, no meu local de trabalho, o colégio, apercebi-me de um olhar triste de um menino que eu estava a acompanhar numa atividade extra horário letivo. Decidi-me sentar um bocadinho ao pé dele e perguntar-lhe o que tinha. Ele respondeu-me que os pais chegavam tarde a casa e ficavam horas em frente ao computador e não davam atenção aos filhos. Depois daquela expressão não tive capacidade para dizer mais nada, apetecia-me dar-lhe um abraço e reconforta-lo. Depois desta experiência fiquei ainda mais convicto do que sinto e me faz ter força para continuar a trabalhar num ritmo louco, para não ter um reconhecimento no final. Vejo que as nossas crianças, que não têm culpa dos erros cometidos pela nossa sociedade, onde o trabalho asfixia e retira o tempo para pessoas que gostamos e nos merecem atenção. No final de um dia exaustivo de trabalho, a melhor recompensa é sentir, que por mais pequeno que seja o nosso contributo, ajudámos a transformar uma expressão num sorriso.

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Que tempos tão estranhos!

“Dos vivos herdam-se palavras. Dos mortos, coisas”. Ora, foram as palavras que o meu Amigo me confidenciou, antes que a vida nos apartasse para ilhas diferentes, que agora me forçam a este reencontro com o papel. O meu Amigo, lembrar-se-á, disse-me: “A morte de um progenitor tira-nos a terra debaixo dos pés. Voam as referências. E sentimo-nos terrivelmente sós, como nunca tínhamos ficado. Mas à medida que o tempo passa, há uma presença que nos acompanha, só que de outro modo, numa outra dimensão. Efectivamente, dentro do caixão já não segue ninguém que tenhamos conhecido. Ainda assim, depois dele passar nunca mais somos os mesmos”.
            Na altura, quando ouvi aquela confissão – ainda por cima vinda de alguém que já viveu mais de meio século e cuidou dos pais precisamente até aos últimos suspiros – a emoção tolheu-me de tal modo a garganta que mal consegui responder. E foi ridículo, precisamente ridículo o que lhe disse. Na altura, o meu Amigo, seguindo a velha máxima de Santo Agostinho (Profligar os erros, amando os Homens), limitou-se a sorrir. Era um sorriso de quem se revia no espelho do tempo.
            Foi na última semana, a meio de um exame médico um pouco mais complicado, que dei por mim a caminhar ao lado daquelas palavras, que agora recuperei: “Nunca mais somos os mesmos”. De facto, como a vida nos obriga a relativizar o sofrimento, quando pensamos no momento em que o mito da nossa fundação se esvai por entre os nossos próprios dedos, sem que nada possamos fazer. Por isso, hoje, que mais não fosse, precisava dizer-lhe que, mesmo que seja uma construção da mente, só por si essa mesma sensação de companhia (que me garantiu sentir) é positiva. Que mais não seja, é uma ilusão que nos alimenta e protege. Afinal, no sofrimento atroz é que percebemos onde nos agarramos.
            O meu Amigo, concordará, vivemos tempos estranhos. Impera o paradigma dos iluminados. Pensa-se em criar cérebros e vai daí arquitecta-se um choque tecnológico, que traz estádios, escolas (que mais parecem arranha-céus saídos de Hollywood) apetrechadas de poderosos quadros interactivos e demais tecnologia que nos empresta uns ares de progresso. Depois, quanto a livros, poucos se vêem. Quanto a conteúdo é melhor nem falar. De resto, os professores ficam caros e contratam-se cada vez menos. A massa crítica não se cultiva, mas a aparência fica garantida. Aliás, não é ela que tanto nos interessou ao longo dos tempos? Poupa-se em farelos, mas desperdiça-se a farinha. As prioridades sempre nos atrapalharam…
            Impera em Portugal o paradigma dos iluminados. Afinal, quase todos são licenciados e vêem coisas que o mais reles dos mortais não pode sequer imaginar. Muitos deles obtiveram os graus pelas Relvas desse país fora; sempre à distância, com a garantia das equivalências que só a experiência da politiquice garante. Quanto aos outros, obcecados em pagar as contas – é a creche dos putos, é o raio da água e da luz, é o empréstimo da casa ou do carro… – esses reles mortais nem imaginam o duro caminho de quem se tornou Doutor graças à subida na pirâmide, sempre de cabeça reverencialmente curvada.
            O meu Amigo, bem sabe, impera em Portugal o paradigma dos iluminados. Nas Escolas desenvolvem-se competências já quase sem falar em conteúdos. Os professores, que cada vez mais têm formação em tudo menos na área que leccionam, são avaliados, numa época em que poucos alunos são verdadeiramente filtrados. Para os gaiatos que não querem trabalhar, criam-se alternativas, que de alternativa têm efectivamente muito pouco. Até lhe chamam cursos profissionais, mas, em traços gerais, as disciplinas são as mesmas, apenas com nomes diferentes. E quanto a oficinas devidamente apetrechadas ou laboratórios; bom, falar nisso… só se for para desenvolver a competência da imaginação. E eu, desculpem-me, estou farto de tanta (in)competência.
            Impera em Portugal o paradigma dos iluminados. A distância entre quem governa e quem é governado é cada vez maior. E o diálogo parece impossível. De um lado, o pragmatismo cínico dos gabinetes, do outro, a realidade. E até a língua materna, com tanto acordo e tanta meta, se enrola na boca cada vez mais indecisa. E falar e escrever é cada vez mais uma tarefa de doutores das competências; novos rostos “científicos” do esoterismo. Afinal, de tão complicados, raramente são questionados e não raro até são premiados. É transversal a todos os domínios do que somos, como a corrupção, embora insistamos em travesti-la de uma certa forma, perversa, hipócrita, de legalidade (vejam-se, a propósito, os concursos públicos que para aí grassam…).
            Impera em Portugal o paradigma dos iluminados. Vivemos adiados. Os empréstimos são a cortisona que nos mantém de pé. Mas não há injecção que nos valha por muito tempo. E o problema é que ainda há filhos e netos deste país, que legitimamente sonham com um futuro. Que merecem um futuro, pelo menos como aquele que herdámos. E o problema, raio, é ver que este país não tem futuro. O problema, raio, é que parecemos um cemitério, com os muros a crescer para cima de nós a cada dia que passa.
            Impera em Portugal o paradigma dos iluminados. Eles dizem: – Faça-se luz! E a luz faz-se, dentro das limusinas onde são transportados; enquanto os faróis iluminam o país cada vez mais desocupado, já adormecido nas trevas da fome.
            Impera em Portugal o paradigma dos iluminados. Só mesmo uma mente superior para acreditar (ah, fé) que o crescimento se obtém baixando os salários dos trabalhadores, pois (ah, almas estrondosas) os preços dos produtos irão descer e será mais fácil comprá-los. Os mesmos produtos que nós, sublinhe-se, não produzimos mas importamos! Rousseau acreditava na bondade natural do Homem. Nós passámos a acreditar na bondade, filantropia natural, do mercado ou dos países que nos abastecem!
            Impera em Portugal o paradigma dos iluminados. Mas será que nenhum deles se ilumina e percebe que, neste momento, arriscamos a autodestruição? Será que ninguém que nos governa percebe que um país, à semelhança de cada Homem, também tem mitos fundadores; e que quando os perdemos nunca mais somos os mesmos? Quando será que eles percebem que o país, mais do que nunca, precisa de exemplos concretos de ética, verticalidade, transparência e trabalho?
            Nestes tempos estranhos, talvez seja chegado o momento de, enquanto cidadãos, nas mais variadas áreas da vida, deixarmos de “comer” tanto com os olhos e passarmos antes a valorizar mais o conteúdo. Não dará tanto nas vistas, é certo, mas os resultados, a médio e longo prazo, serão bem diferentes.
            Neste país, onde a força das ideias, despidas da sua dramaticidade/barroquismo, é praticamente nula, tal como a memória colectiva; em que quase todos falam, mas poucos ouvem e escasseiam as pontes entre aqueles que já se encaminham para o fim da vida e aqueles que agora estão a aprender a voar, talvez seja chegada a hora de perguntar: não estará já esgotado este modelo de recrutamento caciquista que persiste em perpetuar-se entre aqueles que almejam governar-nos? Não nos faria falta uma Escola de Ciências Políticas, por onde todos os nossos governantes deveriam obrigatoriamente passar, antes de se submeterem ao escrutínio popular? Não será altura de acabar com as mordomias de tantas fundações, de tantos políticos (“Passos Coelho com 31 veículos do Estado ao seu serviço”, Público, 16 de Setembro)? Será que, como imaginou Saramago na sua obra Ensaio sobre a lucidez (2004), não é chegado o momento dos cidadãos utilizarem o poder do voto em branco, enquanto arma decisiva da Democracia? Será que a própria lógica interna que preside ao funcionamento do Parlamento não poderia ser aperfeiçoada? Não estará na altura de todos conhecermos os programas dos partidos políticos que sonham alcançar a governação, para que depois possamos exigir o seu efectivo cumprimento? Será que não é chegada a altura de acabar com esses cursos do Ensino Básico e Secundário alicerçados nas competências e cultivar as disciplinas estruturais? Estude-se História, Filosofia, trabalhem-se obras, escreva-se, reflicta-se, partilhem-se ideias… e a cidadania aparecerá por acréscimo, de um modo muito mais eficaz…
            A Democracia não é, nunca poderá ser, um modelo acabado. Nestes tempos tão estranhos e tão difíceis, em que parecemos todos confundidos, ludibriados com tanto folclore, valerá a pena recordar que corremos seriamente o risco de, enquanto civilização, perder irremediavelmente os nossos mitos fundadores. O que somos, nomeadamente a liberdade que ainda vamos experimentando, apesar de tudo, radica na Democracia. O seu aperfeiçoamento, nunca será de mais referi-lo, também depende de cada um de nós.
Renato Nunes    

