domingo, 27 de fevereiro de 2011

Fernando Namora e o Estado Novo


Quando o país se prepara para comemorar os 92 anos do nascimento de Fernando Namora (n. 15 de Abril de 1919, m. 31 de Janeiro de 1989), recupero aqui, em traços gerais, as ideias de um artigo que escrevi anteriormente, aquando da publicação, pelas Edições MinervaCoimbra, da obra “Fernando Namora por entre os dedos da PIDE”. O estudo em questão é da autoria de Paulo Marques da Silva (PMS) e está integrado na série “A repressão e os escritores no Estado Novo”, dirigida por Luís Reis Torgal.
            O referido livro é o resultado de várias pesquisas desenvolvidas por PMS ao longo de quatro anos e encontra-se estruturado em quatro capítulos: I) Os primeiros caminhos: breve resenha biográfica de Fernando Namora; II) Fernando Namora e o movimento literário neo-realista; III) A censura e os escritores; IV) Os processos da PIDE/DGS de Fernando Namora.
            Em anexo, o historiador PMS decidiu reproduzir alguns documentos existentes nos processos do escritor na polícia política, várias cartas do espólio particular de Fernando Namora e outras do espólio de João José Cochofel. São também reproduzidas algumas dedicatórias feitas por diversos escritores, como, por exemplo, Aquilino Ribeiro ou José Saramago, em livros que pertenceram a Fernando Namora e que, hoje, se encontram guardados na Casa-Museu deste autor, em Condeixa.
Diz-nos PMS que Fernando Namora tem cinco processos nos arquivos da PVDE/PIDE/DGS, sendo que, no seu total, estes integram quase 900 páginas de informações. Só a título de comparação, registe-se que Miguel Torga tem quatro processos na polícia política, que incluem 455 páginas de informações.
            Ao embrenhar-se nos arquivos e contactar com as fontes policiais coligidas entre os anos de 1940 e 1973 (data da última informação), o historiador trouxe-nos à luz do dia vários aspectos particularmente interessantes que nos permitem, desde logo, surpreender a sanha persecutória do regime em relação ao escritor e ao cidadão Fernando Namora.
            Tendo em consideração o estudo dado à estampa, os processos de Namora na polícia política são constituídos por recortes de jornais, correspondência remetida para o escritor (previamente interceptada pelos funcionários do regime) e exposições, apelos, representações e comunicados promovidos pela oposição e que Namora subscreveu. Os processos incluem também informações recolhidas por agentes policiais dispostos no terreno e algumas denúncias elaboradas por informadores da PIDE.
            Apesar de nunca ter estado preso, situação que o distingue, por exemplo, de Miguel Torga, o autor de Retalhos da Vida de um Médico teve vários problemas com o “lápis azul” do Estado Novo: viu ser-lhe proibida a reedição das obras em 1966 e quando Manuel Guimarães pretendeu adaptar ao cinema o romance O trigo e o Joio a censura obrigou-o a realizar vários cortes. Desse facto nos dá conta Igrejas Caeiro, um dos actores que participou naquele filme: “Em relação ao filme O Trigo e o Joio, recordo-me de um aspecto curioso: o filme é a história de uma família alentejana de camponeses pobres que em determinado momento concretizam o sonho de poder comprar uma burra, para os ajudar na lavoura. Mas, entretanto, a filha do casal, uma miúda, começa a ter problemas de saúde e a propósito disso surge uma discussão entre a mulher e o marido, porque ela quer vender a burra, pensando que os problemas de saúde da miúda tinham a ver com a burra, e ele não quer. Então o homem conclui, dizendo: «está bem, temos que dar uma volta a isto». Pois essa simples frase foi cortada pela censura! Evidentemente que não passava pela cabeça de ninguém, ainda por cima naquele contexto, que essa frase significasse: dar uma volta ao regime. Mas assim não o entendeu a censura, que exigiu que fosse cortada aquela frase, o que obviamente teve que ser feito.
Neste filme houve ainda outras peripécias com a censura. No final do filme há uma personagem daquela família, que andava há muito transviada, e que regressa à terra. Há uma reconciliação na família, que acredita inclusivamente que a sua situação pode melhorar. O filme termina com uma imagem, por sinal muito bonita, do nascer do Sol, com os dois homens, o dono da burra mais o outro que andava transviado, a puxar a charrua, com o Sol a nascer. Pois por incrível que hoje isso nos possa parecer, a censura exigiu que aquela cena fosse suprimida, com o argumento de que se tratava de uma alegoria à pobreza em Portugal, por a charrua ser puxada, a braço, por dois homens!” (cf. Cândido de Azevedo, A Censura de Salazar e Marcelo Caetano, Caminho, Lisboa, 1999, pp. 268-269).  
