terça-feira, 16 de novembro de 2021

Entre poesia, prosa e reflexões sobre o ensino

 À medida que vou lendo o livro "Pedra após pedra. A palavra- Diário III" vou conhecendo melhor a experiência do Renato Nunes  por terras açorianas, enquanto Professor e Ser Humano. O Renato deixou fluir a caneta no seu caderno de capa preta e escrevia poesia à noite ao sabor do silêncio e de um heterónimo que ele designou Fernando Alva.

Recordo-me quando o Renato me ofereceu o primeiro volume do seu diário por terras açorianas disse-me  "Tiago lês isso no instante". O Português nunca foi a  minha disciplina preferida na escola e a poesia nunca foi dos conteúdos que gostei mais. 

Nunca vou esquecer as aulas do Secundário onde tive a sorte de ter a professora da Florbela Pires, que infelizmente nos deixou precocemente em consequência de um cancro fulminante. Da Florbela recordo o seu sorriso e alegria de viver. Lembro-me quando Florbela me entregou um teste de Português onde eu obtive a classificação de Bom. Era um teste de poesia, tenho pena de já não saber onde está esse teste, gostava voltar a ler o poema passado mais de 20 anos. Nunca me vou esquecer da frase que ela me disse quando fazia a correção "foste quem melhor percebeu o poema". As minhas memórias da minha adolescência são muito curtas, no entanto esta passagem nunca irei esquecer, provavelmente pela surpresa do comentário e da nota obtida.

Voltando ao Renato Nunes e ao primeiro volume do seu diário, não o li em poucas semanas mas tentei perceber o ele escreveu. Acabei por escrever 3 textos no blogue: 

Pedra após pedra- A palavra Diário I (2012-13) Fernando Alva (I- Educação Especial;

Pedra após pedra- A palavra Diário I (2012-13) Fernando Alva (II- A Família);

Pedra após pedra- A palavra Diário I (2012-13) Fernando Alva (III- Sensibilidade e Humildade).

(...)

Parei um pouco e  li num ápice  o texto do Renato Nunes escrito escrito em Dezembro de 2017 Ódio à escola. Aquando da leitura  recordei as minhas últimas aulas de Geografia numa turma do oitavo ano. Este ano letivo estou a lecionar pela primeira em regime de semestralidade e comecei a lecionar Geografia no segundo terço do programa do sétimo ano que não tinha sido acabado no ano letivo transato. A turma é muito barulhenta, heterogénea e com cerca de 27 alunos. Optei pela estratégia de os colocar a escrever, visto que eles não terem manual do 7º ano, e a realizar fichas em simultâneo. As estratégias acabaram por surtir efeito no entanto no entanto senti a pressão de ainda ter o livro do oitavo ano para lecionar e as aulas terminariam cerca 40 tempos depois. Os conteúdos do oitavo são imensos e não há tempo para os conseguir lecionar de forma calma. Atualmente vou com cerca de 12 tempos nos conteúdos do oitavo ano e apercebo-me das  dificuldades que os alunos estão a ter para conseguir acompanhar o ritmo. Na aula do dia 11 de Novembro fiz uma questão que pensava que grande parte da turma sabia responder, e qual não é o meu espanto quando observo o silêncio total na sala e apenas alunos a dizer que não sabiam, caiu-me a ficha.

 A pressa é inimiga da perfeição. Eu à semelhança do professor do 1º ciclo do texto Ódio à Escola estou a correr contra o tempo, tenho uma turma enorme à frente e sinto frustração por saber que a mensagem não está a passar aos meus alunos. Não há maior revolta e tristeza para um professor quando percebe que não consegui transmitir a mensagem.


sábado, 13 de novembro de 2021

Inquietações (Clube de discussão do Fumaça)


Texto de Maria Almeida do Fumaça a apresentar mais uma conversa do inquietações no dia 10 de Novembro de 2021.

"Olá. 

Hoje é dia de Inquietações, o clube de discussão da Comunidade Fumaça. 

"Vamos Comprar um Poeta" de Afonso Cruz vai ser o ponto de partida de uma conversa sobre a arte e o seu propósito, o capitalismo e o materialismo.

Este pequeno livro transporta-nos para uma sociedade imaginada onde cada pessoa tem um número em vez de um nome, os alimentos são medidos com total exatidão e os afetos contabilizados ao grama. Neste universo, as famílias não têm animais de estimação, têm artistas. E é assim que os protagonistas acabam a comprar um poeta e levá-lo para casa."


Nesta fase do ano letivo a argúcia para resolver problemas não é a mesma do inicio do ano letivo. Quando tenho mais  responsabilidades por vezes sinto que não consigo chegar a todo o lado. 

Conversar num ambiente de tertúlia sobre temas que eu me revejo ajudou-me a desbloquear e a preparar com mais calma o dia seguinte. Participar numa conversa do Fumaça para mim foi uma vitória como foi ter conseguido gerir a minha reunião enquanto diretor de turma. Pequenas vitórias que fazem crescer enquanto pessoa.

Convido-vos a comprar o livro, após a sua leitura vão observar o vosso dia a dia de uma outra forma.

terça-feira, 26 de outubro de 2021

Palavras de um Professor

 Há momentos em que as lágrimas nos caem involuntariamente quando sentimos a voz do nosso filho  a largas centenas de quilómetros. É duro, muito duro ser professor nos dias que correm. 

Dói demasiado quando as coisas correm mal em catadupa, falhamos em consequência do cansaço que aumenta o medo de falhar.  Em frente de um público não podemos mostrar insegurança, mas por vezes é inevitável em consequência da pressão, da burocracia, de querer chegar a todo o lado ao mesmo tempo e não conseguir. 

Os papéis acumulam-se ao lado da secretária assim como as tarefas para o dia seguinte. Recordo-me hoje de manhã enquanto fazia uma pausa para comer uma sandes no bar da escola,  desabafei com uma colega de Geografia " por mais anos que tenha de experiência o cansaço nesta fase do ano letivo é inevitável " Ela disse-me "Tiago não desanimes ainda tens muitos anos pela frente". Depois de ela ter dito aquilo pensei "será que eu vou aguentar este ritmo durante muito mais anos, bem tendo em conta o panorama extra ensino talvez não tenha escolha"

Trabalho imenso para melhorar e conseguir ser melhor professor mas esbarro muitas vezes em pensamentos que limitam o desenvolvimento das minhas capacidades. Isso enerva-me tanto.

Ser professor é sentir muitas vezes a desilusão quando preparamos tudo para que as coisas nos corram bem e depois a turma não nos deixar explicar os conteúdos com a clareza desejamos. Fico triste por saber que não correu tão bem, com imensas dores de cabeça, no entanto procuro encontrar forças na esperança que o próximo dia será melhor. 

Ser professor é ser resiliente é abdicar de ter tempo com os nossos filhos e familiares e dedicar o nosso tempo aos outros na esperança de ouvir um dia destes um Obrigado. Estou tão habituado a ouvir criticas ou chamadas de atenção dos alunos dos colegas que até me esqueço daquela vez em que os alunos do EFA em Rio Maior me disseram " Obrigado professor" ou no Fundão quando um aluno do secundário me disse na última aula do ano letivo após todos os restantes alunos terem saído da sala  "O professor explica muito bem, podia ser é mais simpático". Fiquei surpreendido, se calhar devia perguntar mais a opinião dos alunos sobre mim. 

Escrevo este texto depois de um início de semana menos bom na esperança que com trabalho dias melhores virão. 

sexta-feira, 22 de outubro de 2021

A menina do 2º ciclo

Este ano letivo estou a lecionar no Plano Casa.

Comecei há cerca de duas semanas e a minha tarefa é dar apoio a uma instituição de acolhimento de raparigas que são retiradas ao seu lar familiar por diversos motivos. 

Quando entrei lá no primeiro dia observei um meio calmo, estranhei um pouco confesso. A Educadora muito simpática, afável e sempre com um sorriso na cara. Para ser Educadora numa Instituição de acolhimento de crianças é preciso gostar mesmo daquilo que se faz e dedicar-se de corpo e alma a uma causa tão nobre, admiro-a muito por isso.

Sobre o meu primeiro dia, lembro-me de uma conversa que a Educadora partilhou comigo enquanto eu estava a dar apoio na sala de estudo. Ela indicou-me as peripécias que tinha tido durante a madrugada onde teve que ir buscar uma residente da casa a um hospital de Lisboa em consequência dos excessos cometidos, lembro-me perfeitamente da expressão dela sobre a sua menina "Ela está a fazer mal a ela própria".

O apoio que eu faço é muito generalizado e acabo muitas vezes por divagar por caminhos das vidas das educandas. Uma delas ainda no segundo ciclo quando eu lhe coloquei um mapa de Portugal, perguntei-lhe onde era Lisboa, ela não me conseguiu dizer onde era, indicando-me que gostava de ir ao Porto, pois tinha lá um irmão ou um primo. Acabei por dizer-lhe onde era Lisboa e ela conseguiu depois dizer onde era o Porto. Aquando da conversa disse-lhe que o Porto ficava muito distante do local onde ela se encontra, cerca de 5 horas de carro. A menina dizia muitas frases repetidamente "pois é muito longe" "gostava muito de lá ir".... Notei um discurso vago e vazio. Percebi imediatamente a falta de bases e alguém que lhe indicasse um rumo. Devido ao pouco acolhimento para a minha presença  das restantes educandas voltei à menina do segundo ciclo no segundo dia e entre a realização dos exercícios de Português íamos divagando por histórias da sua vida que eu levanto aqui um pouco da ponta do véu. Eu percebi que ela de 15 em 15 dias já vai a casa de familiares e subentendi a sua  da vontade de sair daquele espaço e voltar para a família. Não percebi se ela gostou de estar em casa dos familiares no fim de semana, pois enquanto falávamos deixou escapar a expressão "felizmente ou finalmente (não me recordo ao certo) voltei para a instituição". Sinto quando falo  com ela no seu tom monocórdico e pouco expressivo que ela ainda não está preparada para estar ali e o lar familiar também não será o local ideal. Assustou-me ouvir repetidas vezes ela dizer "Eu quero seguir a minha vida, eu não quero ser como as outras meninas". Quando ouvi dizer a primeira vez fiquei contente, mas quando a ouvi dizer quatro vezes fiquei preocupado. Após as sucessivas repetições senti que não era ela a pensar mas uma cartilha que lhe foi comunicada e ela segue-a sem perceber bem o seu significado. Na instituição sinto-a isolada e perdida. No terceiro dia eu propositadamente não fui ter com ela. Quando faltava pouco mais de meia hora para me ir embora veio ter comigo olhou para o meu telemóvel observou o meu filho e a partir daí decorreu mais uma conversa espontânea.

Fico por aqui nesta minhas novas experiência como professor.