domingo, 16 de setembro de 2012

O estado do meu(nosso) País!!

Apresento aqui umas pequenas reflexões sobre as minhas breves leituras e imagens sobre o estado do meu país:
Ontem vi as manifestações e hoje não resisti a comprar o jornal, porque me arrepiou toda aquela gente que desespera e luta pelos seus direitos.Pessoas que choram e clamam por saúde, educação com qualidade e um emprego que lhe possa dar estabilidade.
Não resisiti a gravar, ontem as imagens da TV, momentos que espero rever em breve, como sendo más memórias na nossa rica História, ambicionando que todo este pesadelo passe rapidamente.Provavelmente toda esta esperança  não passa de utopia.
Que infeliz povo é este que tem governantes insensíveis, pouco crentes nas suas potencialidades e no real valor da sua mão de obra.

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Um manifesto


A crueza das palavras não é mais impressionante do que certeira. Tudo se ajusta à vilania grotesca que se vive. Gostaria de ter escrito o texto que tem uma dignidade de manifesto. Não sei quem é o seu autor mas, por razões ainda mais desesperadas do que as suas, subscrevo inteiramente o conteúdo e o tom. Para a alcateia de talibãs neoliberais que nos esmagam, não há mais argumentos. E isto é que é perigoso.

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Que a imperial não falte!

Parece que o senhor que o ministro Relvas arranjou para substituir a direcção da RTP sa(ca)neada pelo incumbente que mostra que a vida é para os espertos é um velho incondicional do Pedro (Passos Coelho), está nas cervejas e cheio de ligação aos negócios com Angola. Hum..

terça-feira, 4 de setembro de 2012

Saudades de Rio Maior

Numa fase muito difícil, onde as oportunidades de trabalho escasseiam é com apreço que eu vejo o surgimento de uma possibilidade de estabilizar na minha carreira. À medida que as dificuldade da vida aumentam, aprende-se e dá-se um valor diferente a pequena coisas que anteriormente não o faríamos.

Rio Maior será sempre uma boa lembrança no meu percurso profissional, neste ano e meio aprendi a conhecer uma cidade simpática, com pessoas afáveis e humildes que me souberam receber e acolher.

Nesta nova fase profissional que agora recomeça na Venda do Pinheiro, espero aprender e evoluir como pessoa e como profissional. 

sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Sol da Liberdade

Ainda mal nascia o sol e já Maria da Conceição subia a rua, com o pescoço aninhado pela carga do molho que levava à cabeça. Hoje sentia-se particularmente mais fraca e as pernas tremiam-lhe quando os paus que carregava riscavam as paredes por onde vagueava.


Era Outubro e as primeiras chuvas espreitavam bem lá do alto. Maria olhava para o céu, calculava o tempo que ainda lhe restava e acelerava o passo. Aquele maldito molho de lenha enxuta mal a deixava respirar.

