sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

Conto de Natal – A porta secreta

“– Meu filho! Já viste bem todas as prendas que o Menino Jesus te deixou este ano? Olha, por exemplo, esta aqui…” – indicou António ao pequeno Diogo.
            “– Parece uma caixa. E há coisas a abanar lá dentro!”
            “– Vamos abrir” – e abriram.
            Dentro do embrulho, um tabuleiro de xadrez. Diogo, com uma mão a segurar o inseparável smartphone e a outra a agarrar o novo brinquedo, deixou escapar um breve suspiro de desalento. Nesse momento, o pai decidiu voltar à carga:
            “– Sabes, quando eu tinha mais ou menos a tua idade, descobri que nesta casa havia uma passagem secreta. Uma porta escondida…” – e Diogo nem o deixou concluir a frase. Agarrou-se-lhe à perna e reclamou:
            “– Onde é? Para onde vai? Leve-me lá!” – sorrindo, António segurou-o pela mão e fez-lhe sinal para se sentar. A “lição de Sissa” iria começar...
            “– Olha, isso vais ter de ser tu a descobrir. E a resposta encontra-se dentro deste tabuleiro de xadrez”.
            Depois, enquanto retiravam os últimos papéis que escondiam a caixa, o pai foi explicando:
            “– Hoje, vamos fazer um duelo. Peças brancas contra as peças negras. Como se fosse uma guerra…”
            “– Mas, pai… os homens brancos e os homens negros são inimigos?”
            “– Não, meu filho! Hoje, já não são. A cor da nossa pele não interessa para nada. Todavia, há alguns séculos atrás, os homens brancos fizeram escravos muitos homens negros”.
            “– Olhe, pai, se eu pudesse mandava pintar as peças. Seriam azuis contra vermelhos!”
            “– E deixa-me adivinhar… tu ficavas sempre com os vermelhos, certo?” – riram em uníssono.
            Na verdade, António ficou com as peças negras e Diogo com as brancas (depois de saber quem começava a jogar, o menino nem hesitou na escolha!). Entrementes, o pai disse:
            “– De todas as tuas peças, existe uma que tem de ser sempre muito bem protegida: é o rei”. Ao ouvir isto, o menino sentenciou:
            “– Então, eu sou o rei! Sou o mais importante”.
            Nessa altura, o pai desabafou:
            “– Sabes, quando tu nasceste passaste a ser o rei desta casa. Eu e a tua mãe começámos a viver em função de ti” – e Diogo ria-se de orelha a orelha.
            Logo a seguir, António esclareceu o valor de cada peça e o modo como se movimentavam:
            “– A rainha vale 9 peões. Pode avançar em todas as direcções. A torre vale 5, anda sempre a direito – na horizontal e na vertical. O cavalo vale 3 peões, movimenta-se em “L”. O bispo também vale 3 peões, mas anda e captura na diagonal…” – e por aí fora, sempre com as peças a saltarem no tabuleiro de um lado para o outro, sob o olhar atónito do menino.
            Às duas por três, quando já estavam no meio da primeira partida, muito lentamente, o pai foi capturando uma a uma todas as peças do menino. Quando apenas lhe restava em cima da mesa o amedrontado rei, o pai desafiou-o:
            “– Vá! Podes jogar”. Diogo, quase a soluçar, atirou:
            “– Mas… assim não é justo! Estou sozinho e ninguém me pode defender”.
            Sorrindo, o pai devolveu-lhe os peões, perguntando:
            “– Estás mais satisfeito?”
            “– Sim, mas ainda não tenho as minhas torres, os bispos, os cavalos…”
            “– Então, meu filho, qual é a tua peça mais importante?”
            “– Todas são importantes, pai!”
            “ Olha, há quem diga que foi esta a lição que um indiano chamado Sissa quis ensinar a um rei muito mau. Não sei se é verdade ou mentira, mas há até quem acredite que foi ele que inventou o xadrez. Certo, certo é que esta é uma lição valiosa para todos nós…”
            Nessa altura, a mãe chegou à sala. Vinha chamá-los para o jantar. Ao olhá-la, o pai não resistiu e exclamou:
            “– Olha, filho, e ainda te faltava a rainha!” – Dona Maria não compreendeu, mas sorriu delicadamente, ao perceber que falavam dela.
            Logo depois, já à mesa, o menino voltou à carga. Queria mesmo saber onde se encontrava a tal porta misteriosa. Como se já não bastasse a ansiedade do miúdo, a mãe ainda ajudou à festa:
            “– António! Lá andas tu a ensinar coisas perigosas ao nosso filho! Eu já te disse que essa porta é só para os adultos”. Os olhos de Diogo pareciam prontos a saltar para fora das órbitas.
            Quando se levantaram os últimos pratos da mesa, foram todos até ao presépio. Debruçados sobre o berço, António perguntou:
            “– Diogo, quem é a personagem mais importante do nosso presépio?”
            O menino ainda hesitou, mas lembrou-se da lição do xadrez e respondeu:
            “– O menino é o nosso rei. Mas sem os pais, os animais, as estrelas, os reis magos… o que seria dele?” – os pais entreolharam-se. A noite de Natal estava quase a findar, mas o mais importante ainda vinha a caminho...
            Então, o pai ajoelhou-se junto à manjedoura do Menino e começou a contar-lhe o segredo da porta desconhecida.
            “– A tua bisavó Maria era, como sabes, a minha avó. Um dia, quando eu tinha mais ou menos a tua idade, ela disse-me que nesta casa havia uma porta secreta que dava acesso a um mundo maravilhoso. Ora, quando eu ouvi essa história, fiquei de tal modo curioso que passei a noite em claro, sem dormir. Vasculhei cada recanto desta casa, examinei com todo o cuidado todos os lugares, mas a verdade é que não consegui encontrar o mais pequeno sinal da tal porta mágica. Desanimado, deitei-me em cima da cama e chorei como nunca tinha chorado.
Logo pela manhã, a tua bisavó, uma das pessoas mais inteligentes que conheci em toda a vida, reparou nas minhas olheiras, serviu-me o pequeno-almoço e abraçou-me (nunca esquecerei aqueles abraços). Deitado no seu regaço pude então ouvir esta maravilhosa história:
            “– Seu tontinho… a porta sobre a qual te falei é a porta da sensibilidade. É uma espécie de ferida aberta que apenas algumas pessoas se podem orgulhar de possuir. É um dom”.
            “– E para que serve essa ferida, avó?”
            “– Essa ferida boa ajuda-te a ver melhor o mundo: a chorar com aqueles que choram, a sofrer com aqueles que sofrem; a ver o que os outros tantas vezes não vêem. Sim, faz doer, mas apenas para te ajudar a compreender…”
            Intrigado, voltei à carga:
            “– E isso é importante, avó?”
            “– Muito, meu netinho! Ajuda-nos a criar um mundo melhor!”
            Ao proferir aquelas derradeiras palavras, o pai voltou-se novamente para o filho, fixando-o ternamente, olhos nos olhos:
            “– Sabes, meu rei, quando tu nasceste, essa porta de que falava a tua bisavó voltou a abrir-se dentro desta casa. E foi a primeira vez, desde que a tua bisavó morreu – já lá vão mais de 20 anos –, que voltámos a fazer o presépio. Que voltámos a sentir o Natal” – e as lágrimas iluminavam-lhe a face.
            Quanto ao menino, bem pequenino como todos os meninos, olhava ternamente os pais, talvez sem compreender muito bem o sentido exacto de todas aquelas palavras – os poemas que, ao longo da vida, nos escapam pelas mãos!
            Talvez um dia, bem lá no futuro, aquele menino recordasse aquelas palavras e decidisse até recontá-las ao seu próprio filho. E talvez dissesse que foi naquela longínqua noite que a porta secreta se abriu, pela primeira vez, mesmo à sua frente. A tal porta secreta que o Natal nos ajuda a recordar e a nunca deixar fechar. Por muito que as pedras afiadas inundem as calçadas por onde vagueamos.
            Afinal, apesar de todas as cinzas que acumulamos nas mãos, quando Dezembro ecoa nas ruas e as luzes cintilam dentro de nós, tudo volta a ser possível. É através dessa ferida aberta, da qual brotam as lágrimas que nos lavam por dentro, que chega até nós o sentido do Natal...