 

segunda-feira, 4 de outubro de 2021

Educação e Arte

Uma escola deve ser um espaço embelezado essencialmente pelos alunos. Este ano letivo no Agrupamento de escolas de Vendas Novas, recordo-me perfeitamente nos primeiros dias andar "a partir pedra" de modo a que me apresentassem os cantos à casa. Assim do nada e com muita sorte deparei-me com uma pessoa muito simpática que me mostrou o Agrupamento de Escolas nº 1 de Vendas Novas. Subi as escadas e deparei-me com dois ou três magníficos quadros na parede da escola que me fizeram por momentos parar, deixar de a ouvir e contemplar a beleza daquelas obras de arte feita por alunos. Pedi-lhe desculpa em consequência de por breves instantes deixar de ouvir mas foi mais forte do que eu.

Gosto muito da minha escola pela forma bonita como está embelezada por dentro. Na minha opinião a arte permite aumentar a criatividade dos alunos.





Trabalhar na escola de hoje é um desafio diário, pois a heterogeneidade  dos alunos é cada vez maior e temos de saber lidar como imensos alunos com profundas dificuldades. Por vezes não é fácil mas improvisamos à nossa maneira.

Lembro-me que o Duarte pergunta por muitas vezes o significado da morte à maneira dele. Nós tentamos sempre suavizar e dizer-lhe que está a dormir. 

Para fazer a ligação entre a arte, as dificuldades de aprendizagens e o Duarte vou citar um excerto do II diário escrito por Fernando Alva designado "Pedra após pedra". O Renato Nunes autor do livro que criou o pseudónimo Fernando Alva enquanto narrador das suas peripécias enquanto professor de Ensino Especial nos Açores.

Cito a pág. 120 " ...Vivo em função dos outros. Falta-me um equilíbrio suficiente para me esquecer de mim. 

Hoje, fui à escola, talvez a minha segunda casa, pedi a um menino com Perturbação do Espectro do Autismo que folheasse uma obra sobre Rembrant, pintor do século XVII, da designada escola realista. Ao ver "A descida da cruz", os olhos do jovem condoeram-se com o cenário dantesco. Depois de chocar com a mãe de Jesus deitada no chão, quis saber se estava morta e respondi-lhe que por certo havia apenas  desmaiado. Senti-o mais tranquilo, mas os seus olhos rapidamente regressaram ao corpo martirizado de Messias, magro, barbudo e cabeludo....Que turbilhão de emoções terão atravessado a poderosa armadura daquele menino habituado a desviar o olhar?

Um colega de trabalho (não digo a profissão ressalve-se), vendo esta minha teimosia em expor "estes jovens" (para mim são apenas jovens) às mais nobres revelações artísticas, riu-.se sobranceiramente e jurou-me que não valia a pena.

Não sei se, na verdade, o faço mais por eles do que por mim próprio. Mas tenho a certeza absoluta que vale a pena. Quase todas as armaduras para não dizer todas têm um calcanhar de Aquiles e arte pode destruir muitas barreiras. 

Van Gogh, Da Vinci, Rembrandt ... decisivamente, eu irei continuar."

quinta-feira, 1 de julho de 2021

Intervenções Político Ideológicas - Autor Renato Nunes

 Nuno Palma, professor de História Económica na Universidade de Manchester, participou recentemente na 3.ª Convenção do Movimento Europa e Liberdade (MEL) com uma comunicação intitulada “As causas míticas da divergência económica portuguesa”. Ao longo da sua prelecção, entre outros aspectos, Nuno Palma denunciou a suposta falsificação da nossa História por parte das entidades oficiais: “os partidos da Democracia e em especial os da esquerda construíram uma narrativa que associou o atraso económico e social do país ao Estado Novo”, mas “essa narrativa é falsa. O Estado Novo até correspondeu a um período de rápida convergência económica com a Europa ocidental”. O salazarismo “resolveu o problema do analfabetismo”: nos anos 50, entre as crianças, o analfabetismo “já era absolutamente residual”. Ademais, prosseguiu, os manuais escolares do 12.º ano de escolaridade não apresentam bibliografia científica em relação ao Nazismo/Fascismo e ao Estado Novo, sendo apenas “referido o comunista historiador Hobsbawm e Fernando Rosas…” — ora, bastará consultar alguns manuais de História para perceber que este último argumento é pouco rigoroso. De resto, numa entrevista que posteriormente concedeu ao Jornal Económico e que divulgou no seu blogue “Portugal no longo prazo”, Nuno Palma foi mesmo mais longe: “O que é essencial percebermos, é que o licenciado Pacheco Pereira é um académico falhado. A suposta «história» que ele ou indivíduos como Fernando Rosas fazem é apenas política disfarçada de história. É tudo normativo, por isso não são capazes de conceber que outros queiram olhar para a História de forma objetiva e sem constantes julgamentos de valor” (https://nunopgpalma.wordpress.com/). Ainda em relação às afirmações de Nuno Palma a respeito dos manuais escolares de História, importa sublinhar que o aludido académico não menciona, estrategicamente, o facto de os programas oficiais aludirem às transformações verificadas, apesar de tudo, em alguns sectores da sociedade portuguesa, sobretudo a partir da década de 60 (de resto, sem essas transformações não seria possível compreender, por exemplo, as greves académicas).

Concluída a apresentação do orador principal, o moderador deu a palavra aos outros membros do painel e, por exemplo, de modo muito sintomático, João Marques Almeida destacou aquela que na sua opinião seria a principal conclusão da palestra apresentada por Nuno Palma: “Quanto mais um país é socialista e mais à esquerda, mais pobre é”.

Importa, desde já, registar que, atendendo à polémica provocada pelas palavras de Nuno Palma na Convenção do MEL, ele foi posteriormente convidado pelo jornalista Camilo Lourenço para participar no programa “A cor do dinheiro”. As duas intervenções em causa encontram-se disponíveis online (ver referências bibliográficas no final deste artigo) e ajudam-nos a compreender o pensamento do professor de História Económica.

Assim, na conversa com Camilo Lourenço, Nuno Palma procurou clarificar a sua tese: embora seja indefensável a ditadura, que tinha a censura e a polícia política (num artigo dado à estampa no jornal Público, em 8/6/2021, Nuno Palma classificou mesmo o Estado Novo como “uma ditadura execrável”), o regime salazarista/marcelista representou “um regime de relativa baixa repressão”, onde “não havia pena de morte” e no decurso do qual “houve algumas execuções extra-judiciais, mas que eram até relativamente baixas”.   

Comecemos pelos principais aspectos positivos (ainda que, diga-se, pouco inéditos) da intervenção de Nuno Palma: alertar para o peso enorme do endividamento externo de Portugal, para o enorme peso do Estado na sociedade portuguesa, para a deterioração da qualidade das instituições políticas nacionais, para a insustentabilidade da Segurança Social nos actuais moldes, para a delapidação dos fundos estruturais europeus, para as “portas giratórias” (clientelismo e caciquismo omnipresentes) e, por exemplo, em jeito de antevisão fundamentada, para os perigos que nos espreitam no futuro imediato, caso insistamos em perpetuar as políticas que têm vindo a ser implementadas.

Ora, pese embora o facto de Nuno Palma insistir em reafirmar a validade das suas afirmações com base em supostos estudos científicos, certo é que a sua comunicação representou, em traços gerais, o contrário do que significa fazer História. As suas descobertas apressadas constituem um amontoado de generalizações e acusações, com inequívoco pendor político-ideológico, que importará desconstruir. 

I ― Disse Nuno Palma que o regime salazarista/marcelista representou “um regime de relativa baixa repressão”, onde “não havia pena de morte” e no decurso do qual “houve algumas execuções extra-judiciais, mas que eram até relativamente baixas”. Ora, existem factos históricos que desmentem categoricamente as conclusões de Nuno Palma, nomeadamente: o campo de concentração do Tarrafal, as prisões políticas dos comunistas, mas também de espíritos liberais, a censura, os assassinatos consumados pela “PIDE” (caso de Humberto Delgado, em 1965, entre outros), a farsa dos “julgamentos” concretizados pelos Tribunais Plenários, as constantes coerções sobre os funcionários públicos por questões políticas e, por exemplo, a Guerra Colonial, em Angola, Guiné e Moçambique, entre 1961 e 1974 (com os crimes de guerra cometidos de ambos os lados, os milhares de vítimas, a delapidação de dispendiosos recursos desviados para o esforço bélico e que seriam fundamentais para o desenvolvimento dos países envolvidos…). Ainda nesta sequência, registe-se que a Guerra Colonial foi responsável por milhares de mortos, feridos e mutilados, para já não falar nas terríveis consequências psicológicas (traumas) que os ex-combatentes continuam ainda hoje a enfrentar (quase sempre, reflicta-se, sob a indiferença dos órgãos estatais).

II ― Sustentou Nuno Palma que o salazarismo “resolveu o problema do analfabetismo”, que, nos anos 50, entre as crianças “já era absolutamente residual”. Como é evidente, para fazer História, Nuno Palma não pode limitar-se a mobilizar apenas os números que mais convêm à sua tese, neste caso falando tão-só do analfabetismo entre as crianças (e o analfabetismo global, que em 1970 rondava os 26%? — PORDATA — e como ignorar, apesar de tudo — como ele insiste em fazer — o papel pioneiro desempenhado ao nível da alfabetização pela I República, ainda que em circunstâncias muito complicadas, de resto, agravadas pela participação do país na I Guerra Mundial?). Poderíamos, de resto, estabelecer uma conclusão idêntica no que diz respeito à suposta convergência económica do país em relação à Europa Ocidental, durante o Estado Novo, mas já durante os “Trinta Anos Gloriosos” (fim da II Guerra Mundial — início da década de 70) — e com a existência de um império colonial… dois “pormenores” contextuais que o orador se esqueceu convenientemente de explorar... 