Maria, a Forneira, como todos a conheciam por aquelas bandas das Beiras, tinha pouco mais de vinte anos e desde que se lembra sempre vivera assim. Órfã de nascença da mãe, mal tivera tempo para conhecer o pai: pouco depois de ter concluído o Exame da quarta classe, chegou-lhe a notícia da morte do progenitor, num maldito fogo que queimou quase toda a serração. Hoje, como ontem, para sobreviver, Maria cozia pão para a aldeia. Vai daí, todos a chamavam Maria, a Forneira; e não havia expressão de maior solidão.

Enquanto aluna, Maria sempre se distinguira dos demais. Lá na aldeia, onde os próprios rostos espelham o congelamento do tempo, ninguém sabia o que significava ser pobre, pois também ninguém conhecia o sabor da riqueza. Pela manhã, quando os meninos chegavam à Escola com as roupas esfarrapadas e os pés feridos pelas pedras da calçada todos pensavam tratar-se de uma situação normal. E todos percebiam muito bem o som que fica no estômago depois de semanas a enganar a fome.

Naquelas remotas fragas perdidas da memória dos próprios deuses, ninguém estranhava a cor da miséria. Ninguém, à excepção da Dona Isaura, professora primária que, apesar das várias décadas no magistério, nunca se conformara. Ao fim-de-

-semana, quando a Escola se fechava no silêncio do desocupado, abria as portas da própria casa para abrigar aquelas pobres almas do diabo, que mais não fosse para lhes dar uma côdea de pão ou um copo de leite quente. Em troca – convencia sempre os pais e todos os meninos que ali havia mesmo uma troca – pedia-lhes que fossem buscar cântaros de água: de manhã, à tarde e à noite. Depois, quando os meninos e as meninas, com a rodilha na cabeça, chegavam à cozinha com a água, agradecia-lhes e ia despejá-la, para que lá em casa houvesse sempre motivo que justificasse o trabalho dos mais novos. Passaram assim tantas décadas e nunca ninguém se perguntou sobre o que fazia, afinal, Dona Isaura a tanta água que os seus alunos iam buscar à Carreira!

Três meses antes do Exame Final da quarta classe, que tantas voltas provocava nos intestinos da rapaziada, as portas da casa da docente abriam-se com uma regularidade ainda maior. Quase todos os dias, depois das aulas, às vezes até perto da meia-noite, as portas escancaravam-se e era uma roda-viva que nem dava para acreditar. Uns chegavam às oito da noite, outros às dez, outros mesmo às onze… e a todos, Dona Isaura, depois de ouvir o habitual: “Dá-me licença senhora professora?”, a todos, Dona Isaura começava por perguntar se já tinham comido.

Maria nunca chegava antes das onze. Mas vinha sempre. A ofegar, de tanto correr, às vezes até parecia que o cabelo se lhe ia soltar da cabeça, pois vinha todo no ar, sempre a esvoaçar. Dona Isaura ouvia os passos daquela menina, ainda bem ao longe, e depois ficava a aguardar que o portão batesse e de imediato ecoasse pela sua alma aquela voz suave. Rígida e implacável por fora, a piedosa Mestre chorava prolongadamente por dentro quando Maria se sentava, para comer e depois estudar.

Em trinta e tal anos de ensino, com turmas de quarenta cabeças, sempre separadas pelo sexo, a Mestre nunca vira uma aluna com tais capacidades. Ditava-lhe contas de somar, subtrair e multiplicar que para todos os outros dariam para uma semana e a pequena discípula despachava-as numa hora. Algumas, ainda a Mestre estava a ditá-las e já Maria as resolvia prontamente. A professora repreendia-a imediatamente, exigia-lhe que escrevesse, que apresentasse todos os cálculos e, depois de conseguir confirmar mentalmente a validade da resposta que a discípula lhe dera, ficava a matutar como conseguiria o raio da miúda fazer contas que ela própria…

Maria nunca tivera um livro em casa. Um sábado, bem pela manhã, Dona Isaura foi à livraria central do concelho e comprou de uma assentada três volumosas antologias de contos, uma resma de folhas, uma caneta de tinta permanente e um tinteiro. Mais tarde, já em casa, aguardou ansiosamente a chegada de todos os seus meninos e, em especial, da melhor aluna que algum dia lhe havia passado pelas mãos. Estava mesmo decidida a fazer daquela menina o que todos os outros nunca poderiam ser.

Nesse mesmo dia, todos chegaram às explicações suplementares como depois partiram; de mansinho. Já passava da meia-noite quando Maria se preparava para sair, após uma hora de intenso e exigente estudo. Então, num raro gesto de afecto transparente aos olhos, a velha Mestre da escola epicurista puxou a menina para os seus braços, como se fosse a filha que nunca gerou, e num tom doce disse-lhe:

– Hoje fui à sede do concelho, onde daqui a dois meses irás fazer Exame, e comprei-te uma prenda. – Maria olhava embevecida o rosto daquela pobre mulher. Na verdade, não sabia o que era uma prenda e tão-só conhecia o sabor de uma mão de mãe entrelaçada na sua.

– Tens aqui três livros, que reúnem vários contos de alguns dos melhores escritores do mundo. Comprei-te papel, uma caneta e tinta. A melhor forma que tens para agradecer-me é ler todos os livros, uma e outra vez. E depois escreveres, escreveres e vires a correr mostrar-me. Prometes? Prometes?

Maria embalou nas mãos aquela inesperada oferenda dos deuses e depois de muito agradecer saiu a correr. Já pela calçada, as lágrimas tombaram-lhe, como uma torrente interminável. Apenas quando chegou a casa e os olhos lhe caíram na lombada daqueles três tesouros é que a alma se tranquilizou e pôde enfim deixar de soluçar.

Nessa noite, logo pela madrugada, como já era habitual, o pai chamou-a para descer. Precisava que fosse buscar o molho de lenha às matas, para mais logo fazer a comida e cozer o pão no forno. Todos os dias, de manhã e à noite, a menina saía para arranjar madeira seca.

Maria, a Forneira, desceu, despediu-se do pai com um beijo na testa, viu-lhe as mãos queimadas pelo frio da serra e a barba cada vez mais cerrada pela cor da neve e correu para a lenha. Em breve, quando ainda o sol mal se espreguiçava lá ao fundo já Maria subia a rua do Cimo do Povo, com um grande molho de lenha na cabeça, tão grande que quem a avistasse à distância até poderia pensar que o molho avançava por magia. Quando chegou a casa, foi arrumar o fruto da sua colheita na floresta, varreu o chão de terra e lançou uns canuchos (os citadinos insistem em chamar-lhe palha de milho…) ao burro e às duas cabras que estavam na loja, mesmo por baixo do seu quarto. Depois, foi a correr ao quarto, pegou num monte de folhas e saiu, novamente a voar.