Renato Nunes (renato80rd8918@gmail.com)

sábado, 16 de dezembro de 2017

"Pai tu não vais morrer"

Na Quinta Feira pouco passava das 11h da manhã quando estava a ouvir a Antena 1 e deparei-me com o testemunho de um bombeiro, que esteve no combate no Teatro das operações do Grande Incêndio de Pedrogão em Junho de 2017. O relato deste bombeiro tocou-me pela expressividade das suas palavras. Durante o incêndio sentiu-se numa situação extremamente aflitiva, onde viu a morte muito próxima em consequência da estranha ferocidade das chamas que os encurralou num emaranhado de fumo e temperaturas muito elevadas.

Já numa maca do Hospital o bombeiro, num estado extremamente grave teve a presença do seu filho de 12 anos de idade, que o abraçou dizendo insistentemente, “pai tu não vais morrer”, ao que o pai respondeu apesar das imensas dores e do sofrimento que sentia “filho está descansado, pois isso não irá acontecer”. O filho afastou-se um pouco e de dedo em riste apontou para o pai e disse com uma convicção incomensurável “Pai tu não vais morrer”. O bombeiro após esse período não mais voltou a ver o filho, tendo várias complicações de saúde onde, com o acumular de várias intervenções cirúrgicas e 4 paragens cardíacas, culminou com a permanência em coma durante mais de 2 meses.

Esta história emocionou-me, pois fez-me pensar na importância que um filho tem nas nossas vidas e a força que ele nos dá para continuarmos a viver. Sinto um enorme Amor pelo meu filho e naquele momento senti uma enorme vontade de o agarrar, de lhe dizer o quanto Gosto dele e quanto ele é importante para a minha vida. Termos um filho muda a forma de vermos a vidaum Ser está sobre a nossa responsabilidade e desejamos de forma inexcedível que ele seja Feliz e que nós estejamos junto dele para o ver crescer. 