Importa sublinhar que o Estado Novo foi um regime repressivo que insistiu, contra todos os ventos (ONU, EUA, grupo de novos países nascidos do processo descolonizador dos anos 50 e 60…), em perpetuar um estratégico Império colonial e que durante a II Guerra Mundial (1939-1945) estabeleceu rentáveis ligações comerciais, quer com a Alemanha Nazi, quer com a Inglaterra (nomeadamente em relação ao volfrâmio). Pese embora as transformações verificadas, a verdade é que a estrutura do país permaneceu idêntica durante o salazarismo/marcelismo: agricultura de subsistência, indústria incipiente e com fortes ligações das oligarquias ao poder central, forte condicionamento à iniciativa privada, manutenção dos monopólios e do caciquismo encobertos pela forte máquina repressiva e censória, concentração da riqueza em elites, enquanto a maioria da população passava fome e mantinha uma mentalidade profundamente conservadora (sobretudo nos meios rurais), mesmo após a liberalização (fracassada) da era marcelista (1968-1974)…

Mas debrucemo-nos ainda sobre a questão do analfabetismo. Como escreveu Adélia Carvalho Mineiro, ao Estado Novo interessava “que todos aprendessem a ler e escrever ― condição segura para se propagandear a ideologia ― mas que não se fosse muito além da escolaridade obrigatória” (Adélia Carvalho Mineiro ― Valores e Ensino no Estado Novo. Análise dos Livros Únicos, p. 293). Tratava-se, por conseguinte, de um sistema educativo autoritário e repressivo orientado para formatar os alunos para a obediência (se necessário, à custa da dolorosa “menina dos cinco olhos”, leia-se “palmatória”), para a memorização e simples repetição, para a perpetuação da hierarquia social (filho de camponês seria camponês) e para a permanente subjugação da mulher, no plano social, familiar, financeiro e profissional. Um ensino, portanto, que pretendia ensinar a ler e a escrever, fundamentalmente para garantir a sua perpetuação no poder e que, nessa sequência, divulgava uma narrativa nacionalista e hagiográfica da História de Portugal. Falamos, afinal, de um sistema educativo marcado pela falta de docentes, pela desvalorização e subalternização da classe profissional (veja-se o caso dos regentes escolares e a necessidade dos professores assinarem uma declaração de concordância com a Constituição de 1933 e de renegação do Comunismo), a política do livro único (oficialmente aprovado pelo regime), a integração dos jovens (7 a 14 anos, limite cronológico que poderia ser estendido) na Mocidade Portuguesa, que adoptou a saudação fascista, a intervenção do regime no casamento das professoras, que carecia de autorização do Estado Novo (Rómulo de Carvalho ― História do Ensino em Portugal. Desde a fundação da nacionalidade até ao fim do regime de Salazar-Caetano, p. 762). E muitos outros exemplos poderiam ser aqui invocados, a respeito de um sistema que apenas em 1960 consagrou a obrigatoriedade de as mulheres frequentarem a escola até à quarta classe. Em sentido inverso, importará, no entanto, não esquecer a construção de uma rede de escolas nacionais ou as políticas educativas reformistas de Veiga Simão, já na era marcelista (em 1973, seria aprovada uma lei que previa, por exemplo, a institucionalização da educação pré-escolar e a extensão da escolaridade obrigatória de seis para oito anos ― Rómulo de Carvalho ― ob. cit., p. 809).

III ― Nuno Palma alude ainda a outros supostos “indicadores de bem-estar” que caracterizaram a sociedade portuguesa durante o Estado Novo, essa mesma sociedade, na qual o alegado especialista económico parece desconhecer que muita gente andava descalça, incluindo centenas de crianças. Ora, sendo certo que a mortalidade infantil desceu ao longo do regime, é ou não verdade que em 1974 ela continuava a ser muito superior em relação a vários países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE)? É ou não verdade que a década de 60 foi marcada, em Portugal, por elevadas taxas de emigração? E qual a razão que levou milhares de portugueses analfabetos e miseráveis a sair, clandestinamente, da pátria, por exemplo, em direcção aos andrajosos bidonvilles de França? E, já agora, qual a diferença entre o nível de vida dos portugueses que, nas décadas de 60 e 70, viviam nas cidades e nos campos? E qual o peso para as estatísticas das remessas enviadas para Portugal pelos nossos emigrantes para essa suposta convergência nacional em relação aos países da Europa Ocidental? Afinal, como recentemente escreveu o historiador Fernando Rosas a respeito da realidade portuguesa: “Ao chegar a 1973, o salário médio nacional era 25% do alemão, 29% do francês e menos de metade do espanhol; as famílias mais ricas (4,9 % do total) concentravam um quarto do rendimento familiar global; um terço das famílias portuguesas não dispunha de rendimento anual mínimo para satisfazer as necessidades elementares; 36% dos alojamentos familiares não tinham luz elétrica e 41% não dispunham de saneamento básico” (Público, P2, 20/6/2021, p. 17).

Ainda a este respeito, no blogue de Nuno Palma é possível ler uma das suas mais recentes intervenções: o Estado Novo não foi fascista, mas sim “uma ditadura nacionalista de direita”, “como afirmam claramente os verdadeiros especialistas”. E para concluir, num golpe de génio: “Aliás os verdadeiros regimes fascistas tinham orgulho nisso, mas o Estado Novo nunca se definiu a si próprio como tal” (https://nunopgpalma.wordpress.com/)... 

IV ― Segundo Nuno Palma, o Partido Comunista Português nunca lutou pela liberdade e pela democracia, sendo assim falsas as representações veiculadas na Fortaleza de Peniche, onde se diz que ali estiveram presos aqueles que lutaram pela democracia e pela liberdade. Pese embora ser forçoso reconhecer que os crimes cometidos pelos partidos comunistas durante o século XX, por exemplo na URSS, foram igualmente comparáveis e por isso igualmente condenáveis aos que foram cometidos pelo Nazismo e pelo Fascismo (ver Alain Besançon ― A dor do século. Sobre o comunismo, o nazismo e a unicidade da Shoah, p. 138), é fundamental destacar o extraordinário papel desempenhado pelos comunistas portugueses na luta contra o Estado Novo. Uma luta que implicou, frequentemente, colocar em causa a sua própria sobrevivência. De resto, não foram apenas os comunistas que estiveram presos em Peniche (e nas restantes prisões políticas e no campo de concentração do Tarrafal). Já agora, não foram apenas os comunistas que foram vigiados, perseguidos, torturados e até mesmo mortos pelo regime de Salazar/Marcello Caetano. Escrever um simples livro poderia implicar a prisão, como, por exemplo, sucedeu com Miguel Torga, em 1939-1940, e com muitos outros cidadãos portugueses, facto bem evidente quando se consultam os arquivos da “PIDE” na Torre do Tombo, em Lisboa (será que Nuno Palma algum dia se predispôs a desenvolver essas e outras árduas pesquisas nos arquivos?).

Escrever e reescrever a História é um pouco como estar dentro de uma sala completamente escura e ir procurando iluminar o mais possível o que nos rodeia, procedendo assim à sua interpretação e contextualização, do modo mais objectivo possível. Ora, Nuno Palma tem uma lanterna no bolso, mas só ilumina o que lhe dá mais jeito ou então insiste em não querer ver... Queixa-se de ser vítima de uma campanha de falsificação e manipulação, quando na verdade é ele que, embora invocando constantemente a ciência, insiste em apenas mobilizar os dados que mais lhe convêm.

Os novos ideólogos gritam frequentemente pela ciência e declaram-se imunes à ideologia. Deveriam assumir, porventura, uma atitude mais humilde: reconhecer que ninguém é completamente imune à ideologia e que, por isso, deveriam proceder a uma auto-crítica permanente. Daí o conselho de José Pacheco Pereira, que, afinal, serve para todas as pessoas verdadeiramente interessadas em perseguir o conhecimento e não apenas fazer parte de manifestações político-ideológicas: ESTUDEM!

Referências bibliográficas: Conversa de Camilo Lourenço com Nuno Palma, no programa “A cor do dinheiro”: https://fb.watch/64DFdES75S/; Movimento Europa e Liberdade (3.ª Convenção, 4/6/2021) — https://youtu.be/v4zr58fJq6s; Blogue de Nuno Palma ― “Portugal no longo prazo”: https://nunopgpalma.wordpress.com/; José Pacheco Pereira, “A indústria de falsificações do Estado Novo”, Público, 5/6/2021; Nuno Palma, “Cortinas de fumo: a indústria de falsificações e deturpações”, Público, 8/6/2021; Nuno Palma, “A profundidade histórica do atraso português”, Público, 27/6/2021; Fernando Rosas, “O milagre da economia sem política”, Público, P2, 20/6/2021; PORDATA: “Taxa de analfabetismo segundo os censos” (https://www.pordata.pt/Portugal/Taxa+de+analfabetismo+segundo+os+Censos+total+e+por+sexo-2517); Adélia Carvalho Mineiro ― Valores e Ensino no Estado Novo. Análise dos Livros Únicos, 1.ª edição, Lisboa, Edições Sílabo, 2007; Alain Besançon ― A dor do século. Sobre o comunismo, o nazismo e a unicidade da Shoah, Lisboa, Quetzal Editores, 1999; Rómulo de Carvalho ― História do Ensino em Portugal. Desde a fundação da nacionalidade até ao fim do regime de Salazar-

-Caetano, 4.ª edição, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2008.

Renato Nunes (renato80rd8918@gmail.com)


quarta-feira, 30 de junho de 2021

Manuel da Fonseca: a voz do Alentejo- Autor Renato Nunes




Em 1943, o escritor neo-realista Manuel da Fonseca (1911-1993) apresentou o seu romance Cerromaior à censura prévia. A análise da obra ficou a cargo do capitão Silva Dias.

Cerromaior é um livro que colheu as suas raízes na realidade alentejana, das décadas de 30 e 40 do século XX. Como escreveu Mário Dionísio: “Manuel da Fonseca nasceu para revelar o Alentejo” (Fernando Rosas e J. M. Brandão de Brito, direcção — Dicionário de História do Estado Novo, p. 366). Importa, de resto, não esquecer que Manuel da Fonseca tem as suas origens em Santiago do Cacém, no distrito de Setúbal. 

Com um total de aproximadamente 250 páginas, Cerromaior narra o percurso de Adriano, que, apesar das suas origens burguesas, foi gradualmente tomando consciência da injusta divisão do mundo entre os que obedecem e os que mandam e acabou mesmo por decidir colocar-se ao lado dos mais pobres e oprimidos. Pobres e explorados camponeses, aos quais ouvira relatar pungentes histórias de vida: “Olhe… nós éramos seis irmãos e a minha mãe passava fome por mor da gente. E o meu pai, quando chegava do trabalho, começava a ralhar e acabava a bater-lhe. Encolhidos a um canto, a gente chorava. Mais tarde, o meu pai deu em beber e abandonou o trabalho. Um dia, desapareceu; nunca mais voltou. E a minha mãe, que era doente, passou a ir à monda, à ceifa e a tudo o que aparecia. Depois, a minha mãe morreu…” (Manuel da Fonseca — Cerromaior, p. 184).