Meia hora depois e Maria estava a pedir licença para entrar no salão nobre da Escola, a tão desejada sala da quarta classe. Quando se sentou, as pernas tremiam-lhe de tanta alegria. Naquela menina, o cansaço não entrava e nem mesmo a fome a podia impedir de sorrir.

Chegou a hora do intervalo e Maria ficou, como era habitual, no seu lugar. Quando os outros partiam para brincar, Maria continuava a ler, a escrever e a contar. Nunca ninguém a ensinara a brincar.

Depois, a Mestre aproximou-se e a menina estendeu-lhe um conjunto de folhas inundadas por letras cuidadosamente arredondadas. Incrédula, a velha professora exclamou:

– Não me digas que passaste a noite a ler e a escrever? Mas não saíste cedo para ir buscar lenha?

– Sim, saí. – Disse a pequenina, com medo de ter cometido algum erro grave que enervasse a sua professora.

– Como conseguiste tu ler durante a noite se não tens luz em casa?

– Acendia carqueja seca e a luz dava-me para ler uma página. Depois, imaginava o que ia escrever e quando voltava a incendiar a carqueja era só escrever, muito, muito rapidamente…

– E não te deu o sono, minha princesa? – Retorquiu a Mestre, quase a chorar.

– Sim, minha senhora. Mas eu levei uma bacia com água fria para junto de mim e, quando me dava vontade de dormir, colocava os pés lá dentro e assim as pestanas ficavam sempre abertas. A minha senhora não me leva a mal, pois não? É que eu queria mesmo ler tudo e escrever; escrever muito…

A pobre professora trincava a língua o mais duramente que conseguia. Tantos anos a aturar rostos travessos que mal sabiam ler e escrever e, no final de carreira, os seus conselhos de uma vida reencarnavam ali mesmo à sua frente no rosto de uma moçoila nascida no meio das fragas; o verbo fizera-se sangue, a escassos metros da sua presença. Como era possível que a filha do tio Zé Arnaldo, um desgraçado de um serralheiro analfabeto, conseguisse ascender a um tal patamar do conhecimento? Como era aquilo possível? Que desígnios teriam os deuses para aquela menina?

Naquele dia, quando as outras catraias entraram na sala, a Mestre abandonara o leme, sentara-se do outro lado e pedira à discípula que ensinasse às suas colegas as regras da gramática que ela própria há tantos meses se esforçava, em vão, para ensinar. Ao fim de uma hora, ficou extasiada com a simplicidade daquele génio (como nos esquecemos da dificuldade da simplicidade…). Uma hora depois e já todas as meninas papagueavam os pronomes e os complementos como se fossem a oração mais natural das suas próprias vidas.

Menos de dois meses depois, Dona Isaura levou todas as suas meninas à sede de concelho. No final, todas passaram no Exame, mas só Maria ficou distinta. Fora da sala, as outras gaivotas tinham as mães a aguardá-las para um abraço e a todas reconfortava a ideia de que, chegadas à aldeia, haveria pelo menos um pequeno pão para celebrar um dos momentos mais importantes na vida da comunidade. À saída da sala, apenas Maria estava só, pois àquela hora o seu pai trabalhava e, na verdade, não tinha mais ninguém de família que pudesse esperá-la.

Aquele foi o último ano que Dona Isaura acompanhou os seus alunos a Exame. Pouco depois reformou-se e acabou por morrer sem conseguir que Maria continuasse a estudar. Bem tentou demover o velho serralheiro dizendo-lhe, uma e outra vez, que, ao longo de toda a sua vida, nunca vira nada igual, que na sede de concelho todos os examinadores ficaram estupefactos com o conhecimento daquela menina, mas nada nem ninguém poderia levar aquele homem a compreender que uma mulher também podia estudar e fazer outra coisa diferente daquela que a sua mãe, a sua avó e a sua bisavó toda a vida haviam feito. Nada nem ninguém poderiam fazê-lo. Ainda era cedo, demasiado cedo. E ninguém acelera o que o destino trava, antes de os deuses o entenderem.

Ainda Maria ouvia na sua cabeça o toque do velho sino da Torre a anunciar que os filhos daquelas fragas haviam conseguido aprovação na terra onde até mesmo muitos fidalgos fracassavam, quando soube que a vetusta serração, junto ao cemitério da aldeia, estava a arder. Nesse mesmo dia, vieram dizer-lhe que o seu pai tinha morrido. E Maria, sentindo-se completamente só no mundo, chorou.

Decorria o cortejo fúnebre, Maria já chorava sem lágrimas, e logo começaram as investidas da Madressilva Pérola, reputada casamenteira lá do sítio. Falou-lhe da sua condição de mulher, murmurou-lhe que havia um carpinteiro, filho de uma tal Dona Etelvina, possuidora de algumas terras e várias cabeças de gado. Apontou-lhe a sua condição de profunda solidão e jurou-lhe que aquele matrimónio seria a sua única salvação.

Na verdade, no princípio, Maria nem sequer imaginava aquele verbo – casar. As palavras da carpideira casamenteira entravam-lhe por um ouvido e saíam-lhe por outro a duas mil e tantas léguas à hora. Casar? Não! Aquilo ainda não era para ela. E reconfortava nos braços os três livros que a sua saudosa professora um dia lhe oferecera, para talvez se convencer de que em breve chegaria o seu próprio príncipe encantado.

Mas o tempo consome tantas ilusões. E a fome e o frio podem tanto, tanto! Meio ano depois de perder o pai, quando nunca tinha conhecido a própria mãe, Maria começou a vacilar e, perante a insistência do abutre casamenteiro, anuiu. Que viesse o casamento, ou lá o que isso fosse, pois não existiria pior vida do que aquela, pensava ela, dia após dia. (E ainda há quem diga que as palavras significam sempre o mesmo ao longo da vida…).

Casou-se com David, o carpinteiro, que acabara de herdar a casa da mãe, um rebanho com cem cabeças e umas quantas parcelas de terra, no Vale Pinhoso, ermo localizado a cerca de duas horas de caminho do centro da aldeia. Conheceu-o no dia da cerimónia. Ela acabara de completar doze anos e ele faria vinte, uma semana depois.