sábado, 9 de dezembro de 2017

O ódio à escola

            7h00. O despertador toca e Mauro enrola-se nos cobertores, assim que consegue silenciar o maldito aparelho. A situação acaba por repetir-se mais quatro vezes, até que a mãe irrompe pelo quarto, ameaçando-o de dedo em riste. O menino decide então arrastar-se até à casa de banho, enquanto amaldiçoa a sorte que lhe calhou na rifa da vida.
            7h30. Daqui a uma hora, o Mauro estará dentro do carro do pai a caminho da escola. Até lá, apenas corridas entre a casa de banho, o quarto, a cozinha… corridas vertiginosas entremeadas por gritos de urgência, interrompidos pelo veloz beijo de despedida da mãe, invariavelmente atrasada.
            8h40. Dez minutos de atraso e o pai atira a mochila de Mauro para o banco de trás do carro. Alguns instantes depois, seguem os dois a toda a velocidade pela estrada fora, enquanto na rádio se fala do trânsito infernal na capital e da chuva que tarda em chegar. Lei de Murphy: raio dos semáforos escolhem sempre o dia errado para ficarem vermelhos!
            9h00. Mauro está à porta da escola, o pai toca-o docemente na testa e permanece parado alguns instantes a vê-lo desaparecer para além do portão. Arranca depois a toda a velocidade rumo ao escritório. É forçoso recuperar os 5 minutos que leva de atraso.
            9h05. Mauro irrompe pela sala de aula. O professor exige a sua saída imediata e pede-lhe para bater à porta antes de voltar a entrar. Ainda estremunhado, lá obedece. Senta-se, começa a retirar os livros da mochila: Inglês, Português, Matemática, Expressões e Estudo do Meio. Depois, perfilam-se os cadernos das Fichas de Actividades e o volumoso dossier do caderno diário, acompanhado do estojo. A mesa é pequena e o colega do lado faz-lhe sentir o descontentamento com um subtil pontapé na tíbia. Mauro sabe que não convém tugir nem mugir, pois o intervalo chega depressa e as mãos do colega são conhecidas pelos pares de galhetas que vão, benevolentemente, distribuindo.
            9h15. A sala do 3.º ano pode enfim começar a produzir. Hoje, o dia amanhece com a disciplina de Inglês, o esperanto dos tempos modernos, que abre a porta do paraíso para todos os pecadores:
            Let’s study the family! Open your books on page eleven – e os meninos aprumam-se perante uma língua ainda tão estranha e distante.
            Cerca de meia hora depois chega a vez da Matemática. A entrada do professor titular torna o ambiente mais rigoroso:
            – Abram os livros na página 31. Vamos ler, interpretar e explorar gráficos de barras e tabelas. Moda, diagrama-de-caule e folhas, amplitude, dados quantitativos e qualitativos. O silêncio petrificava a sala.
            Faltava cerca de um mês para o fim das aulas e o derradeiro teste escrito anunciava-se. Todos suavam e os cadernos inundavam-se de nervosismo. Mauro tentava concentrar-se em tudo, mas o perfeccionismo traía-o, não o deixando fazer quase nada:
            – Onde está o teu diagrama-de-caule e folhas? – o grito lancinante do professor arrancou-o da indecisão. Alguns instantes depois, quando o intervalo chegou, mal conseguia sentir os dedos.
            11h00. Após 30 minutos de vadiagem pelo recreio, recomeçavam os trabalhos, agora com o Português socrático trazido pelo desacordo ortográfico:
            – Gramática. Vamos aprender a escrever. Como sabem, no ano anterior, a Prova de Aferição foi um desastre completo. Copiem para o caderno…
            Lição número 1 – Determinante artigo;
            Lição número 2 – Determinante possessivo;
            Lição número 3 – Determinante demonstrativo;
            Lição número 4 – Paráfrases…
            Os exercícios iam e vinham, interminavelmente. O quadro enchia-se e apagava-
-se a uma velocidade estonteante. Os cadernos dos meninos também, que mais não fosse de rabiscos e gatafunhos. Muito frequentemente, lá vinha um grito do Mestre e a cópia correcta reiniciava-se. Não havia tempo a perder, que a gramática era uma deusa perante a qual todos tinham de inclinar-se: ALELUIA! Começava, então, o maestro:
            – O que é “o”?
            – Determinante artigo definido – respondia o Mauro.
            – O que é “um”?
            – Determinante artigo indefinido – acertava a Matilde.
            – O que é “do”?
            – Contracção da preposição “de” mais o determinante artigo definido “o” – e o professor respirava finalmente, quando o Mauro e a Matilde acertavam em uníssono a última pergunta da Bíblia linguística. Os outros meninos podiam enfim respirar, quando o sucesso de alguns camuflava o insucesso de quase todos.
            Logo a seguir, era a vez da poesia. Cecília Meireles chegava do outro lado do Atlântico, trazendo consigo “A pescaria”:

“Cesto de peixes no chão.
Cheio de peixes, o mar.
Cheiro de peixe pelo ar.
E peixes no chão.
Chora a espuma pela areia,
na maré cheia.
As mãos do mar vêm e vão,
as mãos do mar pela areia
onde os peixes estão.
As mãos do mar vêm e vão,
em vão.
Não chegarão
aos peixes do chão.
Por isso chora, na areia,
a espuma da maré cheia”.