A descrição da situação vivida pelos ceifeiros aquando dos intensos trabalhos nos campos alentejanos, na canícula de Verão, é igualmente dramática: “Autómatos, os homens lançavam a foice. Cabeças tombadas, bocas abertas, barbas crescidas, pingando suor. Suor amargo na boca e nos olhos, escorrendo entre a pele e a roupa, empapando tudo. Um formigueiro a borbulhar da testa e a foice ia e vinha. / O manajeiro olhava ainda o relógio” (Manuel da Fonseca — Cerromaior, p. 166). Ao longo do enredo, destaca-se também a história de Doninha, antigo carteiro local, que acabou por enlouquecer e que depois foi preso, tal como um criminoso. Um episódio que levou um homem do Povo a protestar: “Não está certo. Digo e repito: leve-se para o hospital, para o manicómio; para a cadeia, não. Bolas! Não matou, nem roubou (Manuel da Fonseca — Cerromaior, p. 195). Ora, esta contundente crítica, sintomaticamente colocada pelo narrador na boca de um dos anónimos do Povo, denunciava um dos dramas da saúde psiquiátrica, durante o Portugal salazarista: a falta de respostas clínicas levava ao encaminhamento destas complexas situações para a polícia e frequentemente para a mendicidade nas ruas (Susana Pereira Bastos — O Estado Novo e os seus vadios, ps. 263 e 266). E a descrição do narrador acompanha-nos, sempre que pensamos na imagem da noite cerrada, na vila de Cerromaior, a ser invadida pelo grito de desespero do encarcerado: “Era a espantosa imagem do Doninha, todo nu por detrás das grades da cadeia, uivando para a vila” (Manuel da Fonseca — Cerromaior, p. 206).  

Cerromaior denuncia também a situação vivida pelas mulheres, vítimas dos permanentes abusos por parte de uma sociedade profundamente machista, como bem o demonstra o exemplo da criada Antoninha, alvo de uma tentativa de estupro e imediatamente despedida... Uma sociedade na qual os homens derretiam na taberna quase todo o dinheiro que, dolorosamente, ganhavam, para depois, frequentemente, espancarem as esposas já em casa, onde reencontravam a nua realidade dos filhos com fome. Uma sociedade marcada pela palmatória na escola, pelos abusos dos poderosos patrões perante a fragilidade dos dependentes empregados sazonais, como bem evidencia o abate (a tiro) da cadela de João Codesso, após este se ter recusado a vender ou dar o pobre animal ao terratenente Carlos Runa, ou ainda os despedimentos de Maltês e de Toino Revel, motivados pelos meros rumores de que eles teriam publicamente denegrido a imagem do patrão. Uma sociedade, afinal, onde os mais pobres não podiam ter opiniões: “São como um rebanho: pedrada nos cornos, e boca calada” (Manuel da Fonseca — Cerromaior, p. 213). 

Ora, estas e outras matérias politicamente perigosas — o romance neo-realista encerrava mesmo com um acto de revolta de alguns camponeses — não poderiam ter passado despercebidas ao censor literário incumbido de analisar a obra. Eis as principais conclusões apresentadas pelo censor Silva Dias ao longo do seu relatório: “Este romance, tal como está concebido, não o julgo com possibilidade de ser autorizado”. E seguia-se a justificação: a obra em causa “apresenta ao leitor factos concretos que revelam profundas deficiências da estrutura social, entre nós. / A vida dura e miserável do trabalhador rural alentejano, a carência ao mesmo de assistência social, a indiferença do abastado pelo humilde que trabalha em seu proveito, cenas pornográficas e imorais efectuadas por pessoas de melhor condição, são neste romance postas em evidência, podendo concluir-se que o seu autor não mediu os perigos para a sociedade, de narrativas sobre pretensos preconceitos demolidores que levam os fracos ou os menos preparados a meditações condenáveis. / A descrição da desgraça a que chegou um antigo carteiro, que fora sempre zeloso e que enlouqueceu e foi levado para uma cadeia onde morreu, sem qualquer protecção das autoridades, dá-nos logo de começo uma má impressão do livro. / Depois espraia-se sobre a vida angustiosa do camponês, realçando-se as inúmeras agruras dos que vivem da terra, mais parecendo mendigos. As faltas de trabalho, a diferença, doentias, entre o patrão e o trabalhador e também exposições de atitudes indecorosas referentes aos amores clandestinos dum patrão, leva-nos à conclusão que inicialmente escrevi: o livro não deve ser autorizado, tal como é apresentado”. E, após mencionar que já tinha assinalado no original as passagens inconvenientes, acrescentou: “Um arranjo com o que fica, julgo tornar-se difícil, pelo sabor anti-social que pode ainda deixar transparecer” (EPHEMERA). No entanto, através de um posterior despacho superior (22/11/1943), o livro acabaria por ser autorizado, embora com cortes. Seria, de resto, interessante cotejar a versão inicialmente prevista por Manuel da Fonseca com os cortes solicitados pela censura, mas não se revelou, por enquanto, possível aceder a essas fontes (uma situação, de resto, muito comum quando se exploram os caóticos e dispersos arquivos da censura literária, durante o Estado Novo).

Seara do Vento foi outro dos romances escritos por Manuel da Fonseca que também foi analisado pela censura prévia. Em 1959, o censor literário coronel Fernando Salgado decidiu aprovar a sua publicação, mediante as seguintes conclusões: “ Retrata um meio rural, rude e de miséria, onde se sente formar o sentimento amargo e de revolta dos que se sentem escravos da terra e do patrão. […] / Parece-me, creio, que tudo isto tende a formar no juízo do leitor o sentimento de revolta contra a organização actual da sociedade. […] / É de deixar publicar, pois é do mesmo género explorado, há uns anos, pelos Fernandos [sic] Namora, Aquilino, etc., etc.” (EPHEMERA). Certo é que a reedição da mesma obra seria proibida em 1966, tendo como base, entre outros aspectos, os “novos elementos agora controlados sobre a tendência política do escritor e das suas possíveis ligações com o partido comunista” (Cândido de Azevedo — A censura de Salazar e Marcello Caetano, p. 608). A eventual ligação de Manuel da Fonseca ao Partido Comunista foi, por conseguinte, um dos motivos para justificar a interdição de um livro já anteriormente permitido, sublinhe-se, pelo mesmo censor (Cândido de Azevedo — Mutiladas e proibidas, p. 83)…

Manuel da Fonseca foi um dos mais destacados autores do neo-realismo português. Os dramas do mundo contemporâneo reclamam uma atitude mais interventiva, ainda que em novos moldes, de todos os cidadãos, nomeadamente dos intelectuais. Nesse sentido, o neo-realismo é uma lição que bem merece ser estudada, pelo que o reencontro com os seus autores revela-se uma necessidade premente…


Referências bibliográficas: Cândido de Azevedo — A censura de Salazar e Marcello Caetano. Imprensa, teatro, cinema, televisão, radiodifusão, livro, Lisboa, Caminho, 1999; Cândido de Azevedo — Mutiladas e proibidas. Para a história da censura literária em Portugal nos tempos do Estado Novo, Lisboa, Caminho, 1997; “Censura – despachos da direcção dos serviços da censura relativos a livros de Manuel da Fonseca”, EPHEMERA (26/6/2021); Fernando Rosas e J. M. Brandão de Brito (direcção) – Dicionário de História do Estado Novo, volumes I, 1.ª edição, Venda Nova, Bertrand Editora, 1996; Manuel da Fonseca — Cerromaior, 4.ª edição, Lisboa, Forja, 1976; Susana Pereira Bastos — O Estado Novo e os seus vadios. Contribuição para o estudo das identidades marginais e da sua repressão, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1997.

Renato Nunes (renato80rd8918@gmail.com)  


quarta-feira, 9 de junho de 2021

“Uma revolução há 46 anos”- Autor Luís Filipe Torgal

 No espaço de Opinião na Rádio Boa Nova, Luís Filipe Torgal apresenta um texto da sua autoria, alusivo ao 25 de abril. Luís Filipe Torgal é professor de História do Agrupamento de Escolas de Oliveira do Hospital, investigador e colaborador do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX da Universidade de Coimbra (CEIS20) e autor de vários livros e artigos científicos ou de intervenção cívica e conferencista.

“25 de abril de 1974 — «O dia inicial, inteiro e limpo / Onde emergimos da noite e do silêncio / E livres habitamos a substância do tempo» (Sophia de Mello Breyner). De madrugada, um grupo arrojado de capitães afetos ao Movimento das Forças Armadas (MFA) desencadeou uma ação militar que derrubou 48 anos de autoritarismos (Ditadura Militar, 1926-33, e Estado Novo, 1933-1974). Os revoltosos tomaram os locais estratégicos, em Lisboa (Terreiro do Paço, Quartel do Carmo, Casa da Moeda, Assembleia Nacional, ponte Salazar, Rádio Clube Português, Emissora Nacional, aeroporto da Portela, Quartel-General da PIDE/DGS…) e noutras capitais de distrito. O povo aplaudiu-os e, 6 dias depois, no «Dia do Trabalhador», um mar de gente saiu à rua para festejar e legitimar a revolução — só no cortejo de 1 de maio de 1974, em Lisboa, terão participado cerca de 1 milhão de pessoas que gritaram, em uníssono, «O povo unido jamais será vencido!».  

No dia 25 de abril, os militares sublevados quase não dispararam tiros (houve «apenas» 5 vítimas: 4 civis, assassinados por agentes da PIDE/DGS, e 1 agente desta polícia política morto por um militar quando fugia de uma multidão enfurecida). Preferiram exibir cravos vermelhos nos canos das suas armas.

O golpe militar do MFA convergiu numa revolução que depôs e exilou o presidente da República, Américo Tomás, e o presidente do Conselho, Marcello Caetano. Dissolveu a Assembleia Nacional. Destituiu os governadores civis do continente, os governadores dos distritos autónomos da Madeira e dos Açores e os governadores-gerais das províncias ultramarinas. Nomeou uma Junta de Salvação Nacional (JSN). Libertou e amnistiou os presos políticos e permitiu o regresso dos exilados. Originou a implosão dos organismos políticos do Estado Novo: PIDE/DGS, Legião Portuguesa, Mocidade Portuguesa, Ação Nacional Popular, censura/exame prévio e tribunais plenários.

A JSN — constituída por três generais, um brigadeiro, um coronel, um capitão-de-mar-e-guerra e um capitão-de-fragata —, presidida pelo general António de Spínola, assegurou a transição do poder até à nomeação de um governo provisório, que viria a ocorrer no dia 16 de maio desse ano.

À 1h30 do dia 26 de abril, o general Spínola leu ao país, na RTP, o comunicado da JSN, onde assumiu os seguintes compromissos: garantir a sobrevivência da nação no seu todo pluricontinental (decisão que questionava a essência do programa do MFA, o qual reconhecia que a solução para as guerras do ultramar era política e não militar); permitir a criação de associações políticas e a liberdade de expressão do pensamento; preparar o caminho para a eleição, por sufrágio direto, de uma Assembleia Nacional Constituinte e de um presidente da República.