A boda foi parca, como não poderia deixar de ser. Arranjaram-lhe um vestido emprestado e uns sapatos alugados. Os padrinhos de David, o carpinteiro, ofereceram a loja da casa e montaram lá uma mesa com uns comes e bebes. Reza a história que depois da cerimónia religiosa, na Igreja Matriz, todos marcharam em romaria para o Jardim, onde tiraram algumas fotografias, que até hoje ninguém parece saber onde param.

Terminada a festa, foram passar a noite no que restava das paredes que pertenceram à mãe de David, o carpinteiro. Ela era uma criança e ele, já um rapaz espigadote, e bem sabido da vida, pelas vezes que o padrinho o levara à casa das meninas, em Viseu, a partir do momento em que completara dezoito anos.

Maria era uma criança. Mal sabia tratar da casa. Nunca ninguém verdadeiramente lhe ensinara a cozinhar, a bordar, a limpar ou muito menos a ser esposa. Durante toda a vida, vivera sozinha com o pai, cada um na sua cama, cada um com a sua vida e, agora, de um momento para o outro, Maria via-se a dormir na cama com um homem que mal conhecia e cujo odor lhe dava vontade de fugir. À noite, dia após dia, David servia-se e depois Maria levantava-se com vontade de vomitar. E desatava a chorar. Mês após mês foi sempre assim. – Maria, a Forneira; à medida que o tempo passava, assumidamente, não havia expressão de maior solidão.

David era forte, estava na força máxima da vida, sentia o sangue a ferver-lhe nas veias e, ao mínimo problema, não hesitava em recorrer ao punho para levar a sua ideia avante. Chegava muitas vezes a casa completamente bêbedo, barafustava pela desarrumação do lar, apontava as camisas rotas, sem botões, a mesa vazia e logo a seguir descarregava toda a sua fúria em Maria.

Quatro anos depois de o inferno ter começado, Maria começou a sentir-se estranha. O seu corpo parecia estar a mudar rapidamente e, inesperadamente, pressentia-se acompanhada, dia e noite; era como se estivesse a ser observada por si própria, a partir do interior. Quando, finalmente, percebeu que estava grávida, baixou tristemente os olhos e correu para David. A resposta decepou-a:

– Se ele for meu tem de nascer dia 19 de Março. – Recomeçou a contar pelos dias e corrigiu: – Não! Se ele for meu tem de nascer dia 21 de Março. Nesse dia, ficas já a saber que vou sair logo pela manhã para a Feira do concelho e chamarei aqui a Tia Arnalda, a Parteira. Quando chegar, de mota, quero uma toalha branca na janela a anunciar o nascimento. Se não estiver lá, mato-te. – E Maria sabia que, bêbedo, ele matava mesmo.

A partir daquele momento, a vida de Maria foi um inferno ainda maior. Cada dia que passava, saía para o mato à procura de lenha para cozer o pão e pelo caminho rezava a Deus e a todos os santos, implorando que o filho nascesse no dia que o seu marido tanto queria. Prometia tudo o que podia e não podia só para que aquele nascimento não se entrelaçasse a uma tragédia. E depois, deixava tudo nas mãos do Divino Espírito Santo.

Chegou o dia 21 de Março. Chovia como se fosse Inverno quando David, o carpinteiro, saiu com a mota, deixando a porta entreaberta, para receber a Parteira. Lá dentro, na cama, Maria continuava a rezar. Até que ao fim do terceiro Pai Nosso, não se sabe se por milagre se por pura coincidência, nasceu mesmo um menino. E a parteira, logo depois de cortar o cordão umbilical, apressou-se a colocar uma toalha branca no parapeito da janela. Lá na aldeia todos conheciam bem o feitio do homem da casa...

Quando David chegou, ficou radiante. Deu um beijo a Maria (talvez o primeiro que alguma vez lhe havia dado) e foi a casa do Zé do Venâncio comprar-lhe uma galinha poedeira e a melhor parte do porco que ele mesmo ajudara a matar no dia anterior. Já em casa, pediu que lhe fizessem uma canja para a mulher e que lhe preparassem uma perna de porco assada na brasa. Naquela noite, Maria, uma criança com outra criança nos braços, sentiu o calor de um lar e sonhou dar a seu marido um homem que o ajudasse a ver-se ao espelho todos os dias pela manhã; e talvez isso o mudasse…

No entanto, pouco a pouco, tudo acabou por regressar à normalidade. David voltou a beber, tornou a bater em Maria, as paredes de tabique dos quartos voltaram a inundar-se de sangue e até o pequenote – chamaram-lhe António – acordava bastas vezes com o barulho dos punhos a enterrarem-se no rosto de sua mãe.

Três anos depois daquele nascimento, fomos encontrar Maria no local onde a abandonámos no preciso momento em que iniciámos esta narração: Ainda mal nascia o sol e já Maria da Conceição subia a rua, com o pescoço aninhado pela carga do molho que levava à cabeça. Hoje sentia-se particularmente mais fraca e as pernas tremiam-lhe quando os paus que carregava riscavam as paredes por onde vagueava. Teria, então, pouco mais de vinte anos.

António não evoluía. Com três anos, mal se mexia, não balbuciava, não emitia um único som perceptível aos ouvidos humanos e apenas a mãe conseguia adivinhar-

-lhe as necessidades pelo intenso choro. Maria sentia-se cada vez mais fraca. A ideia de que fora do seu ventre que nascera uma criança diferente sufocava-a ao ponto de mal conseguir caminhar. Pesava-lhe mil vezes mais do que qualquer molho de paus que carregasse à cabeça.

As gentes da vizinhança, ávidas de malvadez, perguntavam amiúde pelo garoto, e quando o viam quase morto, sem reacção, viravam as costas e escondiam as caras já saciadas. Os juízos chegavam depois, no conforto dos seus próprios lares. E o lume espalhava-se como pólvora: ¬– o filho do carpinteiro, do David, é um aleijadinho. É deficiente.

Mais tarde, quando António atingiu a idade de ir para a Escola, a professora Henriqueta veio inspeccioná-lo e confirmou: – A lei de Santa Comba é bem clara: os deficientes não precisam ir à Escola.

Em casa, a notícia que confirmava a deficiência caíra que nem uma bomba. Um dia, David chegou da rua completamente desorientado. Agarrou Maria por um braço, arrastou-a até ao quarto de António, que estava sentado a um canto do refúgio, e atacou-a:

– Foi para isto que andaste meses a engordar? Tu deste-me um monstro! Todos dizem que eu sou o pai do deficiente. A partir daqui, quero-o fechado em casa, com uma mordaça na boca. Nunca mais sairá à rua. Nunca mais me fará passar vergonha. O melhor era que nunca tivesse nascido. Eu mato-o se o ouvir grunhir.