 Após uma vertiginosa leitura, chegava a vez de esquartejar as estrofes, os versos, identificar as rimas, explorar figuras de estilo e sonoridades. No meio disto tudo, bem lá do fundo da sala, o Pedro, que ainda mal conseguia identificar metade das letras do alfabeto, lembrou-se de levantar a mão e interromper:
            – Professor! Posso fazer uma pergunta?
            – Fala, fala para aí… mas rápido, que é preciso avançar!
            – A poesia é um cesto de peixes?
            – Valia mais estares calado! – e todos se riram em uníssono. A contagem tinha, contudo, de ser rapidamente retomada. Os números eram depois confirmados um a um pelo Mestre, que, de resto, já limpava o suor da testa com tanto somatório. A poesia, aqui para nós, também nunca fora o seu forte, neste país em que quase todos são poetas, mas quase ninguém lê poesia. Isto para já não falar da História, da Literatura e outras quejandas artes dos pré-históricos capazes de viver um dia afastados dos smartphones.
            Quando o toque que anunciava o recreio chegou, a imagem do cesto de peixes, que ilustrava o poema esquartejado, permanecia projectada no quadro. E Pedro saiu para o intervalo a pensar que a poesia devia estar relacionada com as tarefas piscícolas… Quanto ao professor, com mais de 30 anos de serviço, sentia-se extenuado. Pensava em tudo o que ainda tinha de leccionar até ao final do ano e sentia-se a tremer. Os programas eram a Bíblia e tudo tinha de ser sumariado, custasse o que custasse, doesse a quem doesse. Como se isso já não bastasse, depois das aulas, aguardavam-no ainda os relatórios para preencher, as fichas para corrigir, as aulas para preparar, os pais para atender, as faltas e os sumários para registar. Havia ainda a acção de formação do Reiki que nunca mais acabava. E as metas do sucesso para alcançar mandavam às urtigas todas as energias positivas que bem tentava atrair... Burocracias e mais burocracias, problemas e mais problemas para solucionar que o levavam a desejar estar longe de tudo e de todos (síndrome de burnout, dirão alguns) . Certo é que quando finalmente se sentava no carro para regressar a casa dava sempre por si a pensar há quanto tempo não conseguia ler um livro ou simplesmente sorrir com um sorriso dos seus meninos.
            No período da tarde, chegava Estudo do Meio. E a corrida era retomada, hoje em torno da função excretora… Logo a seguir, que o tempo era escasso, chegavam as Expressões, com mais conceitos e conceitos que deveriam ser sumariados. Teorias que o pobre do professor, confinado às paredes daquela escola dos primeiros anos, mal poderia imaginar que voltariam depois, ano após ano, ciclo após ciclo, a ser novamente repetidas. No fim do dia, iludia-se em surdina: talvez houvesse ainda oportunidade para fazer um desenho e deixar os meninos sonhar. Mas a verdade é que raramente o tempo permitia outros voos e os sorrisos continuavam sempre a ser adiados.
            17h30. Fim das aulas e o Mestre regressa a casa. De seguida, há um intervalo e as actividades extra-curriculares podem enfim começar. O professor das AEC’s (Actividades Extra-Curriculares, para os mais distraídos) vem de outra escola e quase sempre chega atrasado, mas os alunos esperam-no sentados no recreio, já cansados. Depois da Educação Física, começa o hip-hop e o yoga. Por volta das 18h00, o pai do Mauro há-de vir buscá-lo, pois a maratona do Ironman ainda vai no adro.
            Às 18h30 iniciam-se as explicações. Três vezes por semana, a carrinha vem buscar quase todos os meninos à escola, logo a partir do 1.º ano, que é de pequenino que se torce o pepino... Lá no centro, a cerca de 15 minutos de viagem, fazem os trabalhos, organizam os cadernos, dissipam dúvidas, treinam mais exercícios, ensaiam novos exames, enquanto o Mauro estuda desalmadamente Inglês. Nos restantes dois dias da semana, o adulto em miniatura vai para o Taekwondo, a natação e a dança. Tudo para descomprimir e relaxar, que ao sábado de manhã há Inglês naquela escola conceituada onde também estudou o irmão, agora no internato em Medicina, enquanto o domingo é deixado para estudar e fazer os trabalhos em família, depois de ir à missa. E, claro, para o Mauro poder jogar no computador durante toda a tarde. Sim, que também é fundamental relaxar os sentidos e desfrutar das excelentes classificações arrancadas a ferro e fogo das mãos dos mestres…
            Às últimas horas do domingo, como quem cumpre uma rotina, o pai abeira-se do Mauro e, invariavelmente, pergunta-lhe:
            – Amanhã começa a escola! Estás feliz?
            – Não! – e o menino olha sofregamente para o ecrã da playstation, a sua mais recente prenda por ter conseguido ser o melhor da turma no teste de Português.
            O pai ainda exclama, profundamente desalentado:
            – Não entendo… no meu tempo eu gostava de ir à Escola. Hoje, não querem saber de nada. Que geração! Põe, pelo menos, os olhos no teu irmão…
            Mas Mauro já não ouve nada. Quando, finalmente, se levanta, arrasta-se penosamente até à cama e recorda-se da sexta-feira passada. Faz um esforço para recapitular o que aprendeu nas aulas, mas não lhe vem nada à cabeça. Apenas consegue lembrar-se do seu amigo Pedro, que não tem dinheiro para comprar o equipamento para jogar futebol e menos ainda para andar no Centro de Explicações. E enquanto tenta adormecer, Mauro, um menino de 9 anos, que as pautas ratificam como um excelente aluno, pensa no ódio que sente sempre que imagina a escola, e não compreende. Simplesmente não compreende. Adormece.
            No dia seguinte, a pista de fórmula 1 estará novamente à sua espera…

Aprender exige tempo para amadurecer e pensar. Quando nos lembraremos disso?
O actual sistema educativo continua agarrado ao velho adágio: “Água mole em pedra dura tanto bate até que fura”. Por isso, numa espécie de tentativa de acelerar o tempo, transformou-se o primeiro ciclo (a antiga Escola Primária) na antecâmara da universidade e passa-se o resto dos anos a repetir em dó maior o que já se tentou leccionar em dó menor. E os exames repetem-se uns atrás dos outros, com relatórios e mais relatórios, como se deles resultasse o milagroso remédio para todas as doenças.
É altura de transformar o sistema numa escadaria, com patamares ajustados e interligados. Rever os programas, garantir que os directores sejam eleitos pelos seus pares e reduzir, de modo realmente significativo, o número de alunos por turma seria o início de uma revolução, pelo sucesso de todos os alunos e pela saúde mental de todos os professores. O problema, perdoem-me a ousadia, é que as grandes causas continuam a não mover moinhos…

Renato Nunes (renato80rd8918@gmail.com)

sábado, 2 de dezembro de 2017

Quem compra pássaros?