Além do que já foi anteriormente exposto, importa sublinhar que o romance A Noite e a Madrugada foi proibido de ser adaptado ao cinema, o livro Domingo à Tarde teria sido apreendido pela PIDE, de acordo com Francisco Lyon de Castro, o fundador das Publicações Europa-América, e a partir dos anos sessenta o Estado Novo terá mesmo tentado condenar Fernando Namora a uma espécie de “morte civil”. Este último facto pode ser comprovado pela leitura de uma carta interceptada pela PIDE, que tinha sido enviada a Namora, em 1967, pelo director do Jornal de Notícias, Nuno Teixeira Neves: “Como profissional de imprensa não me furto, de todo, a um certo remorso por pertencer a uma vasta máquina, comandada, nem sempre contra vontade, pela Censura, a qual, neste momento, como deve saber, está interessada em separá-lo, mais que nunca, do público, reduzindo ao mínimo o noticiário que lhe diz respeito e cortando as mais inofensivas prosas que o mencionem. A entrevista que teve a amabilidade de nos conceder há tempos foi completamente cortada e as restantes referências muito mudadas ou reduzidas.” (cf. Paulo Marques da Silva, Fernando Namora por entre os dedos da PIDE. A repressão e os escritores no Estado Novo, Edições MinervaCoimbra, 2009, p. 170).
            Idêntica situação acabou, aliás, por ser denunciada pelo jornal Portugal Democrático, na sua edição de Fevereiro/Março de 1967: “Fernando Namora […] é vítima de medidas de repressão que atingem toda a sua obra. A Imprensa está proibida de publicar a mínima palavra, a mínima nota, sobre os seus romances, ou mesmo sequer, fazer publicidade de qualquer dos seus livros. O nome de Fernando Namora é até proibido de figurar em anúncios de obras de que é co-autor”. (cf. Paulo Marques da Silva, ob. cit., p. 169).
            Embora alguns estudiosos considerem que Fernando Namora não pode ser considerado um autor neo-realista “puro”, como por exemplo Soeiro Pereira Gomes ou Alves Redol, a verdade é que Namora foi um dos grandes impulsionadores daquele movimento. Registe-se que ele é apresentado como o autor da ideia do Novo Cancioneiro e que esta colecção foi mesmo inaugurada com a sua obra Terra, editada em 1941. Ademais, a colecção Novos Prosadores iniciou-se também com um romance de Namora – Fogo na Noite Escura, editado em 1942.
            Ao longo de sensivelmente 50 anos de vida literária, Namora publicou mais de 30 obras, repartidas entre a poesia e a ficção. Retalhos da Vida de um Médico é talvez um dos seus livros mais emblemáticos, aquele “em que os leitores mais imediatamente captaram o intenso pulsar de humanidade e o sentimento fraterno que percorrem toda a obra de Namora, identificando autor e narrador num mesmo médico que vive as dores, misérias e frustrações de uma população rural do interior esquecido de Portugal na década de quarenta”. (cf. Dicionário de História do Estado Novo, direcção de Fernando Rosas e J. M. Brandão de Brito, vol. II, Bertrand Editora, Venda Nova, 1996, p. 656).
            Inspirado pelas suas experiências como médico no Alentejo, na Beira Baixa e em Condeixa, Namora escreveu a obra em questão, em 1949. Em Retalhos da Vida de um Médico, que conheceria uma segunda série em 1963, Namora denuncia, por exemplo, a miséria de um povo que para conseguir pagar ao médico, recorrendo ao sistema das avenças, tem praticamente de deixar de comer. E o contacto com o sofrimento desse povo acaba por imprimir à obra um humanismo e uma consciência cívica e fraterna difícil de encontrar na literatura nacional, como o leitor pode facilmente confirmar pela leitura da seguinte passagem: “Um homem morto. Uma realidade directa, que me tocava de perto. Tinha estropiado cadáveres na morgue; chegara a ver enfermos a morrer durante as lições nas enfermarias; vivia cercado de doentes, de misérias, de agonias. Mas tudo isso eram acontecimentos necessários para a lógica dos tratados. Esta morte dizia-me respeito. Conhecera o primo Lucas longe desse ambiente; era um homem, uma coisa viva e misturada nas recordações da minha infância; um ser pronto a sofrer, pronto à tortura e à felicidade. Os outros homens da enfermaria ou do necrotério não tinham para mim uma história, serviam para confirmar uma ciência.
Alguma coisa estava brutalmente errada. Haviam-me iludido, magoado. Recebia uma lição. Daí em diante sofreria até à angústia o que é ter uma vida nas nossas mãos, uma vida que nos é entregue: um misto de aventura, de responsabilidade e de desespero”. (cf. Fernando Namora, Retalhos da Vida de Um Médico, primeira série, 13.ª edição, Publicações Europa-América, Lisboa, 1971, pp. 52-53).
            Se é verdade que há escritores que retratam a alma de um povo, ler Namora é reencontrar o Portugal do Estado Novo. Por outro lado, contactar com os processos deste escritor na PVDE/PIDE/DGS é surpreender, em pleno funcionamento, dois importantes pilares que sustentaram o regime português: a polícia política e a censura.
            Na minha opinião, é fundamental que estes estudos ultrapassem o estrito círculo académico a que, maioritariamente, se encontram votados, de modo a que possamos conhecer, de um modo sério e rigoroso, o que foi o Estado Novo. Ainda que não possamos ignorar os importantes avanços historiográficos registados nesta temática, sobretudo, ao longo da última década, a verdade é que muitas outras investigações terão ainda de ser realizadas, pois, só para o leitor ter uma pequena noção do longo caminho ainda a percorrer, em 1974 o arquivo da polícia política portuguesa integrava cerca de três milhões de fichas individuais que correspondiam a um milhão e duzentas mil pessoas.