Maria não respondeu. Ela própria sentia o peso da responsabilidade no ventre. E noite após noite, muito antes daquele monólogo, pressentira o problema do rapaz e perguntara-se, vezes sem conta, que mal seria o seu para dar à luz aquela criança. E olhando António fixamente nos olhos, vendo-o imóvel e inseguro nas suas mantas, Maria odiou profundamente aquele ser que lhe trouxera ainda mais sofrimento. Revoltou-se. Rejeitou-o. Rejeitou-se. E muito tempo depois sepultou-o por dentro. Ironia das ironias, ou não, foi preciso fazer o luto da morte de uma criança normal, ainda por cima que nunca fora pedida aos céus, para depois saber aceitar aquele menino tão diferente. Quando isso aconteceu, Maria jurou cuidar daquele rapaz até ao fim da vida.

António teria talvez seis anos quando viu, pela última vez, a luz do sol. A partir desse momento, Maria passou a despender todo o tempo livre que tinha para cuidar do seu menino, eternamente enclausurado no quarto para ficar protegido; ou talvez para iludir os que o rodeavam. Passaram-se anos e anos e António nunca conseguiu falar. Maria tentou vezes sem conta ensiná-lo a ler, contar e escrever, mas ele nunca aprendeu. Ainda assim, o tempo ajudou-os a ler nos olhos o que não conseguiam dizer em palavras ou números, e isso bastava-lhes. Maria pedia-lhe que ficasse em silêncio, que nunca fizesse qualquer espécie de som quando o pai estivesse em casa. E António olhava-a nos olhos e permanecia enternecedoramente silenciado.

A partir do dia em que David, o carpinteiro, soube que o filho era mesmo deficiente nunca mais quis vê-lo. Vociferou o mais alto que conseguia, por toda a vizinhança e arredores, que o seu filho morrera, que o enterrara no quintal. Na aldeia, todos conheciam o feitio do carpinteiro, mas enterrar o próprio filho no quintal? No início, muitos duvidaram daquela mensagem, sempre dada em tom telegráfico, como era hábito do homem das madeiras, mas, à medida que os anos foram passando, todos se convenceram que o deficiente, como era conhecido, acabara mesmo por falecer.

Muitos anos efectivamente se passaram. António nunca mais saiu do quarto. Quase cegou, quase perdeu a audição e com tanto medo de fazer barulho deixou de fazer qualquer ruído voluntário. A seu lado, Maria, a mãe, nunca o abandonou. Quando estavam juntos ele limitava-se a agarrar-lhe a mão. Nunca conhecera outra alegria. As paredes daquele quarto eram o seu mundo.

Foi nesse mesmo quarto que António ouviu da boca de sua mãe que David, seu pai, tinha morrido. E foi no quarto que passados muitos anos, tantos que eu nem sequer consigo precisar, Maria entrou para dizer ao filho que, lá longe, talvez em Lisboa, tinham feito uma “Revolução dos Cravos” também para que os meninos especiais nunca mais tivessem de passar a vida inteira escondidos do mundo num quarto escuro ou a vaguearem como cães das ruas.

António não sabia o que era uma revolução, nem o que eram cravos, nem talvez compreendesse uma só das palavras que a sua mãe, já tão precocemente velhinha, lhe dizia. E, por isso, estranhou quando Maria da Conceição, a Forneira, o arrastou lá para fora do refúgio, depois para a sala e depois, tantos, tantos anos depois, para a rua.

Lá fora era Primavera. Com a luz do dia a bater-lhe na face, António emitiu um som de dor. Depois, a mãe abraçou-o e lentamente ajudou-o a abrir o que ainda lhe restava dos olhos. Por fim, apontando para o céu, gritou, com todas as forças que tinha:

– Filho! Filho! Olha; é o sol! – E António, que já não se lembrava de ver o sol, olhou para cima, viu aquela bola de fogo e sorriu. Foi o primeiro sorriso que algum dia alguém lhe viu.

Na rua, os mais idosos que passavam, baixavam a cara e silenciosamente choravam. Todos eles sentiam que existem feridas que nunca se fecham; são portas que ainda nos humanizam...

(Dedicado aos atletas paralímpicos e a todas as pessoas com alguma “deficiência”, que todos os dias nos mostram que quase tudo é possível).

Renato Nunes



quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Renato Nunes edita livro de poesia

Construir sentidos — assim se intitula o primeiro livro de poesia assinado por Fernando Alva, que, recorde-se, é o pseudónimo adoptado por Renato Nunes, autor de Vila Franca da Beira, concelho de Oliveira do Hospital.


A obra em questão é apresentada como uma antologia de poemas escritos pelo autor, entre os 11 e os 31 anos, e encontra-se à venda, numa edição limitada, na Biblioteca Municipal de Oliveira do Hospital e em várias livrarias/papelarias desta cidade.

Renato Nunes

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

A necessidade de repensar o blogue

Seja um leitor, alguém que se digne a ler, pensar e possivelmente comentar merece todo o meu respeito, sendo o aumento da visitas e dos comentários o principal impulsionador deste projecto.

No entanto incumbências da vida,surgimentos de vontades e projectos paralelos provocaram que não fosse disponilizada a atenção devida e merecida ao blogue. Em consequência do decrescer da dinâmica e dos textos publicados peço as minhas desculpas.

Até ao final do corrente ano civil, procurei repensar o blogue tendo o cuidado de promover mais profissionalismo e rigor. Até lá apresentarei textos sempre que entender necesário,  ficando a aguarda  publicações e possíveis sugestões no enquadramento do blogue.

terça-feira, 17 de julho de 2012

Previsibilidades

Aproxima-se mais um final de contrato. Um ano mais que passou sem que tivesse conseguido acrescentar algo de significativamente importante a uma existência banal cuja única probabilidade séria é a de um arrastamento numa mediocridade social entre o desemprego e, na melhor das hipóteses, o subemprego sorridente.

