segunda-feira, 8 de janeiro de 2018

Da I República ao Estado Novo: um estudo de referência

Luís Bigotte Chorão deu à estampa, em 2009, A crise da República e a Ditadura Militar, estudo que lhe permitiu obter o Doutoramento em História, pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Com um total de 960 páginas, o livro encontra-se estruturado em duas partes: na primeira, o historiador reflecte sobre os motivos que estiveram na origem da crise da I República (1910-1926), enquanto na segunda parte procura compreender o modo como a Ditadura Militar (1926-1933) colocou ao seu serviço os instrumentos jurídicos, destacando-se a este respeito a acção do Ministro da Justiça e dos Cultos Manuel Rodrigues Júnior. Trata-se, afinal, de um conjunto de aspectos fundamentais para compreender as circunstâncias que conduziram ao Estado Novo (1933-1974).
            Sem ter a estulta pretensão de querer resumir aqui quase 1000 páginas de um estudo monumental, sério e minucioso, partilha-se de imediato algumas ideias, mais com o objectivo de incentivar a leitura do trabalho em causa.
            I – A obra tem subjacente um esforço meritório, quer no que diz respeito ao levantamento das fontes primárias, quer ao nível dos estudos já realizados. Abrange o espaço nacional (continental e insular), não integrando as colónias. Constitui, por conseguinte, um trabalho de referência para todos aqueles que se proponham estudar, em especial, o período nacional balizado entre 1910 e 1933.
            II – Do ponto de vista editorial, teria sido importante condensar as ideias, de modo a dar à estampa uma obra mais acessível ao grande público, com um tempo médio disponível para a leitura (infelizmente) cada vez mais reduzido. Não se justifica de todo a existência de notas de rodapé e citações com a extensão das que são apresentadas. Mesmo pensando num nicho de especialistas, teria sido preferível proceder a um trabalho de síntese e disponibilizar depois, em jeito de apêndice documental, uma amostra de elementos considerados pertinentes. Esse exercício permitiria libertar o texto principal de dados acessórios, que em nada contribuem para uma leitura fluente e para uma compreensão cabal das ideias do autor. E aqui referimo-nos, sobretudo, às teses que Bigotte Chorão pretendeu demonstrar, e que nem sempre são claras. Por vezes, o leitor sente-se de tal modo embrenhado nos inúmeros acontecimentos descritos que se revela muito difícil não perder a visão de conjunto.
            III – Segundo Bigotte Chorão, a I República criou, logo na sua fase inicial, as condições propícias para a sua posterior “decadência”. Aos factores habitualmente invocados nos manuais de História (v.g., ataques dos monárquicos à I República; perseguições aos católicos levadas a cabo pelos republicanos, sobretudo na fase inicial; inexistência do sufrágio universal; contexto de atracção pelos modelos autoritários/totalitários europeus; consequências da participação de Portugal na I Guerra Mundial), Bigotte Chorão associa ainda a “inutilização” do Presidente da República. Ou seja, segundo este historiador (jurista, de formação base), o facto de o Presidente não possuir o poder moderador (que lhe permitiria dissolver as câmaras) teria contribuído para que fosse incapaz de resolver a instabilidade política, que depois conduziria à sucessiva queda dos governos. Todavia, importa dizer que esta tese, embora tentadora, não nos parece de todo bem fundamentada, até porque existiram outras circunstâncias que também contribuíram para a crise da I República e que não são invocadas pelo aludido historiador. Desde logo, a falta de uma alargada base social de apoio do novo regime implantado em 1910 (João Medina recupera a este respeito o sintomático fenómeno da “adesivagem”, que lhe permite sustentar uma “República frustrada ao nascer”).
            IV – Bigotte Chorão esforça-se por destacar a ideia segundo a qual a Ditadura Militar não começou com Salazar, sendo que este apenas influenciou, verdadeiramente, os acontecimentos a partir de 1928, enquanto Ministro das Finanças, e sobretudo após 1932, na qualidade de Presidente do Conselho. Não se trata de todo de uma tese original, embora nos pareça de facto muito pertinente alertar para a importância de separar os conceitos de Ditadura Militar, Ditadura Nacional e Estado Novo. Algo que nem sempre sucede, pois até Irene Flunser Pimentel – uma das historiadoras contemporâneas nacionais mais consagradas – pretendeu abranger todo o período de 1926 a 1974 sob o título História da Oposição à Ditadura. Outrossim, a chamada de atenção a respeito da acção nevrálgica desempenhada por Óscar Carmona também merece realce.
            V – Na segunda parte do seu estudo, Bigotte Chorão, enquanto jurista de formação base, detém-se na acção de Manuel Rodrigues Júnior, na qualidade de Ministro da Justiça e dos Cultos (1926-1928) e como Ministro da Justiça, já durante o Estado Novo salazarista. Esta tentativa de fazer dialogar a História e o Direito afigura-
-se-nos muito pertinente, embora a especificidade de determinadas matérias abordadas torne, por vezes, o discurso demasiado hermético. Num estudo desta extensão, ter-se-ia justificado, como já escrevemos, um esforço de síntese, bem como a introdução de momentos de paragem, nos quais se fossem apresentando as principais conclusões e apontando as ideias a testar nos capítulos seguintes. A introdução de algumas notas biográficas a respeito de Manuel Rodrigues Júnior, logo a abrir a parte II, teria sido bastante útil para o leitor.
            VI – Em jeito de síntese, a obra resulta de um esforço hercúleo, divulga aspectos inovadores, é apresentada numa edição muito cuidada (quase expurgada de gralhas) e contribui para renovar a perspectiva vigente sobre o complexo período abordado. E aqui não poderemos deixar de recuperar a tese segundo a qual teriam sido as próprias desinteligências entre os vários grupos que fizeram o 28 de Maio de 1926 a justificar depois a sobrevivência do regime ditatorial (uma ideia claramente alicerçada na própria Biologia, que há muito vem demonstrando a importância da diversidade). Enfim, para o bem e para o mal, o estudo aqui recenseado faz já parte de um tempo pretérito, no qual as investigações conducentes à obtenção de um grau académico implicavam a reunião de centenas ou mesmo milhares de páginas, nas quais, no entanto, nem sempre era evidente a tentativa do autor em manter-se focado nas teses essenciais a demonstrar. Esta é, segundo cremos, a principal desvantagem desta obra de referência para todos aqueles que se interessam por este período. 

Renato Nunes (renato80rd8918@gmail.com)

quarta-feira, 3 de janeiro de 2018

Volta a um Portugal sem livro de instruções-Álvaro Domingues

Como o irmão mais novo que pega nos velhos guias de Portugal lá de casa e rasga as páginas de fotografias bonitas, estragando os planos para as férias, o geógrafo de A Rua da Estrada e de Vida no Campo oferece-nos agora uma Volta a Portugal, sem bicicleta nem manual de instruções. Como já escreveu Miguel Esteves Cardoso nas páginas deste jornal, um "livro fulminante, que é urgente ter à mão"

Link do Público: 
https://www.publico.pt/2017/12/31/sociedade/entrevista/roteiro-por-um-pais-em-dissonancia-com-a-imagem-que-temos-dele-1797476