Todos os sábados, quando ainda mal amanhece, saio de casa em direcção ao mercado semanal. Para além da qualidade dos produtos hortícolas e dos preços apetecíveis, gosto de tomar o pulso ao povo da terra que me acolheu. Depois, pela manhã dentro, as intermináveis conversas com os vendedores locais ajudam-me a compreender melhor os dramas daqueles que ainda têm a coragem necessária para consagrar a vida à agricultura, sobretudo neste país.
            Esta manhã, porém, ao deambular por um dos corredores mais afastados da zona central do comércio local, uma voz inquietante desviou-me a atenção das nabiças:
            “– Quem compra pássaros?”
Não resisti e aproximei-me. À chegada, um cenário dantesco corroeu-me a alma: gaiolas e mais gaiolas com roseicollis, periquitos, papagaios, enquanto, bem à minha frente, uma catatua olhava longamente na minha direcção. Baixei-me e quase consegui tocá-la. Concentrei-me, então, na linha que a prendia ao pedaço de madeira, enquanto a via tentar destruir, bicada após bicada, as algemas que a separavam da felicidade: um fio de nylon com pouco mais de um dedo polegar. Quase petrificado, ali fiquei, de joelhos, enquanto a vendedora, pressentindo mais um potencial cliente, se aproximava com ar sorridente:
            “– É uma catatua domesticada. Pode tocar-lhe que ela não morde! E são apenas 70 euros…” – olhei à volta, sem conseguir esboçar qualquer resposta. Presa à minha indecisão, a pobre mulher lá voltou rapidamente à carga:
            “– Aquelas além também são catatuas, embora selvagens. Apenas 25 euros cada… aqueles roseicollis ou inseparáveis-de-faces-rosadas, como também lhes chamam, faço-lhe um desconto, pois estamos quase no fim da praça…” – agradeci com um leve e forçado sorriso. Tão forçado que quando dei por mim estava novamente só perante a inquietação da catatua.
            A plumagem colorida da exótica ave atraía os olhares dos que por ali passavam, embevecidos por ver um aperaltado pássaro, com crista de galo, empoleirado numa estaca de madeira. Lembrei-me, então, de Da Vinci, que compraria os pássaros nas feiras, apenas para poder voltar a libertá-los… e perante o exemplo do génio humanista senti vergonha de mim.
            Em frente da pobre catatua, o tempo parecia ter parado. De quando em vez, os nossos olhares encontravam-se. Talvez curiosa com a minha presença, interrompia as bicadas no fio, para logo depois voltar a retomar a tarefa. A razão parecia levá-la a compreender a missão de Sísifo que tinha pela frente, mas, ao mesmo tempo, o instinto parecia forçá-la a insistir uma e outra vez. Afinal, o instinto de liberdade é sempre mais forte do que todos os raciocínios urdidos.
            Quando, por volta do meio-dia, me vim embora, carregado de alfaces e cenouras, trazia estampada na alma aquela luta inglória. E é agora, aqui sentado à porta de casa, com vista para o Tejo, que recupero o sentido de mais um dia. Lá ao fundo, os maçaricos, os alfaiates e os flamingos esvoaçam em cima dos lodaçais. E lembro-me das gaiolas e da infeliz catatua, a bicar as algemas da escravatura moderna. As imagens vêm então em catadupa e assomam-me à memória as aves de rapina que um dia vi acorrentadas num desses museus de falcoaria, em que invocando o princípio das relações mutualistas se condena à escravatura um animal para gáudio de meia dúzia de homens. Lembro-me ainda de ter estudado que algures num passado não muito distante existia o hediondo hábito de furar os olhos dos melros para que eles cantassem de um modo mais profundo e dolente. E ao imaginar que esse canto terá animado serões e inspirado até poetas ou músicos, dou por mim a sentir vergonha de ser homem.
            Quando compreenderemos, finalmente, que os animais não se compram e vendem? Quando compreenderemos que os seres humanos não são tão especiais como julgam? Quando se tornará claro que a nossa suposta superioridade em relação a toda e qualquer forma de existência não passa de uma representação errada e profundamente perigosa?
            Talvez que para muitos dos leitores faça ainda sentido a caça, bem como o tenebroso ritual de espetar ferros afiados nos dorsos de touros, perante as gargalhadas da assistência, mas para mim tudo isso já não faz qualquer sentido. Vai mesmo contra tudo o que a passagem dos anos me tem ajudado a compreender.
Sem margem para dúvida, matar por prazer já não deveria fazer parte do mundo ao qual eu gostaria de pertencer, tal como comprar animais para depois aprisionar dentro de jaulas. Se cada cidadão tem hoje nas mãos o imenso poder do consumidor, a verdade é que nem tudo se pode comprar ou vender. A liberdade é, definitivamente, uma delas.
Na obra A genealogia da Moral, editada em 1887, escreveu Nietzsche: “Talvez deva admitir-se que o deleite da crueldade não desapareceu; apenas se subtilizou, se revestiu das cores da imaginação, se espiritualizou e se cobre com nomes hipócritas”. O futuro parece, cada vez mais, continuar a dar-lhe razão…

Renato Nunes (renato80rd8918@gmail.com)

domingo, 26 de novembro de 2017

Incêndios: Cadastro é essencial, mas reforma florestal exige mais medidas, diz investigador

O cadastro florestal é essencial para a reforma da floresta, mas tem de ser acompanhado de outras medidas como o emparcelamento, afirma o diretor do Núcleo de Investigação de Incêndios Florestais da Universidade de Coimbra, Luciano Lourenço.