quinta-feira, 21 de junho de 2012

Um percurso que se sonha vitorioso

Após uma vitória suada mas inteiramente merecida frente à República Checa, Portugal apura-se mais uma vez para uma meia final de um campeonato da Europa. Um feito na minha opinião histórico para um país pequeno, no entanto com um grande potencial no panorama futebolistico, onde tanto a nível de clubes como de seleções nos temos vindo a afirmar.
Portugal pode não passar mais nenhuma eliminatória, esperemos que isso não aconteça, no entanto neste Europeu já deixámos uma imagem clara da humildade, inter-ajuda e trabalho de equipa. Ronaldo sobressai ligeiramente como a estrela maior que ajuda a olear melhor a máquina, no entanto a equipa funciona como um todo. Há quanto tempo isso não acontecia... Parabéns Portugal e acima de tudo Parabéns ao Paulo Bento que está a fazer um excelente trabalho. FORÇA PORTUGAL!!!

terça-feira, 22 de maio de 2012

O segredo da partida (Conto infantil)

Sabes, a história que vou contar-te é muito diferente de todas aquelas que até hoje ouviste. Confesso que nunca a partilhei com ninguém. Serás a primeira pessoa em todo o mundo a ouvir estas palavras e, por isso, vou fazer-te um pedido muito importante. Antes de mais, quero que te sentes ao lado das duas pessoas mais especiais da tua vida e que leias em voz alta este segredo. És capaz de fazer isso por mim, não és?

            Nunca te disseram, mas no jardim da tua casa apareceu, há alguns anos atrás, um gato muito amarelo, mais amarelo ainda que o próprio sol. Esse gato, que todos chamavam Pico, tinha uma cauda enorme, duas patinhas rechonchudas e uns bigodes afiados. Quando alguém o chamava, arrebitava a orelha direita, espreguiçava cada uma das patinhas e só depois, tranquilamente, decidia avançar. Quem conseguiu estar perto dele jurou-me que nunca tinha visto uns olhos assim; uns olhos que até falavam, ainda que com outras palavras…

            Como sabes, bem no meio do oceano Atlântico existe uma grande fatia de terra, rodeada de água por todos os lados. A essa fatia de terra os crescidos chamam ilha do Pico, não porque ela pique as pessoas que por aí passam, mas porque lá existe uma montanha muito alta. Vê bem, é a montanha mais alta de Portugal e, até hoje, poucos homens conseguiram ficar muito tempo lá em cima. Há quem diga que a montanha, assim que vê chegar alguém, enrola-se num denso nevoeiro e começa a gemer tão alto, que quase todos são obrigados a descer rapidamente. Ainda hoje, naquela ilha, se diz que é possível ouvir esse som, quando algum intruso se aproxima. E, acredita em mim, já muitos tentaram subir à montanha mais alta de Portugal…

            Entre os muitos que desejaram chegar lá mesmo em cima está o Micha – um pastor que, durante vários anos, apascentou as suas ovelhas nos terrenos do sopé da montanha. Micha era grande, tinha crescido a ouvir a música que descia do cume e poucos conheciam como ele os segredos das alturas.

            Durante anos e anos, Micha guiara o seu rebanho pelos trilhos que conduziam à montanha, sem nunca ter a tentação de desafiá-la e invadi-la. Um dia, porém, quando estava na taberna da vila, um homem tentou-o:

            “– Ouve lá, Micha! Aposto tudo o que queiras que nem tu mesmo és capaz de subir ao ponto mais alto do Pico e passar lá a noite.”

            No início, o pastor quase nem reparou naquele desafio. Limitou-se a sorrir, enquanto baixava a cabeça. Respeitava muito a montanha e não seria um simples tolo a convencê-lo a subir lá em cima. O homem, no entanto, não desistiu e voltou à carga:

            “– Não ouviste o que te disse? Pois olha. Eu estava mesmo disposto a apostar contigo quinhentas moedas como nem tu próprio consegues. Ouvi dizer que tens a mulher doente no hospital da Horta. Se calhar dava-te jeito. Mas deixa lá. Não és capaz e ponto final.”

             Micha tinha realmente a mulher muito doente. E aquelas moedas davam-lhe mesmo jeito. Agora, que era pai, aquelas palavras batiam-lhe ainda mais no fundo do coração. Fitou o tolo com muita atenção nos olhos e disse-lhe:

            “– Qual é, afinal, o teu interesse em ver-me subir à montanha? Ganhas alguma coisa com isso? Que eu consiga ou não chegar lá mesmo ao topo, é uma coisa que não te diz respeito. Guarda as tuas moedas.” – e, dito isto, ficou a olhar para um pardal que ora ajeitava as penas, ora saltitava de rocha em rocha. Por breves momentos, aquele passarinho transportou-o para outro lugar ligado à sua infância; lá, onde também se fala português, o saltitão é conhecido por tchota. Curioso, não é! Mas o arco-íris só é belo porque tem muitas cores – já tinhas pensado nisso?

            Micha saiu então para a rua. Começara a escurecer e lá bem no alto apareciam as primeiras estrelas. Atrás dele seguiu rapidamente o tolo. Ele não desistia facilmente:

            “– Apostei duas mil moedas com o Doutor Xabegras da Madalena, como nem tu lá ias acima. Por isso, vê bem, se tentares e falhares eu ganho a aposta e, como recompensa, ainda te dou quinhentas moedas. É pegar ou largar, agora!”

            “– E imagina que eu consigo mesmo chegar lá em cima…”

            “– Nesse caso, ainda seria melhor para ti. O Doutor Xabegras prometeu entregar-te o dobro do que eu iria dar-te. Pediu-me que te convencesse a aceitar… na Madalena há muitos curiosos em saber se tu consegues ou não. À noite, nas tabernas, não se fala de outra coisa senão do grande espírito da montanha e daqueles que ainda poderão vencê-lo.”

            Micha franziu a testa ao ouvir aquelas palavras. “Pobres tolos se pensam que alguém pode vencer a montanha. Como estão tão enganados…” – pensou para os seus próprios botões, enquanto lhe passava pela cabeça a imagem do seu novo rebento, a pedir-lhe comida: Papá, tenho fome… dás-me comida, não dás??

            Naquela noite, Micha quase não dormiu. A montanha parecia estar dentro do seu próprio quarto e por vezes teve mesmo a impressão de ouvir a voz das alturas a pedir-
-lhe para não aceitar aquele desafio. A dizer-lhe que não precisava daquelas malvadas moedas; que a sua mulher iria melhorar; que a sua mesa voltaria a ficar cheiinha de comidinhas boas e que nunca mais teria de chorar, enquanto ouvia aquela frase: Papá, tenho fome… dás-me comida, não dás??