Os dois anos que se seguiram até à elaboração e aprovação da Constituição de 1976 e à sua entrada em vigor foram agitados. Iniciou-se um processo difícil de democratização, descolonização e desenvolvimento cívico, cultural e educativo. Eclodiram confrontos acesos entre partidos e fações político-ideológicas, os militares do MFA e o general Spínola. Registaram-se rebeliões a 28 de setembro de 1974, 11 de março e 25 de novembro de 1975. Cometeram-se erros, pois o rumo de uma revolução é sempre doloroso e imprevisível. Portugal esteve prestes a soçobrar numa guerra civil. Mas os portugueses conseguiram reerguer-se, conciliar-se e fundar a III República — um regime democrático pluripartidário e semipresidencialista, assente na liberdade de expressão e na divisão dos poderes, que aderiu à União Europeia, em janeiro de 1986.   

Entretanto, afastámo-nos do «dia inicial, inteiro e limpo» idealizado por Sophia de Mello Breyner. A democracia esmoreceu. Por isso, medrou no país uma «direita radical» (inspirada em Marine Le Pen, Salvini, Trump e Bolsonaro) que renega o regime democrático fundado pela Constituição de 1976 e ambiciona fundar um novo regime. O alegado federador desse movimento acusa, indiscriminadamente, os partidos políticos, os seus líderes e militantes de corrupção, clientelismo e nepotismo. Como se tudo isto não existisse em doses colossais e insuportáveis nos regimes autoritários ou nas atuais «democracias iliberais» (dirigidas por Trump, Bolsonaro ou outros chefes populistas nada recomendáveis). Como se muito mais do que isto não tivesse persistido durante o Estado Novo de Salazar e Caetano: o escândalo sexual do Ballet Rose (esquema de pedofilia, prostituição e abuso de menores que envolvia altas figuras do Estado Novo e que foi encoberto pelo regime, mas denunciado na imprensa britânica, em 1967); o assassinato do general Humberto Delgado (1965) e de outros oposicionistas por esbirros de Salazar; o tráfico de influências para obter cargos e benefícios no setor público; a promiscuidade entre o Estado e os grupos económicos; a ação aterrorizadora da PIDE; as arbitrariedades dos tribunais plenários, com os seus juízes corruptos e manipuláveis; a chantagem, as prisões e as exonerações por motivos políticos; as eleições fraudulentas; as mulheres submissas e amordaçadas; o desprezo pela democratização da educação e o desinvestimento na melhoria das condições de vida das populações; a eternização da guerra colonial, que destruiu as vidas de muitos jovens, isolou Portugal da Europa e do mundo e inviabilizou o seu crescimento, numa época em que as economias dos países da Europa ocidental cresciam a todo o gás (os «Trinta Gloriosos» anos); a imposição do pensamento único e da censura, que mistificava a realidade e inculcava nos portugueses a ilusão de viverem num oásis de paz e prosperidade.   

Quem quer viver de novo na «noite» e no «silêncio»? O regresso a uma versão reciclada do populismo nacionalista e antieuropeísta significará sempre o retorno a um país autoritário, amordaçado, isolado, retrógrado e ainda mais corrupto e desigual. Creio que a Constituição de 1976 (que já foi revista sete vezes) reúne os instrumentos necessários aos ajustamentos do sistema político e à regeneração da democracia. Têm a palavra todos os portugueses e não apenas «os portugueses de bem» (seja lá o que isso signifique no discurso populista incendiário), os arrivistas e aqueles que prosperam exclusivamente à sombra dos partidos políticos que gravitam nas esferas do poder”.   


Luís Filipe Torgal  

“A revolução de 28 de maio de 1926 e o fim da Primeira República”- Autor Luís Filipe Torgal

No espaço de Opinião na Rádio Boa Nova, Luís Filipe Torgal apresenta um texto alusivo à revolução de 28 de maio de 1926. Luís Filipe Torgal é professor de História do Agrupamento de Escolas de Oliveira do Hospital, investigador e colaborador do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX da Universidade de Coimbra (CEIS20) e autor de vários livros e artigos científicos ou de intervenção cívica e conferencista.

"A Primeira República foi implantada a 5 de outubro de 1910, através de uma rebelião militar gerada pelo Partido Republicano Português, a Maçonaria e a Carbonária. Os seus protagonistas inspiraram-se nos ideais da Revolução Francesa de 1789, nas ideologias socialistas e nas conceções racionalistas e positivistas difundidas no século XIX.

Uma Assembleia Nacional Constituinte retintamente republicana aprovou a Constituição de 1911, que arquitetou um sistema parlamentarista, onde os poderes do Presidente da República e do Governo estavam cerceados pelo Congresso formado pela Câmara dos Deputados e o Senado.

Os republicanos encontravam-se empenhados em construir um regime demoliberal enquadrado por genuínas preocupações sociais. Daí a Constituição republicana suprimir os privilégios de nascimento e os foros de nobreza. Daí o governo provisório e os governos constitucionais, saídos da revolução, decretarem a lei da greve, leis da família e leis laborais progressistas, que tencionavam mitigar as desigualdades. Daí a obsessão dos republicanos combaterem o analfabetismo, através da escolaridade obrigatória e gratuita para todas as crianças dos 7 aos 14 anos, da abertura de mais escolas, da adoção de novos currículos e de pedagogias mais humanistas, do investimento na formação de professores e no aumento dos seus salários. Daí a publicação de arrojadas leis anticlericais que tinham o desiderato de criar cidadãos livres e emancipados dos dogmas e dos preconceitos impostos pela Igreja Católica. Uma Igreja Católica que, na perspetiva dos republicanos, estava dependente de um Papa que interferia de modo despótico na vida interna das nações e era constituída por um clero conivente com as velhas elites monárquicas.

Mas a Primeira República nunca conseguiu democratizar-se e socializar-se. E acabou sequestrada pelo hegemónico Partido Republicano Português(vulgo Partido Democrático)entrincheirado em torno do seu líder, Afonso Costa, até à revolução sidonista de dezembro de 1917. Depois do assassinato do ditador populista Sidónio Pais (14 de dezembro de 1918), do colapso do sidonismo e da derrota da Monarquia do Norte (janeiro de 1919), o partido atrás citado resistiu e manteve a sua preponderância, mas acabaria dividido e dirigido por personalidades bem menos prestigiosas.    

A obstinação do Partido Democrático e do seu líder carismático Afonso Costa por não suavizar a «intangível» Lei da Separação (do Estado das Igrejas) — que penalizava excessivamente a Igreja Católica e dificultava a liberdade religiosa — originou uma condenação do regime pelo Papa e uma consequente resistência da maioria do clero e dos crentes à República. Mais, a decisão de Afonso Costa de conduzir Portugal a uma intervenção total na Primeira Guerra Mundial, ao lado da Inglaterra e da França, na frente ocidental europeia e nas frentes africanas, garantiu a preservação das colónias portuguesas. Todavia, agravou as cisões entre os republicanos, acirrou as oposições monárquicas e católicas, mergulhou de novo o país na ameaça da bancarrota, inviabilizou a concretização do programa demoliberal e social republicano, originou uma intrusão dos políticos nas instituições militares e descredibilizou o regime perante as classes médias, o proletariado e os militares.

O contexto económico e social caótico onde naufragaram as nações no rescaldo da guerra impediu os republicanos de redimir e consolidar a Primeira República. Na Itália, nasceu, em 1921, o Partido Nacional Fascista, de Mussolini, que tomou o poder, no ano seguinte. Na Alemanha, o Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores (Partido Nazi) formou-se, em 1920, e tentou conquistar o poder através de um golpe de estado ocorrido em novembro de 1923. Hitler e o nazismo teriam de esperar pela nova derrocada económica e social europeia ditada pelo Crash da Bolsa de Nova Iorque (1929) e a Grande Depressão, para capturarem o Estado Alemão, em 1933. Noutros países da Europa vivia-se um combate não menos implacável entre fações socialistas internacionalistas e fações ultranacionalistas e autoritárias de teor «fascista».

Em Portugal, os governos republicanos continuaram a tomar posse e a desabar a uma velocidade estonteante, sem disporem de qualquer margem política e social para concretizarem projetos reformistas coerentes de salvação nacional. Verdadeiramente, ninguém respeitava a Constituição de 1911. O Partido Democrático, cada vez mais debilitado, continuava a manipular e a ganhar as eleições, e os restantes partidos conspiravam para o derrubar pela força. Por estas razões, a Primeira República foi agonizando num pântano de instabilidade crónica, até ser definitivamente derrubada por um pronunciamento militar ocorrido a 28 de maio de 1926.

O pronunciamento teve três chefes militares: o general Sinel de Cordes, simpatizante monárquico integralista, líder oculto do golpe e próximo do discreto mas hábil general republicano conservador Óscar Carmona; o general Gomes da Costa, veterano das campanhas de «pacificação» de África e da Primeira Guerra Mundial, crítico recalcitrante dos políticos e conhecido por um temperamento imprevisível; e o almirante Mendes Cabeçadas, herói do 5 de outubro e republicano moderado.

Os revoltosos dividiam-se em duas fações antagónicas: uma revolucionária de direita, que desejava instaurar um governo militar oposto aos partidos; a outra reformista, que acreditava ser possível reabilitar a República, extirpar as suas enfermidades e retornar à pureza inicial dos seus ideais. Ambas pretendiam acabar com a supremacia política do Partido Democrático.

A primeira fação, chefiada por Gomes da Costa, anunciou duas proclamações que declaravam a necessidade de o Exército implantar um «governo forte», com a «missão [de] salvar a Pátria» de uma «minoria devassa e tirânica» de políticos «irresponsáveis». A segunda fação, liderada por Mendes Cabeçadas, anunciou um programa que defendia um regime republicano regenerado, que reduzisse as despesas e regularizasse as contas públicas, organizasse uma justiça independente e célere e reorganizasse e modernizasse as forças militares.

Mendes Cabeçadas presidiu a um primeiro Governo, que incluía Salazar como ministro das finanças, Gomes da Costa na pasta da Guerra e Óscar Carmona na pasta dos Negócios Estrangeiros. Porém, Gomes da Costa discordou da atribuição de algumas pastas ministeriais, rejeitou as alegadas fidelidades republicanas e maçónicas mantidas por Cabeçadas, exonerou-o e assumiu ele próprio o cargo de presidente de um novo ministério, bem como as regalias de chefe de Estado interino. Esses dois governos duraram poucos dias. As decisões erráticas e extemporâneas de Gomes da Costa de exonerar os seus ministros António Claro, Óscar Carmona e Gama Ochoa, de acumular funções ministeriais e personalizar o poder deixaram-no isolado. Representantes das Forças Armadas encabeçadas por Sinel de Cordes ordenaram a sua demissão, prisão e exílio nos Açores. A 9 de julho de 1926, Óscar Carmona assumiu os cargos de presidente de um novo ministério e de ministro da Guerra. Em novembro do mesmo ano, assumiu também a presidência de República, caucionou e consolidou a nova solução ditatorial e viria a tornar-se o principal sustentáculo de Salazar.