O Governo decidiu, no Conselho de Ministros de sábado, avançar com a realização do cadastro simplificado florestal nos concelhos mais atingidos pelos incêndios deste ano, medida que Luciano Lourenço subscreve “inteiramente”, embora ela “peque por ter pelo menos 30 anos de atraso”.
Sem se saber “o que existe ou quantos proprietários existem”, não é possível “organizar o território”, sustenta, em declarações à agência Lusa, o especialista da Universidade de Coimbra (UC).
O cadastro de pouco ou nada valerá, sublinha, se não for acompanhada de outras ações, como o emparcelamento de propriedades, medida que “vai muito para além” desse registo, mas indispensável para que seja possível tirar “rendimento da floresta”, mesmo quando dividida por múltiplas parcelas, muito pequenas e dispersas.
Luciano Lourenço não sabe “exatamente” o que significa na prática “cadastro simplificado” (falta ainda a respetiva regulamentação), preconizado pelo Governo, mas se ele agregar os que já existem aos registos a identificar, assume grande importância.
Há propriedades em relação às quais não se sabe quem são os proprietários, reconhece o investigador, mas mais serão aquelas cujos limites são difíceis de identificar, mas isso não pode ser motivo para adiar a realização do cadastro.
É igualmente necessário promover o emparcelamento, adverte Luciano Lourenço, salientando que um proprietário de pequenas parcelas, mesmo que muitas, e, frequentemente, dispersas por um território relativamente extenso, jamais consegue gerir e tornar rentáveis essas parcelas.
O emparcelamento, através da união de proprietários e agregação de terras, da cedência da exploração de terras, do arrendamento ou da venda, são a forma de tornar a floresta rentável, gerível e menos exposta a risco de incêndio (“a floresta é sempre rentável, mas desde que, antes de mais, não arda”).
Luciano Lourenço considera, entretanto, que este património deve ser gerido por privados, ainda que o Estado também o possa fazer, mas, antes tem de “dar o exemplo”, isto é, tem de demonstrar que sabe e é capaz de gerir bem a floresta que é sua e isso “não tem acontecido”.
Há no nosso país “muito bons técnicos” nos organismos do Estado, mas são poucos para todas as tarefas que têm de desempenhar, alerta.
Outras medidas são também indispensáveis para proteger e tornar gerível a floresta, acrescenta o investigador da UC, insistindo na ideia de que com fogos não pode haver floresta rentável ou nem sequer floresta.
É necessário, por isso, sensibilizar as pessoas para esta causa e não apenas nas escolas, mas também, de um modo geral, junto de toda a população e, em particular, de quem trabalha com fogo na floresta.
Os pastores precisam de fazer queimadas, reconhece, mas para além de as proibir em determinadas épocas e condições, é preciso sensibiliza-los para a importância de procederem de acordo com determinadas regras e apoios, exemplifica.
“Quero acreditar que desta vez” a reforma da floresta vai ser feita, mas depois de tudo o que tem acontecido “ao longo dos últimos anos, desde 2003/2004, ainda tenho as minhas dúvidas”, conclui Luciano Lourenço.
Luciano Lourenço
 26 de Novembro de 2017

segunda-feira, 20 de novembro de 2017

Uma reflexão sobre os incêndios florestais de 2017

O problema dos incêndios florestais está longe de ser um problema de espécies florestais ou de mera gestão de espaços. No nosso país é, antes de mais, um problema de pessoas. Infelizmente estas estão colocadas, ostensivamente, fora do sistema.