            Quando amanheceu, Micha rezou muito e depois correu em direcção à vila, para aceitar a aposta. Que fosse o que Deus quisesse, concluiu. Assim que chegou à taberna, viu o Doutor Xabregas, já à sua espera; parece que o espírito da noite lhe tinha anunciado aquela decisão e ele próprio resolvera vir da Madalena para confirmar a audácia do pastor. Sentaram-se e voltaram a levantar-se sem reparar que em cima da desgastada mesa restava ainda uma taça de café, já abandonada…

            No final, ficou acordado que, nesse mesmo dia, Micha iria avançar. Começou a preparar-se ainda durante a quarta hora, nome pelo qual os monges da Idade Média conheciam o período das dez horas da manhã. Agarrou num saco, colocou lá dentro um pedaço de pão seco, com duas azeitonas e, sem mais demoras, caminhou rapidamente até ao cume. Conhecia aqueles carreiros como quem distingue as linhas da palma das mãos e, por isso, não levou muito tempo a chegar até ao piquinho da montanha. Tinham combinado que assim que ele vencesse as alturas colocaria um facho a arder, para que, logo à noitinha, em toda a ilha se soubesse que o pastor Micha tinha conseguido ultrapassar o que todos temiam.

            Ainda não era escuro e já o facho ardia, bem lá no pontinho mais alto de todo o Portugal. Puxou do saco que levava e começou a roer o pão seco, que ia misturando com as azeitonas guardadas. Depois, aconchegou-se o mais que pôde com a esfarrapada samarra que trazia vestida e adormeceu. Lá em baixo, poucos poderiam sequer imaginar aquela paz interior que invadira o pastor.

            Porém, por volta das três horas da madrugada, Micha foi inesperadamente acordado por uma voz que parecia vir do interior da própria montanha, cada vez mais protegida por um denso manto de nevoeiro. Aquela frase nunca mais o abandonaria:

            Ganhaste as moedas, mas perderás bem mais”…

            Assustado, Micha ajoelhou-se e rezou muito, como nunca tinha rezado.   

            Pediu então a Deus que não lhe levasse ainda a sua mulher, a sua Tina, pois não conseguia imaginar a vida sem aquela flor. Chorou, chorou tão alto que, por momentos, conseguiu até fazer calar a voz da montanha que pareceu, ela própria, ter ficado comovida com todo aquele sofrimento. Depois, ainda com as lágrimas a escorrerem-lhe pela face, correu pela montanha abaixo, o mais rapidamente que lhe permitiam as suas já frágeis pernas. Tinha quase 50 anos.

            Quando tomou das mãos do Doutor Xabegras as mil moedas a que tinha direito, foi recebido no meio de grandes aplausos e gritaria, como se de um autêntico herói se tratasse. Então, sem que ninguém se apercebesse, voltou-se para a montanha e viu que o Facho que lá tinha colocado já estava apagado.

            Com o dinheiro nas mãos, correu à mercearia da freguesia e comprou tudo o que precisava em casa. Tinha jurado que não mais voltaria a ouvir aquele Papá, tenho fome… dás-me comida, não dás??        Depois, já com a barriga cheia e o seu mais tenro rebento deitado na cama, apanhou o barco, atravessou o agitado canal e foi ao Faial. Inesperadamente, a sua mulher tinha ficado melhor e alguns dias depois estaria já em casa, completamente recomposta da doença, que quase a levara para junto de Deus. As suas preces foram ouvidas pela montanha, pensou Micha, aliviado. Era como se lhe tivessem tirado um peso do coração.

            Alguns anos se passaram depois deste episódio que, a pouco e pouco, foi sendo esquecido pelos habitantes do Pico (o ser humano tem a proeza de conseguir esquecer quase, quase tudo). Até que um dia, quando já a tarde se preparava para desaparecer, rebentou uma notícia que rapidamente atravessou todas as freguesias da ilha: a filha mais nova do Micha tinha desaparecido no meio da montanha – há já algumas horas que o pai a procurava desesperadamente e nem sequer um rasto apanhava.

            Começou então a dizer-se, por todo o lado, que a montanha se tinha vingado da ousadia do pastor, que mais tarde ou mais cedo ninguém escapava à sua maldição e que, nessa manhã, o espírito das alturas voltara a gritar, como já não o fazia desde aquela longínqua noite.

            Castigo ou não, a verdade é que a menina nunca mais aparecia. Passaram-se dias e dias, tantos que nem eu te posso contar. Micha ficou cada vez mais velho, tão velho que já mal conseguia ver. A tristeza de Micha tornara-se tão grande que passava o tempo fechado em casa, ao lado da sua mulher, de cabelos cada vez mais brancos e compridos, a tocarem o que ainda restava de um rosto já queimado pela vida.

            Um dia de Outono, apareceu-lhes em casa um gato amarelo, que não parava de ronronar; estava cheio de fome. Ao ver aquele bichano completamente abandonado, Micha comoveu-se e deitou-lhe uma bela tigela de leite com pedaços de pão. Há já muito tempo que aquela malga, colorida com estrelinhas, não era utilizada e, ao agarrá-
-la, o pastor sentiu um arrepio a invadi-lo por dentro. Depois, o gato foi ficando, ficando, até que se tornou um membro da família. Quando estava triste, Micha aninhava-o no seu colo, fazia-lhe festas e contava-lhe muitas vezes a história da montanha. As suas lágrimas eram ainda tão intensas que, segundo se diz, eram suficientes para lavar o pêlo, cada dia mais macio do bichano. Chamava-se Pico e os seus olhos pareciam falar, ainda que com outras palavras, lembras-te?

            Um dia, bem pela manhã, depois de lamber a malga de leite, o bichano olhou mais demoradamente para Micha, como que a querer dizer-lhe alguma coisa e, esfregando lentamente os bigodes, partiu, para nunca mais voltar. Lá na ilha, há ainda hoje quem diga que ele subiu ao topo da montanha e deixou depois regressar a menina para junto dos seus pais, sacrificando a própria liberdade para toda a eternidade.

            Sabes, na ilha todos acreditam que essa criança, que hoje já cresceu, és tu. Foi o gato amarelo, mais amarelo que o próprio sol, que partiu para te salvar e te devolveu àqueles que, agora mesmo, estão junto a ti, a embalar-te as mãos. Sabes, há muitas pessoas que, às vezes, têm de partir, para que outras possam chegar… Esse gato, o Pico, tal como o teu avô, partiram para te trazer até junto de nós.

            Até o Sol tem, todos os dias, de embarcar para deixar a lua chegar…

            Agora dorme, meu amor.
Renato Nunes