Entretanto, perante a adesão alegadamente maciça e nacional à insurreição militar de 28 de maio, que eclodira em Braga e se estendera a outras cidades do país, o último governo do Partido Democrático, presidido por António Maria da Silva, demitiu‑se, as Câmaras foram dissolvidas, o Parlamento fechou e o presidente da República, Bernardino Machado, resignou. O historiador, António José Telo, escreveu que «nem o famoso bom povo republicano, nem as milícias, nem os comités de sargentos, nem os sindicatos, nem os partidos, nem sequer os responsáveis políticos lutaram por ela [República]» (Primeira República II. Como Cai Um Regime, 2011). Assim, a Primeira República morria, aparentemente, esgotada e enjeitada por todos.

Depois de um momento de indefinição sobre o destino da revolução, começou um novo ciclo na vida política do país. Primeiro moldado pela Ditadura Militar (1926-1933), onde foram instauradas as bases embrionárias da censura e repressão e o défice das contas públicas atingiu cifras inauditas. Perante a incompetência administrativa demonstrada pelas governanças militares, Salazar foi nomeado ministro das finanças, em 1928, com o poder de disciplinar os gastos de todos os ministérios e a missão de alcançar rapidamente a estabilidade financeira. Assim, iniciava-se o processo de transição para o Estado Novo (1933-1974), o qual, como afirmou Salazar — entretanto promovido a «salvador da pátria» —, numa entrevista concedida, em 1933, ao seu mestre da propaganda, António Ferro, era uma «ditadura que se aproximou, evidentemente, da ditadura fascista, no reforço da autoridade, na guerra declarada a certos princípios da democracia, no seu caráter acentuadamente nacionalista, nas suas preocupações de ordem social». Importa referir que os dois regimes autoritários que sucederam à Primeira República acabaram ainda por sofrer, entre 1927 e 1938, uma resistência vigorosa das oposições republicanas democráticas, socialistas, comunistas e anarquistas – resistência que, contudo, acabaram por esmagar.


O primevo regime republicano português caiu sem cumprir as suas promessas idealistas e voluntaristas de modernizar, democratizar e socializar o país e desse modo refundar e redimir a pátria. Não obstante, pelo que atrás ficou dito, impõe-se esclarecer que a Primeira República esteve muito longe das representações redutoras divulgadas por ideólogos da propaganda do Estado Novo, como João Ameal, que a caricaturaram como uma «balbúrdia sanguinolenta», ou propagadas por historiadores recentes, que viram nela uma aberração ideológica impulsionada por alguns intelectuais maçónicos, urbanos, ambiciosos e irresponsáveis. A função da História não é construir representações maniqueístas (e panfletárias) do passado, nem julgar de modo anacrónico os seus protagonistas, mas tentar compreendê-lo e representá-lo de forma objetiva, sustentada e problematizadora”.   


Luís Filipe Torgal

sábado, 5 de junho de 2021

O Nosso Henrique - Autora do texto Lucinda Maria

Após ver a foto do Henrique na sua página do facebook da professora Lucinda Maria, imediatamente me cativou ler o texto. O Henrique era conhecido por todos em Oliveira do Hospital, mas infelizmente não teve a sorte de nascer numa família que o fizesse crescer  como merecia.  Ler o o texto trouxe-me súbitas saudades do Henrique.

Passo a citar:

" Era assim o Henrique, eterno menino de fala cantante… franzino…olhar vivo. Nascido no seio de uma família humilde e marcada pelo álcool, que ia sobrevivendo com algumas dificuldades financeiras. Lembro bem a casa rasteirinha onde viviam, lá para os lados da fonte do Rebolo. Vários rapazes e uma irmã, a mais nova. 

O Henrique não foi à escola… Tinha algumas dificuldades cognitivas, assim como outro dos irmãos, precisamente o que viveu com ele até ao fim. Penso que os outros ainda são todos vivos… casaram e têm a sua vida normal.



Ele calcorreava as ruas da nossa terra… e ajudava uns e outros… fazia vários trabalhos. Sempre prestativo… sempre simpático… sempre humilde. Uma altura, ajudou numa peixaria. Com uma caixa de peixe à cabeça, apregoava:

- Peixe fêco! Peixe fêco!

E a sua voz fazia-se ouvir como uma canção infantil…ingénua e genuína, como ele próprio. Havia quem pretendesse “gozar” à custa dele. Penso que esses intentos não eram bem sucedidos. A sua perspicácia segredava-lhe sempre uma resposta pronta que desarmava os “espertinhos”. Podia contar muitos episódios que atestam bem esta sua característica. Vou contar apenas um.

Recordo-me do Henrique. Lembro-me de na década de 90 o ver a vender cautelas nas ruas de Oliveira do Hospital. Via-o como uma pessoa pobre com uma deficiência mas humilde e sempre pronto a ajudar.

Vou citar um texto que Lucinda Maria, professora aposentada do 1ºciclo, mora no concelho de Oliveira do Hospital. A professora Lucinda dignou.se a escrever um texto sobre o Henrique que me ajudou a conhece-lo e provocou em mim subitas saudades do Henrique.  

Passo a citar o texto de Lucinda Maria

"Certa manhã, saía o Henrique da casa comercial Júlio dos Santos, todo contente e sempre de ar afável. À porta, cruzou-se com um senhor engenheiro cá da cidade, pessoa bem conceituada, que entrava no mesmo estabelecimento. Ao vê-lo, o nosso amigo estendeu a mão para cumprimentá-lo. Ele correspondeu, mas resolveu dizer:

- Estou cheio de sorte! 

Meio admirado, o Henrique perguntou:

- Então poquê, senhole engenheilo?

- Porque ainda é cedo e é a primeira mão de porco que aperto hoje!

Prontamente, sem pensar duas vezes, ajeitando o seu boné de pala quase a tapar-lhe os olhitos vivos, o nosso Henrique respondeu:

- Então, eu ainda estou com mais sote, poque já é a segunda!

Perante isto, o que dizer? O que pensar? Como terá ficado o senhor engenheiro? Desconcertado, certamente. 

Era assim o eterno menino. A mim, chamava-me “senhola pofessola” e, muitas vezes, tentou vender-me cautelas, com aquela sua lógica de que “Há horas felizes!”. É verdade, mas, infelizmente, não gosto de jogo. Penso que nunca lhe comprei nenhuma, mas também nunca fui sarcástica com ele… sempre o estimei… como merecia, de resto.

Um dia, partiu… sem que déssemos por isso… sem ele próprio dar por isso. A sua voz cantante deixou de ecoar nas ruas da nossa terra. Ou será que não? No fundo, ele ainda está aqui. 

Lucinda Maria"

quinta-feira, 3 de junho de 2021

Família (música escola do Duarte)


O conforto do fim de semana em família. Foi delicioso ouvir o meu filho cantar esta música. 

Letra completa:

Sei que sou pequenino

Nem sempre me porto bem 

Mas o pai gosta de mim

E a mãe também


Quando estou longe de casa 

Penso que se tivesse uma asa

Voava, voava, voava....

Para os braços dos meus pais


Família

É o melhor do mundo

Não há tesouro 

Lá no fundo do mar

Que valha mais 

Que o abraço dos meus pais...




Uma magnífica homenagem à família e aos pais. Amei a música.
Obrigado Márcio (Professor de Música do Jardim de Infância de Travanca de Lagos), professores e auxiliares que tornam os momentos na escolas momentos de enorme felicidade.

sexta-feira, 21 de maio de 2021

História do Corinde e do Torcaz

Noite após noite e sempre que estou com o Duarte vou reinventando as múltiplas histórias que leio nos livros infantis.

A primeira vez que consegui adormecer o Duarte através narração de uma história, aconteceu apenas em agosto do ano passado quando estávamos no Luso. Nesse dia uns instantes após o almoço o Duarte abriu o estojo da mãe e encontrou lá um objeto que desconhecia um X ATO aberto. O Duarte de forma instintiva pegou na parte cortante e fechou a mão. Ele não se assustou, talvez por não se aperceber o que tinha acontecido. Quando chegou à cozinha,  abriu a mão e nós ficámos muito assutados pois ele não conseguiu explicar a origem do sangue. Já não me recordo se o Duarte chorou mas penso que não, neste caso a aflição foi apenas nossa. Felizmente ele não fez muita força quando apertou a mão e o golpe foi pequeno, ficou o alerta para nós.

Após realizarmos os curativos dissemos para ele segurar um  pouco de algodão e fechar a mão. Ele estava com sono e decidimos deitá-lo um pouco no sofá. Nessa altura adormecê-lo durante a tarde já era uma tarefa hercúlea. Eu decidi fazer uma coisa que adoro fazer sempre que vou ao Luso, ler as histórias da avozinha escritas há mais de quarenta anos, uma coleção de 7 ou 8 livros que o meu sogro tem.

Naquela tarde decidi abrir um dos livros que compõem a coleção e contei-lhe a história do Corinde e do Torcaz. Foi a primeira vez que li aquela história e dado a extensão e complexidade do texto limitei-me a ver as imagens e a narrar a minha história através das imagens  

Passado alguns meses já li a história varias vezes, mas devido às múltiplas alterações que já lhe fiz não consigo contar a história original,  no entanto conto a minha história com base no contexto expresso no livro.

O Corinde e o Torcaz 

"Há muito séculos atrás uma aldeia estava em festa e decidiu convidar os habitantes mais abastados das aldeias vizinhas para comer, beber e divertirem-se. Para a parte da diversão decidiram convidar dois cavaleiros para lutarem a cavalo, O Corinde e o Torcaz. 

O Corinde tinha um  bom coração e apesar de ser um valente cavaleiro não gostava muito de intrigas e conflitos, enquanto que o Torcaz era mais conflituoso estava sempre em lutas e brigas.  Ambos aceitaram o convite para a batalha que estava marcada para a tarde de um dia de primavera. há muito séculos atrás.

Ambos subiram ao cavalo com um pau enorme, era assim que se começavam as lutas nessa época. O Torcaz mais agressivo na fase inicial conseguiu deitar o Corinde ao chão através de uma forte pancada no peito. Nesse tempo usavam grande fatos de ferro que vestiam por cima da sua roupa e muitas vezes o peso da vestimenta era muito elevado, no entanto nesta altura os homens tinham muito mais força que hoje. Outros tempos.

Após o Torcaz ter deitado ao chão o Corinde a luta passou a ser realizada no chão através das espadas que tinham à cintura. No chão, com a espada o Corinde teve uma destreza maior   e apesar da maior agressividade do Torcaz este acabou por sair derrotado.

Após a luta ambos guerreiros tinham direito a um jantar, no entanto o Torcaz acabou por não aceitar e foi para casa cabisbaixo e enraivecido.