            Numa época em que, um pouco à semelhança do que sucedeu durante a “Grande Depressão” dos anos 30, o desemprego atinge proporções dramáticas, com as inevitáveis consequências (a todos os níveis…) daí decorrentes, acredito que vale a pena recordar o ideário que esteve na génese do neo-realismo. É que, inexplicavelmente, os espíritos parecem continuar adormecidos; quiçá à espera que a arte rompa a tendência actual e assuma, novamente, um carácter social e uma postura mais interventiva, que ajude a gerar cidadãos… uma premissa, em meu entender, incontornável para dar outro significado à Democracia.

Renato Nunes

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Saber

Em homenagem ao lema que acompanha este blogue:

«A Ciência é comandada pela curiosidade pelo mundo natural. E o objectivo primordial da ciência não é propriamente responder a questões mas antes questionar as respostas. Por outras palavras, em ciência, responder às perguntas significa questionar as respostas.»

In Eugénia Cunha, Como nos Tornámos Humanos, p.7, Imprensa da Universidade de Coimbra.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Post Scriptum

Como que... em dominó? foi o título de um editorial do inevitável José Manuel Fernandes nos tempos em que dirigiu o Público. O contexto foi o das primeiras eleições no Iraque pós-invasão e o de uma suposta euforia democrática porque alguns países do Golfo ensaiaram uns simulacros de eleições...

Como que... em dominó?

A tese do dominó (expressão mediaticamente virtuosa) foi um dos argumentos utilizados pelos voluntaristas neocons para justificar a intervenção americana de 2003 no Iraque. Alegava-se, na altura, que a substituição de Saddam significaria, qual estrada de Damasco, uma conversão do país ao modelo das democracias liberais e, por efeito de arrastamento, de todo o Médio Oriente. Não é preciso ser particularmente arguto para perceber que a previsão, além de teoricamente bacoca e desonesta, revelou-se um tremendo fracasso.

Quase oito anos volvidos, uma súbita quão inesperada vaga agita, agora sim, por contágio, todo o Magrebe e o Médio Oriente. Se as revoluções em marcha parecem espontâneas, os seus resultados estão em aberto, sendo possíveis vários desfechos consoante a sociologia política de cada país (não, os árabes não são todos iguais) : teocratização; democracias islâmicas conservadoras (porventura à imagem da Turquia); regimes musculados de juntas militares; novas lideranças carismáticas; processos de transição longos e de objectivos indefinidos.

Nada do que lá se passa terá a ver com Iraques e Afeganistões, antes nascendo de uma população predominatemente jovem e com relativo grau de formação mas sem expectativas e sem paciência para tiranos e conveniências geoestratégicas dos mesmos e dos seus aliados de conveniência (Europa, EUA; Rússia, Venezuela...). Deste caldo político mais ou menos caótico, surge a pergunta fatal: como é que se pode considerar as Relções Internacionais e a Ciência Política como fazendo parte dos saberes nerecedores da designação de científico? A pergunta é ainda mais pertinente se tivermos em linha de conta que alguns dos «teóricos» são, afinal, gente com grandes ligações ou interesses à decisão política internacional e que, na área têm sido aduzidos monumentais disparates sob a forma de wishful thinkings ou self fulfilled prophecies como o Choque de Civilizações. Ironicamente, Samuel Huntington que profetizou o choque de civilizações. não se lembrou, no seu Third Wave Democratization in Late Twentieth, que o mesmo poderia, hipoteticamente, suceder nos contextos muçulmanos.
Interessante é que a noção de terceira vaga aplicava-se à democratização da Europa do Sul e, depois, do Leste, países que muitos «cientistas políticos» consideravam à margem das possibilidades de democratização.
Manda a prudência que se se espere para ver o que vai acontecer.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011



Apesar de as estrelas da bandeira da UE não representarem os Estados membros (ao contrário do que acontece nos EUA, por exemplo), a imagem está bem conseguida.