Portugal sofreu no ano de 2017 a maior devastação de que existe registo no âmbito dos incêndios florestais em um só ano. Embora o desempenho do país não tenha sido muito positivo ao longo das décadas passadas, no confronto com outros países e com situações comparáveis, os incêndios que percorreram o Centro e Norte de Portugal neste ano constituíram um absoluto choque e uma chamada de atenção para toda a sociedade. A perda de mais de 115 vidas, a devastação de cerca de 500 mil ha, a destruição de centenas de casas, instalações industriais e empresariais, com o leque de efeitos sociais, ambientais e económicos que trouxe, parece que finalmente despertou a sociedade para a relevância do problema dos incêndios florestais.
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Todos sentimos que o propósito de “nunca mais”, formulado em várias ocasiões anteriores, tem de ser levado mesmo a sério, agora mais do que nunca. O país já teve outras chamadas de atenção, nos anos de 2003, 2005 e 2013, mas, como se pode verificar, apenas se ficou a meio caminho, na tomada de consciência, na mudança de comportamentos e de atitudes e na adoção de medidas eficazes. Perdeu-se muito tempo, pactuando com o desleixo e com a negligência, que conduziu o nosso país a esta situação calamitosa. O país está indignado e certamente não deixará de prestar uma atenção continuada a este assunto nos tempos futuros, e de retirar dele consequências políticas também. Conforme foi dito, já se perdeu muito tempo e não podemos senão adotar as medidas certas, sem perder mais tempo com experimentações ou medidas irrealistas.   
Ao comentar esta tragédia, em mais do que uma ocasião, disse que “falhámos todos”. Nesta expressão começo por me incluir pessoalmente, pois sinto que falhei no meu propósito de chamar a atenção de quem de direito para a importância do problema e no desenvolvimento de soluções que permitissem, ao menos, minimizar as tragédias pessoais que sofremos. Mas incluo também, de uma forma geral, todos os cidadãos, porque se trata de uma questão que envolve toda a sociedade. Ninguém se pode colocar fora do problema e, menos ainda, julgar os outros, porque terá certamente deixado algo por fazer. Se não, não teríamos sofrido esta tragédia.
O país está chocado e indignado, mas já não bastam os sentimentos. Temos de passar à ação. Como cientista que há mais de 30 anos procura ter uma intervenção na temática dos incêndios, o modo mais adequado que encontro para manifestar a minha indignação é o de contribuir com o meu trabalho e o do meu centro de investigação, para o seu estudo e compreensão.
Para além da investigação científica, como cidadão, procuro ter também uma intervenção cívica, que me tem levado a colaborar, com espírito aberto, com uma crítica construtiva e leal, com todos os Governos que tenho conhecido, independentemente da sua cor política, e com todas as instituições envolvidas na gestão do problema dos incêndios florestais.
Por esse motivo aceitei, com a minha equipa, o encargo do Governo para produzir um Relatório sobre o Incêndio de Pedrógão Grande, que se encontra publicado parcialmente (https://www.portugal.gov.pt/pt/gc21/comunicacao/documento#o-complexo-de-incendios-de-pedrogao-grande-e-concelhos-limitrofes-iniciado-a-17-de-junho-de-2017). Neste relatório apresentamos os factos tal como se nos depararam e procurámos retirar lições, para que não se repitam as perdas que aquele incêndio teve. Infelizmente, a divulgação de algumas destas lições não foi feita a tempo de evitar, ao menos em parte, a tragédia que sofremos em 15 de outubro. 
O relatório que a minha equipa produziu baseia-se num extenso trabalho de campo, desenvolvido por uma equipa de 14 especialistas, muitos deles com longos anos de experiência de investigação nesta área e de realização de estudos semelhantes. Contém uma análise detalhada das condições meteorológicas, da origem e do comportamento do fogo, das perdas humanas e do impacto do incêndio nas comunidades. Infelizmente, não foi ainda tornado público o capítulo 6, que trata das perdas humanas, que é por sinal um dos mais extensos do relatório, no qual se relatam, de modo anónimo, cada um dos acidentes que causaram as 65 vítimas mortais e algumas das cerca de duas centenas de feridos. Neste relatório é apontada como causa provável dos incêndios principais a falta de manutenção da faixa de proteção de uma linha elétrica existente nos locais de origem dos mesmos.
Indicámos que, para além de todos os fatores circunstanciais que se encontram associados ao incêndio e que potenciaram a sua gravidade, está a deficiente governação do país, que ao longo de dezenas de anos tem vindo a negligenciar o problema do mundo rural e em particular da sua proteção em relação aos incêndios. Ao longo dos anos, temos vindo a chamar a atenção das autoridades para a necessidade de modificar este estado de coisas, a denunciar a inoperância de algumas entidades, a ineficácia de muita legislação e propondo medidas para correção do rumo.
Quem me tiver ouvido, em especial nos últimos anos, poderá lembrar-se de que sempre defendi que o sistema de defesa da floresta contra os incêndios (SNDCIF), assente nos três pilares estatais da ANPC, do ICNF e da GNR, é desadequado. Em minha opinião, falta um quarto pilar, que designo por “População”, que deveria envolver toda a sociedade, para além das entidades estatais. Envolveria antes de mais a população, que tem sido marginalizada do problema e das tentativas de solução. Engloba igualmente as autarquias, as empresas, a comunidade científica e tantas outras instituições que, como agora se vê claramente, querem dar o seu contributo, mas não sabem como, porque têm sido deixadas à margem do sistema e se encontram desorganizadas.
Sempre disse que se o Estado persistir em tentar vencer esta “guerra”, apenas com a força das suas instituições, não o conseguirá. Um dos seus pilares, a ANPC, que prestou serviços muito meritórios ao país, encontra-se nesta altura fragilizado, injustamente, mas também por demérito próprio. Outro pilar, o ICNF, tem-se mostrado frouxo desde há vários anos, com uma desfocagem e afastamento crescentes, relativamente o problema dos incêndios florestais. A GNR, que está há pouco mais de dez anos no sistema, mercê de uma excelente liderança e organização de que dispõe, tem-se mostrado ser o pilar mais consistente e com um leque de funções mais diversificado no dispositivo.
Quanto ao “quarto pilar”, está quase tudo por fazer. É o mais difícil, mas é também o mais importante. O problema dos incêndios florestais está longe de ser um problema de espécies florestais ou de mera gestão de espaços. No nosso país é, antes de mais, um problema de pessoas. Infelizmente estas estão colocadas, ostensivamente, fora do sistema.
No passado dia 21 de outubro, realizou-se um Conselho de Ministros dedicado a analisar o problema dos incêndios florestais e a aprovar um conjunto de medidas legais, para dar um sinal ao país de que havia a intenção de passar das palavras aos atos. Por muita preparação que pudesse ter havido, para fazer estas propostas, era para mim óbvio que faltou tempo para se refletir o suficiente, para se reunir consensos e juntar as forças para que pudesse sair uma reforma profunda e consequente. Como é compreensível, uma boa parte das medidas poderiam ter sido postas em prática há muito tempo, sem ter de se alterar o sistema vigente. Apenas se pergunta porque não se puseram em prática antes.
O conjunto das medidas visa essencialmente os três pilares do Estado e o reforço de verbas. Não se vislumbra uma única medida de fundo destinada a envolver a população, a apoiar as pessoas, a contribuir para melhorar a sua situação, as suas condições de vida e a sua segurança e para as preparar melhor para enfrentar estas situações.
Passarei a comentar algumas das medidas anunciadas, utilizando para tal extratos do discurso do primeiro-ministro efetuado no final do Conselho de Ministros, reservando para uma situação mais oportuna um comentário mais aprofundado sobre algumas das medidas.
1. Neste discurso refere-se que se pretende “aproximar a prevenção e o combate aos incêndios rurais, nomeadamente dando mais centralidade à área de Governo da Agricultura, Florestas e Desenvolvimento Rural, no processo”.