Passado umas semanas o Corinde foi dar um passeio a cavalo com os seus cães nas montanhas que envolviam a sua aldeia. Quando chegou ao cimo da encosta observou que no sopé da montanha  a aldeia dos mouros estava a ser atacada e observava já algumas casas em chamas.  O Corinde ficou apreensivo e decidiu soprar num objeto comprido que trazia sempre consigo que expelia um som alto e forte do conhecimento dos habitantes da sua aldeia. que chegaram poucos instantes depois.  

O Corinde e os amigos desceram a encosta em direção à aleia dos mouros que estava a ser atacada. Quando se aproximaram viram que as tropas do Torcaz estavam a tentar conquistar a aldeia dos mouros de forma a alargar o seu território No entanto a batalha não estava as correr nada bem ao Torcaz. O Corinde e os amigos decidiram salvar o Torcaz e dar entender aos mouros da rendição das suas tropas,

Acabaram por levar o Torcaz e alguns dos seus homens para a sua aldeia e trataram deles antes de estes regressarem a casa.

O Torcaz quando já encontrava restabelecido veio ter com o Corinde e agradecer-lhe o gesto que ele teve para com ele e disse-lhe que tinha aprendido a lição e que daí em diante nunca mais se  iria meter em conflitos."

Naquela tarde de agosto de 2020 não precisei de contar a história toda ao Duarte, pois ele passado alguns minutos adormeceu agarrado ao algodão que a mãe lhe tinha dado.

Ontem chegou a  encomenda de mais dois livros infantis da Boutique da Cultura: A flor mais alta do mundo" de José Saramago  e  "A girafa que comia estrelas" de José Eduardo Agualusa.

Aquando da receção da encomenda observei que me tinham enviado um bilhete personalizado desejando-me boas leituras. Um gesto simples que eu dei um grande valor por não ser um gesto vulgar. Para mim foi como se fosse um autografo.


No dia 2 de Abril de 2020 escrevi a minha primeira e única história Infantil. " A História do Moliço"
Quem não leu diga-me o que achou.

Termino o texto com uma mensagem de José Saramago no livro " A maior flor do mundo":
"E se as histórias para crianças passassem a ser obrigatórias para adultos?
Seriam eles capazes de aprender realmente o que há tanto tempo têm andado a ensinar"  

quarta-feira, 5 de maio de 2021

Pela primeira vez senti-me bem em Mirandela

Hoje passado mais de uma década após a Cecília ter estado na escola profissional de desenvolvimento rural de Mirandela, percebo a expressão dela aquando da observação do fogo de artificio numa festa local, "pela primeira vez senti-me bem em Mirandela".

Hoje eu na escola profissional de desenvolvimento rural de Grândola, ainda não posso dizer que houve um momento que me sentisse feliz. Talvez esteja a exagerar mas seguramente não foram muitos e sem dúvida não houve qualquer momento que sentisse o coração cheio.

A vida de professor não é fácil. Ao longo dos anos aprendi a gostar da profissão e como qualquer pessoa gosta de ver o seu trabalho reconhecido.

Desde o reingresso na profissão há quatro anos tenho sentido um distanciamento maior entre professor e o aluno. Os alunos vêm cada vez mais o professor como alguém distante e quando nos despedimos no final do ano letivo a despedida é fria, trespassando a ideia que fomos apenas mais um professor. 

Hoje aquando da ida bar da escola para comer uma sandes, falei uns minutos com a funcionária e enquanto conversávamos  veio um senhor que pediu um café. Observei que ele estava a tirar moedas e por isso deduzi que não tinha o cartão da escola. Ofereci-me de forma espontânea para lhe pagar o café ao que ele assentiu e agradeceu. Acabámos por trocar dois dedos de conversa que passo a citar:

Senhor: Você é professor cá na escola 

Eu: Sim fui colocado no início do ano letivo 

Senhor: Sabe eu trabalho na escola mas na parte agrícola, venho cá poucas vezes a acima. Eu tenho duas filhas a estudar nesta escola.

Eu acabei por ficar um pouco receoso dada a pouca empatia que os alunos têm por mim. 

Senhor: Que disciplinas leciona?

Eu referi que lecionava Área de Integração (AI), Geografia e Ambiente e Desenvolvimento Rural (ADR)

O senhor  disse o nome de ambas as filhas e indicou que  uma estudava  no décimo e a outra no décimo primeiro do curso de Turismo e Ambiente e Rural.

Suspirei um pouco de alívio pois as alunas são adoráveis e eu tenho um enorme respeito e empatia por elas. Ao contrário da grande maioria são alunas muito aplicadas. Acabei por elogiá-las, pois não tinha qualquer razão para dizer o contrário.

Após os meus elogios o senhor disse:

Eu: A mais velha fala muito e gosta muito de si.

Eu não sou daquelas pessoas que gosta muito de estar sempre a ser elogiado mas pontualmente quando acontece, sabe bem. Pela forma como ele se expressou penso que foi sincero. No entanto mesmo que não tenha sido eu acreditei que sim.

Após aquele momento, pude pensar que o dia estava ganho.

quinta-feira, 22 de abril de 2021

"Liberdade" Poema de Maria Teresa Horta

 

Há pouco li no Newsletter do Fumaça um poema maravilhoso de Maria Teresa Horta que passo a partilhar convosco:

Ainda há pouco acontecia Maria Teresa Horta acordar sobressaltada com a ideia de que a PIDE lhe estava à porta. Tinha que se voltar a surpreender com a recordação do 25 de Abril. “Continua a ser o dia mais feliz da minha vida.” A propósito do aniversário da Revolução, pedimos-lhe um poema. Chamou-lhe Liberdade.

Liberdade

É dia de liberdade

ano após ano

de punho erguido

   e preciso


Memória acrisolada

cravos

no cimo do riso


Com a sua côr

encarnada

e o olhar resgatado


Dando conta

dos indícios

sonho a crescer do nada


Sendo o nada

o seu princípio

e em seguida infinito


Liberdade libertada

de liberdade hasteada

sendo o sonhar

   seu grito


Maria Teresa Horta

Lisboa, Abril de 2021

                                                             

domingo, 11 de abril de 2021

Balanço do ano letivo

No dia 19 de Abril retomo a atividade presencial em Grândola. Passado largos meses não consigo dizer que tenho saudades de retomar o ritmo de trabalho presencial. Sinto que este ano letivo foi um ano de aprendizagem e apesar de não haver certezas absolutas sobre o que será o próximo ano letivo, pressuponho ter sido apenas o início de um percurso profissional a sul do rio Tejo.

Apercebo-me cada dia que passa, sinto que desempenho de forma mais competente esta profissão, embora ainda muito longe daquilo que idealizo.


Este ano letivo começou muito mal, devido à inadaptação aos métodos de avaliação e às estratégias escolhidas para às aulas,  ao que se associou um cansaço subjacentes às viagens para Oliveira do Hospital de que não abdiquei em nenhum fim de semana. 

O primeiro período foi muito difícil devido à distância e a impossibilidade de estar com a Cecília quando ela mais precisava. Ela dá aulas numa escoa secundária da  Guarda e no estabelecimento prisional da mesma cidade. Para ela a impossibilidade de ter um dia livre contribui para que o cansaço se acumulasse e não houvesse tempo para recuperar. Apesar de todos os cuidados que ela  teve aconteceu, em meados de novembro do ano passado descobriu que tinha sido infetada com  Covid 19. Nessa sexta feira recordo-me que cheguei de Grândola e sentia-a cansada, estava deitada no sofá, acabei por não ligar de imediato,  pois a sexta feira por norma é um  dia de descompressão em que por vezes aproveitava para descansar um pouco ao fim da tarde. No sábado ligámos à nossa médica de família e já tínhamos quase a certeza da infeção, pois os sintomas eram evidentes.

Para mim foram quinze dias muito complicada, pois tive de fazer tudo um pouco em casa. O dia mais complicado em que eu a Cecília chorámos juntos foi o dia em que o Duarte teve de ir para casa dos meus pais por tempo indeterminado, pois não era saudável ele permanecer num apartamento, naquele ambiente, A tenacidade para mim teve de ser a palavra de ordem e acabei por ter de delinear estratégias de ocupação do tempo de forma a manter o discernimento  e tratar da melhor forma a Cecília.  Apesar de a Cecília ter conseguido curar-se em casa, temi vários vezes o internamento, pois os sintomas agravaram-se principalmente durante a primeira semana.

Curiosamente para mim o isolamento em consequência do apoio à Cecília e o atual confinamento vieram em momentos chave que me ajudou a ultrapassar melhor este ano letivo.

Quando terminei o primeiro período devido às dificuldades de adaptação ao currículo dos cursos profissionais,   decidi que tinha de estudar e repensar o segundo período de uma outra forma até  porque devido aos 15 dias de isolamento teria necessariamente em janeiro o horário muito preenchido. 

Recordo-me que a melhor coisa que fiz no início do segundo período foi levar uma mesa redonda velha de casa da minha mãe e colocar um aquecedor a óleo no meu quarto em Grândola. O mês de janeiro foi excecionalmente frio em Grândola, como em todo o país,  atingindo todas as noites temperaturas negativas. 

Senti que levei o início do segundo período de uma forma mais calma e as viagens diárias para a escola  foram feitas quase todas a pé, pois moro a cerca de 700 metros da escola. Aos poucos senti que me estava a adaptar ao ensino profissional e aos meus afazeres diários.

No dia 21 de janeiro o Governo indicou que iria começar no dia seguinte um novo confinamento na educação. Na  minha opinião neste segundo confinamento, a paragem letiva de duas semana entre 22 de janeiro e 7 de fevereiro foi exagerada, uma semana seria suficiente. Senti a necessidade de mais tempo para descansar na interrupção letiva da Páscoa, essencialmente devido à dureza e à pressão sentida na parte final do segundo período.

O segundo confinamento para mim que dou aulas a 340km da minha área de residência foi a melhor coisa que me aconteceu, pois deixei de ter o desgaste das viagens o que me forneceu mais tempo para organizar as aulas e as avaliações dos 9 módulos que conclui no final do segundo período. 

Termino o texto com o Duarte, realçando a importância que este confinamento teve para a minha reaproximação ao meu filho. Ele nunca percebeu bem a razão da minha ausência durante tantos dias da semana e aos poucos senti que ele se estava a distanciar um pouco de mim aproximando-se mais da mãe. O que mais me custou neste comportamento do Duarte foi que deixei de conseguir adormecê-lo pois ele deitava-se e passado uns breves minutos ia chamar a mãe. Esse comportamento do Duarte deixou-me muito triste, no entanto foi a forma que ele encontrou de mostrar o seu descontentamento perante a minha ausência. 