P.S. Não deixará de ser significativo que o Tratado de Lisboa proclame que pos símbolos não são obrigatórios nas cerimónias oficiais...

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

What's in a name?

Às 18h00 de hoje vou ter uma sessão de formação sobre Escola Virtual. TIC, pois está claro! Abreviando agora a questão de saber se os problemas da educação serão solucionados com a panaceia destes neo-alquimistas do teclado, há algo de saborosamente irónico na designação desta formação....

O Regresso do Cinismo

Os dias que correm sabem a fel. Ele é o FMI, ele é austeridade/austeritarismo, ele é o País do faz-de-conta, ele é os 30.000 que vão para a rua, ele é a finança que proclama em Davos, sem pudor e sem que lhe quebrem os dentes, que o «excesso de regulação» (não, não é peta) prejudica a banca e, por arrastamento, a economia, ele é uma (des)União Europeia que quer impor um dumping social evidente como forma de «resolver» a crise em vez de aproveitar os ventos favoráveis do outro lado do Atlântico para reconstituir algo vagamente aparentado com um sistema de controlo dos mecanismos financeiros, no fundo, domesticar a globalização... Não, nada disso, o que importa é que a Alemanha imponha o modelo do seu Banco Central ao resto da Europa ao jeito do directório em que tudo se decide nos corredores das chancelarias. Regressou o Cinismo como forma de fazer política na Europa... E, pior, Merkel não viveu o nazismo...

sábado, 5 de fevereiro de 2011

Portugal na Balança da Europa

A sugestão de leitura do Sérgio incitou-me à pesquisa. O título pareceu-me logo à partida sugestivo havendo uma alusão clara da subserviência de Portugal perante a Europa. Ainda na altura não se falava do FMI, nem de União Europeia A Conquista da liberdade em Portugal não foi uma tarefa fácil, pois ela depende do povo, da sua vontade de mudar as mentalidades e lutar pela sua liberdade. Em Portugal isso só aconteceu verdadeiramente a partir 25 de Abril de 1974.

Fiz uma breve busca na Internet sobre a obra "Portugal na Balança da Europa" de  Almeida Garret , onde encontrei uma breve síntese do livro no Instituto Camões, e um link onde está o livro em formato pdf . Li apenas umas linhas onde constatei imediatamente a ideologia de Almeida Garret  sobre o Portugal do século XIX.
Transcrevendo-se um breve excerto do livro percebem-se as semelhanças com o Portugal de Hoje: "D'essa fatal corrupção das sociedades nasce o maior inimigo da liberdade o indifferentismo. Quando uma nação pervertida e podre chega a cahir n'este estado paralytico, nem há que esperar para a liberdade nem que recear para o despotismo"

Entretanto...

A União Europeia vai exibindo a sua triste irrelevância internacional perante a actual redefinição política em curso do Magrebe ao Médio Oriente. A Turquia e o Irão agradecem.

Sugestão

Uma sugestão de leitura para estes dias (perdoem-me a estultícia) seria Portugal na Balança da Europa, um tratado político sobre as grandes opções de Portugal na Europa, seu espaço natural (?) de inserção. A prosa referia-se a um Portugal, Ibéria e Europa nas encruzilhadas das lutas ente liberais e absolutistas. Mas no essencial a coisa permanece interessante para os dias que temos. Ah, é do Almeida Garrett.

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Actualidades

Não percebo como se dá crédito a um discurso como o de Passos Coelho que refere que a saída da crise seria privatizar todas as empresas públicas que dão prejuízos avultados. Deu o exemplo salvo erro das transportadoras como as principais despesistas.
Concordo que deve haver um maior rigor na gestão, no entanto há uma coisa que deve ser tida em conta,não há nenhuma entidade privada que pegue na CP ou REFER, e se isso acontecer vão fechar muitas linhas mantendo só aquelas que dão lucro. Isto terá como consequências o abandono do interior e a sobrecarga do transporte rodoviário. Que eu saiba não temos poços de petróleo. Não queremos amenizar a dívida?!?!