A prevenção e o combate são apenas duas das faces do problema mais vasto que é o da gestão dos incêndios florestais, que envolve, entre outros aspetos, a preparação das comunidades, a prevenção estrutural, a preparação imediata, o combate e a reabilitação. De que aproximação se está a falar? O que quer dizer “dar mais centralidade aos ministérios da Agricultura ou do Ambiente? Quem foi que afastou estes ministérios do processo? Que foi que os impediu de estar mais centrados e de contribuírem para a solução? O que fizeram ao longo dos anos passados? Em minha opinião, estes e outros ministérios, e várias outras entidades públicas e privadas, têm de se centrar mais na realidade de que existem incêndios florestais em Portugal, coisa que parece não terem tido presente nos passados 20 anos, pelo menos, agindo como se nada se passasse.
2. Diz-se que “é preciso reforçar o profissionalismo em todo o sistema, com um papel alargado do apoio militar de emergência, no patrulhamento, no apoio logístico, no rescaldo e nas capacidades de apoio à decisão da engenharia militar”.
Concordo com o aumento do profissionalismo, mas tem de se avaliar bem o custo dessa medida. Até que ponto pode o nosso país ir? Concordo igualmente com um papel mais interventivo das Forças Armadas, mas com a devida preparação e igualmente com uma ponderação da relação custo/benefício dessa intervenção. Mas pergunto: onde está o apoio à sociedade civil? O que se vai fazer para apoiar, por exemplo, as comunidades e as forças locais de proteção civil?
3. É dito que “será confiada à Força Aérea a gestão e operação dos meios aéreos, quer do Estado quer contratados”.
Concordo com a aquisição de meios próprios, incluindo meios pesados, que se encontra implícita nesta medida. Parece-me bem haver uma maior intervenção da Força Aérea, desde que não haja incompatibilidade entre a finalidade e missão das Forças Armadas e a disponibilidade de recursos humanos e materiais, que se requer para os incêndios florestais, e os custos sejam comportáveis para o país. Oxalá se assegurem, desde o início, mecanismos de transparência e de avaliação nos processos de utilização destes recursos, tendo em conta os elevados custos que comportam.
4. Diz-se que “vai ser retomada a expansão das companhias dos GIPS da GNR”.
Acho muito bem esta medida, mas pergunto: o que se vai fazer com a Força Especial de Bombeiros e com os bombeiros em geral? Não se vai apoiar a sua expansão e qualificação? Como se irão articular as FEB e os GIPS no território do país?
5. Defende-se que “vai ser reforçada a capacitação e profissionalismo entre os bombeiros voluntários, criando em cada associação de bombeiros, nas zonas de maior risco, equipas profissionais formadas na Escola Nacional de Bombeiros, que será integrada no sistema formal de ensino como uma escola profissional”.
Concordo com uma maior profissionalização dos bombeiros, não apenas nas zonas de maior risco, mas em todo o país, pois os bombeiros podem ser chamados a intervir em qualquer ponto do território.
Deve, ainda assim, continuar a apoiar-se e a fomentar o voluntariado, que constitui um valor inestimável do nosso sistema de socorro.
A ENB deveria ser reformulada de modo profundo, mas não é este o lugar próprio para abordar este assunto.
6. Recomenda-se que “esta profissionalização passe por que o Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas e a ANPC vejam reforçados os seus meios e a ANPC seja institucionalizada com um quadro próprio de profissionais, com dirigentes designados por concurso”.
Custa a crer que seja precisa nova legislação para se colocar estas medidas em prática. Concordo com o reconhecimento implícito de que estas duas instituições não dispõem de recursos humanos qualificados e em número suficiente para fazer face ao problema dos incêndios florestais. Mas onde se irão buscar esses recursos e onde se irão qualificar? Em minha opinião, os agentes de Proteção Civil e os bombeiros em particular deveriam ter uma Academia de Proteção Civil, equiparada a um instituto universitário, tal como sucede nas Forças Armadas e na Polícia.
7. Propõe-se que “a capacitação destas instituições passe por maior incorporação de conhecimento, com a criação de uma linha de apoio à investigação e reforço da componente de formação nos institutos politécnicos”.
Não posso deixar de aplaudir o reconhecimento da necessidade de se incorporar mais conhecimento e formação em todo o problema da gestão dos incêndios florestais. Pergunto no entanto de que conhecimento se trata e de fazer notar que a instituição a que pertenço tem vindo a produzir conhecimento em diversas áreas relevantes e a fazer a transferência desses conhecimentos para o sector operacional desde há vários anos.
Aplaudo igualmente a criação de uma linha de apoio à investigação científica, de uma forma regular e continuada. Tendo já sido publicado um diploma sobre este assunto, tenciono debruçar-me sobre ele, com mais detalhe, noutro lugar.
É surpreendente a medida de “reforço da componente formativa nos institutos politécnicos”. Por que razão não se incluem, de forma explicita, também as universidades no processo?
8. Refere-se que “a especialização progressiva, sem prejuízo da unidade de comando, entre o combate aos incêndios rurais e a proteção de pessoas e bens e das povoações, desenvolvendo capacidades próprias das brigadas de prevenção do ICNF, dos GIPS e dos Canarinhos, para se concentrarem na missão de combater os incêndios rurais”.
A proposta contida nesta medida constitui, em minha opinião, um erro estratégico, que já constava da proposta de plano que resultou do trabalho de um Grupo criado pela APIF (Agência para a Prevenção dos Incêndios Florestais), em 2004, com a finalidade de reformar o sistema. Em boa hora esta medida não foi acolhida e surpreende-me que volte a surgir, sem que tenha sido feito qualquer esforço para mostrar a sua validade desde então, quando noutros países se está a abandonar esta filosofia de separar o combate aos incêndios rurais do da defesa das habitações e das pessoas.
Atualmente o país dispõe de Corpos de Bombeiros que estão formados, treinados e equipados e possuem experiência e provas dadas no combate, tanto em incêndios urbanos como em florestais e para prestar socorro diferenciado às pessoas. Vai-se dispensar esta capacidade, para criar uma outra entidade, com capacidades semelhantes ou com metade delas? Os bombeiros apenas não combatem o fogo na floresta e dão prioridade às casas quando já não existem condições para combater o fogo na floresta. Será nessas condições que os “bombeiros florestais” vão entrar em ação?
Quais são as “brigadas de prevenção do ICNF”, que são mencionadas na medida? Serão porventura as equipas de sapadores florestais? Se assim for, por que razão durante todos estes anos o ICNF não aproveitou essa força, a organizou, equipou, treinou, estruturou e utilizou? É agora que o vai fazer? Ou será que as centenas de novas equipas que estão anunciadas irão ser mais do mesmo?
9. Por fim recomenda-se que “as equipas de intervenção permanente dos bombeiros voluntários serão vocacionadas, cada vez mais, para a mais nobre missão de proteger a vida das pessoas, as povoações e os bens, permitindo otimizar o conhecimento de cada um para todos podermos ter melhor segurança”.
Esta medida é um corolário do erro contido na anterior.
Como se pode qualificar de “a mais nobre missão” como sendo a de proteger a vida das pessoas, as povoações e os bens? Então a missão dos outros combatentes “especializados” não é tão nobre? Parece que não se compreende que são aspetos distintos do mesmo combate, mas que não carece de forças distintas? Uma vez mais pergunto, onde está o conhecimento nesta área, no sector do ICNF, que contribua para a melhor segurança de todos?

Professor do Centro de Estudos sobre Incêndios Florestais da Universidade de Coimbra. O autor segue o Acordo Ortográfico




Professor do Centro de Estudos sobre Incêndios Florestais da Universidade de Coimbra. O autor segue o Acordo Ortográfico

DOMINGOS XAVIER VIEGAS- Jornal Público 19 de Novembro de 2017