Neste período em que o covid 19 nos obrigou a estar em casa aproveitei para conversar e brincar muito com o Duarte e aos poucos senti uma progressiva aproximação . Foi uma sensação fantástica, e que me fez tão bem,

Hoje posso dizer  que voltámos a ser grandes amigos.  Darmos grandes e infindáveis  passeios e apercebi-me que o tempo que passo com  Duarte passou a ser vivido com mais qualidade e sem pressa. Hoje já o consigo adormecê-lo, dar-lhe banho e acima conseguir que ele me escolhesse de forma espontânea  para brincar. Desta forma consegui libertar algum peso sobre os ombros da mãe conseguindo que ela tivesse mais tempo para realizar as suas múltiplas tarefas 

Dia 19 de Abril recomeço a minha atividade de forma presencial mais feliz.

segunda-feira, 5 de abril de 2021

Cansaço

Amanhã para mim já começa o último período, ainda com o ensino à distância.

Sinto-me cansado.

Os dias de descanso entre o segundo e terceiro período, foram insuficientes para desligar completamente de um final do segundo período diabólico onde a pressão e o desgaste foram tremendos. 

sábado, 3 de abril de 2021

As origens do fascismo. Notas sobre o livro de Antonio Scurati, Mussolini, o filho do século: Autor Luís Filipe Torgal

No espaço de Opinião na Rádio Boa Nova, Luís Filipe Torgal apresenta “As origens do fascismo.Notas sobre o livro de Antonio Scurati, Mussolini, o filho do século”. Luís Filipe Torgal é professor de História do Agrupamento de Escolas de Oliveira do Hospital, investigador e colaborador do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX da Universidade de Coimbra (CEIS20) e autor de vários livros e artigos científicos ou de intervenção cívica e conferencista.

“A literatura tem múltiplas utilidades. Uma delas será o seu contributo para a construção de cidadãos melhor esclarecidos e de sociedades mais fraternas. Creio que o livro, aqui evocado, de Antonio Scurati, Mussolini, o filho do século, constitui um bom exemplo do poder cívico da literatura. Embrenhemo-nos, pois, nos meandros da intriga histórica narrada por Scurati, ao longo de 850 páginas.

A I Guerra Mundial terminou com a Itália a combater ao lado dos vencedores. Porém, como proclamou o poeta guerreiro futurista Gabriele D`Annunzio, Roma obteve uma «vitória mutilada». O país abandonou, humilhado, a Conferência de Paz de Paris (1919-20), porque os seus aliados americanos, ingleses e franceses quebraram o prometido: não reconheceram à Itália o direito de ocupar a Dalmácia e Fume, nem tão-pouco lhe concederam as indemnizações que reivindicava.

Como outros países europeus dilacerados pelas sequelas da guerra (onde devemos incluir Portugal), a Itália mergulhou no caos político, económico e social. Resvalou para um ambiente de guerra civil. De um lado, os «vermelhos»: movimentos socialistas que — impulsionados pelo êxito da Revolução Soviética de outubro de 1917 — lançaram no país uma vaga de greves, manifestações, ocupações de fábricas e terras, enquanto urdiam a revolução proletária. Do outro lado, os «negros»: movimento dos Fasci di Combattimento, fundado na Piazza de San Sepolcro, em Milão, a 23 de março de 1919, constituído por veteranos e heróis da guerra entretanto desmobilizados e enjeitados pelo Estado (os sinistros Arditis), mas também por futuristas, anarcossindicalistas e outros vagabundos, delinquentes, recalcitrantes e arrivistas ultranacionalistas de ocasião. Os esquadrões dos Fasci, bem armados e treinados nas táticas da guerra das trincheiras, direcionaram todo o seu ressentimento, ódio e violência contra as fações socialistas. No meio, um Estado demoliberal decadente, corrupto, falhado, despojado de sensibilidade social, incapaz de impor a ordem pública, impotente para granjear consensos na sociedade civil e reconstruir um país arruinado pela guerra e esquartejado pelos combates político-ideológicos internos.  

Mussolini (1883-1945) iniciou a sua carreira política na ala revolucionária do Partido Socialista Italiano. Dirigiu o jornal socialista Avanti! desde 1912. Todavia, quando o conflito mundial rebentou, passou de apóstolo sincero e apaixonado da neutralidade absoluta, subscrita pela maioria das fileiras socialistas, a apóstolo sincero e apaixonado da intervenção na guerra. Por isso, logo em 1914, confrontou a direção do Partido Socialista, abandonou o Avanti! e criou o jornal Il Popolo d´Itália, que haveria de tornar-se o órgão oficial do futuro Partido Nacional Fascista (PNF). Desse periódico declarou guerra aos seus camaradas de outrora, os quais acabaram por acusá-lo de indignidade política e moral e deliberaram a sua expulsão do partido. Fundou os Fasci di Combattimento, corpo político-militar ultranacionalista e antissistema atrás mencionado que, todavia, apresentou um programa político que quase reproduzia o manifesto dos socialistas revolucionários: política externa não subserviente; lei eleitoral mais inclusiva; abolição do senado; reformas laborais generosas; distribuição pelos camponeses de terras não cultivadas; escola pública laica; impostos extraordinários progressivos sobre o capital; expropriações parciais de todas as riquezas; confiscação dos bens das congregações religiosas.

Em 1919, este movimento obteve cifras eleitorais insignificantes. Todavia, as clivagens insanáveis no seio dos «vermelhos», entre socialistas reformistas e comunistas bolcheviques, desgastaram irremediavelmente estes adversários viscerais dos «negros». Pelo contrário, os fascistas, apesar das recorrentes altercações internas entre os seus irredutíveis próceres, reergueram-se e revelaram mais pragmatismo. Uniram-se no PNF, fundado no congresso de Roma, em novembro de 1921, e rasgaram o programa dos Fasci. Tornaram-se «antidoutrinários». Converteram-se numa síntese de todas as afirmações e todas as negações republicanas, monárquicas, socialistas, democratas, conservadoras, nacionalistas e quantas mais. A elasticidade ideológica do movimento e a astúcia amoral e maquiavélica do seu Duce, Mussolini, tornou-os «revolucionários ou reacionários», consoante as circunstâncias. O fascismo ressurgiu e propagou-se como uma epidemia, adaptando o seu discurso demagógico e práticas agressivas às circunstâncias do momento. Compreendeu que para conquistar o poder teria de recorrer aos expedientes mais perversos, de modo a persuadir as elites sociais e as massas proletarizadas, desqualificadas ou aterrorizadas: a mentira, o crime organizado, os espancamentos, a banalização da violência, a fraude eleitoral e até a união fugaz e oportunista com os partidos burgueses conservadores moderados do Bloco Nacional. União que, aliás, lhes foi oferecida por estes nacionalistas, atemorizados com a «peste» bolchevique, e que haveria de legitimar os fascistas e proporcionar a eleição para o Parlamento dos seus primeiros deputados, em maio de 1921. Os «negros» ganharam um novo protagonismo dentro do órgão primordial da democracia. Mas, evidentemente, não ficaram saciados. Em outubro de 1922, os Camisas Negras marcharam sobre Roma e através deste golpe de mão (no qual o Duce assumiu uma posição ambígua e de retaguarda) tomaram o poder, a convite do atemorizado rei Vítor Emanuel III, que nomeou o acrobata político Mussolini presidente do Governo. O agregador dos fascistas entretanto promovido a líder providencial dos italianos tomou posse perante um parlamento apinhado e entusiástico, que esqueceu depressa o terror provocado pelas hordas fascistas e sonhava assistir à alvorada de uma nova era de glória e prosperidade. O discurso de Mussolini foi insolente e premonitório para com o hemiciclo e os seus deputados: — «Senhores! Aquilo que hoje pratico, neste auditório, é um ato de deferência formal para convosco e pelo qual não vos peço nenhum atestado de reconhecimento concreto. […] Podia fazer deste hemiciclo surdo e cinzento um acampamento de fantoches. […] Podia ter fechado a porta do Parlamento e constituir um governo de fascistas. Podia, mas, pelo menos por agora, não quis.»

Não quis naquele momento, mas fê-lo nos anos seguintes. Conquistada a máquina do Estado, os fascistas continuaram a recorrer a brutais ações de violência e, depois, a descaradas fraudes eleitorais para dizimarem os seus adversários externos e internos e vencerem com maioria absoluta as eleições legislativas de 1924. A trama macabra do assassinato do intrépido líder socialista Giacomo Matteotti por sicários da «Tcheka Fascista», a mando do Duce, e que quase fez cair o seu governo, são narrados com singular subtileza na parte final do livro.

O que atrás ficou dito e muito mais pode ler-se no primeiro volume deste longo, minucioso e empolgante romance de Scurati (circunscrito entre 1919 e 1925). Os dois volumes seguintes desta trilogia ainda estão na forja. Como podemos classificar este livro? Uma narrativa romanesca onde desfilam personagens tragicómicas concretas — desordeiros, arrivistas, politiqueiros, facínoras, alienados, demagogos, fanáticos, idealistas e incautos. Sucedem-se episódios rocambolescos, impressivos — contados com uma sedutora linguagem literária —, mas verosímeis, assustadoramente reais, bem sustentados por trechos de documentos da época, que compõem um fresco lancinante da Itália do pós-guerra. O autor adverte, numa nota preambular do livro: «não há um só acontecimento, personagem, diálogo ou discurso aqui narrados que não esteja documentado e/ou testemunhado autorizadamente por mais de uma fonte». Em suma: um «romance documental», que busca uma representação literária verídica (ainda que não historiográfica) do fascismo original.  

O livro termina com o famoso discurso proferido pelo primeiro-ministro, Mussolini, no Parlamento, a 3 de janeiro de 1925, que marca o enterro da democracia, perante o silêncio fúnebre (cúmplice e covarde) de todos os deputados. Conhecemos o fim da história que ainda fica por contar na obra aqui evocada: com a complacência do povo e de quase todos os políticos moderados, os fascistas dirigidos pelo seu «bom tirano» suprimiram as oposições remanescentes, implantaram o Estado totalitário e iniciaram uma política de conquistas militares que os levaria à aliança com Hitler e o nazismo alemão. Depois, o terrorismo nazi-fascista projetou o mundo para a apocalíptica II Guerra Mundial (1939-45) e o Holocausto, que terminariam com a execução de Mussolini, o colapso da Itália e do seu povo.

Importa concluir que a obra de Scurati, editada pela ASA, é uma empolgante lição de História. Habilita-nos a conhecer o passado e o presente da Itália, mas também da Europa e do mundo. Leva-nos a intuir que a História não tem um movimento retilíneo, pois replica dolorosamente os erros do passado. Em última análise, ajuda-nos a compreender a génese e o destino dos chamados movimentos «populistas» atuais e as ambições, fobias e idiossincrasias dos seus chefes, acólitos e adeptos.

Por isso, caro leitor, se deseja mesmo captar a atmosfera das sociedades de hoje e desvendar como emergem e triunfam os manipuladores de massas do século XXI, recomendo-lhe a leitura desta extraordinária narrativa sobre a ascensão do primeiro movimento fascista e do seu criador”.

Luís Filipe Torgal