sábado, 28 de dezembro de 2013

Conto de Natal: “Família que reza mantém-se unida”


            Atravessavam-se quilómetros e aquele apelido, por si só, era chave infalível para entrar em qualquer cofre-forte: “– Sabe, venho da parte do sr. Forjaz”. E a casa escancarava-se mesmo à frente dos nossos olhos, sem qualquer pergunta adicional.

            A família Forjaz construíra um dos maiores impérios da nação, graças, em primeiro lugar, à compra e venda de habitações. Ao velho Forjaz costumavam, de resto, chamar o rei do imobiliário, o que curiosamente até rimava com milionário.

            Manuel Antunes de Pina Forjaz nascera em Vila Marim, no norte do país, no seio de uma família da astuta burguesia. Crescera numa velha casa de granito com vista para um penedo onde alguém um dia inscrevera uma frase, que sempre guardaria inconscientemente por dentro: “Família que reza mantém-se unida”. De resto, como não quisera queimar as pestanas com os livros, acabara por casar-se com uma dama da nobreza, por sinal bem mais velha, que, segundo acreditava, lhe poderia garantir o prestígio de um nome azul até ao fim dos dias.

            Logo após o matrimónio, partiram para a capital e, graças ao belo pé-de-meia que traziam escondido, conseguiram adquirir uns vastos quilómetros de terreno a escassos quarteirões do Tejo. Apenas dois anos volvidos, revenderam alguns lotes e ganharam o suficiente para adquirir três belas moradias na zona mais cara da cidade. A histórica Olisipo crescia então a olhos vistos e o cobiçoso Forjaz, cada vez mais raposo, não perdia a oportunidade de ceifar a seara.

            Passaram-se anos e anos, os suficientes para que a família Forjaz se tornasse sinónimo de sucesso em todo o país. Aos poucos, começaram a minar as mais variadas áreas: restauração, saúde, vestuário e, já numa fase mais recente, uma petrolífera – os reputados investidores diziam que o ouro negro era o único futuro do país e o cobiçoso Forjaz, cada vez mais lampeiro, em tudo o que via cheirava dinheiro.

            Todavia, sobretudo a partir de uma determinada fase da vida – talvez porque nunca tivessem filhos – os dias começaram a parecer-lhes insuportavelmente iguais. O casal Forjaz sentia a rotina a amargar-lhe na boca: acordar às 5h00 da madrugada, engolir o pequeno-almoço, separar tarefas (– tu vais à clínica!; – tu segues para os restaurantes…), atravessar a confusão dos carros parados nos semáforos, respirar o ruído do fumo a fugir dos escapes das chapas andantes que acabavam de arrancar. E no meio de tudo isso uma insuportável sensação de profundo vazio. Um vazio que, na verdade, contrastava com as inúmeras pessoas que diariamente recebiam no conforto das suas casas repletas de festas simuladas. Silêncio.

            Forjaz casara-se com pouco mais de 18 anos. Maria teria na casa dos 30. Durante todas as suas vidas, nunca haviam conhecido o sabor da fome, nem sequer algum dia haviam pensado em tal realidade. As suas habitações eram fartas e as mesas estavam sempre recheadas com tudo o que de melhor existia. Ainda assim, invadia-os a solidão, uma desgastante e insuportável solidão que a cada minuto os fazia perguntar o sentido da sua condição e, ao mais pequeno pretexto, os conduzia à discussão.

            Um dia, Maria aproximou-se do velho Forjaz e, estendendo-lhe delicadamente as mãos, mostrou-
-lhe uma caixa de sapatos, cujo interior fora forrado com um pano de seda. Lá dentro, dormitavam dois gatinhos recém-nascidos, ainda com os olhinhos bem fechados. O velho Forjaz coçou a cabeça e sorriu longamente, parecendo assim aprovar a ideia da mulher para combater aquele vazio. De resto, gostou tanto que, logo no dia seguinte, foi ele próprio que repetiu a proeza e trouxe para casa dois cãezinhos que passaram a ser uma das poucas alegrias dos seus dias de milionário solitário.

            A chegada dos irrequietos bicharocos trouxe luz à escuridão do casal e a partir daquele momento os dias nunca mais foram os mesmos. O velho Forjaz via os tapetes roídos e as cadeiras arranhadas, mas perante o olhar complacente dos novos inquilinos nem sequer conseguia erguer a voz para proferir a mais breve reprimenda. Limitava-se a sorrir à esposa, que a todo o custo tentava esconder as asneiras dos bicharocos! Bastaram alguns dias e tornou-se evidente que a harmonia trouxera finalmente uma família à moradia. E pela primeira vez havia alegria.

            Passaram-se meia dúzia de anos e os animais cresceram alegremente na companhia uns dos outros. Nem os cães corriam atrás dos gatos, nem os felinos se intrometiam nos afazeres caninos. Quando muito, nos tempos mais recentes, lá vinha um miar mais assanhado ou um latido mais assustador sempre que a comida parecia não chegar para todos. A princípio, os quatro patas – amamentados no tempo das vacas gordas – começaram a estranhar a diminuição progressiva da ração, mas ao fim de algum tempo lá acabaram por convencer-se que tudo aquilo faria parte de uma dessas dietas malucas que a dona tantas vezes prescrevia a si mesma. Arre que era teimosa!

            Mesmo Fadista, o possante perdigueiro de orelhas caídas que mais se aproximara do coração do velho Forjaz, deixara de conseguir avançar o suficiente para sentir a mão no pêlo a afagar-lhe os sentidos. Aliás, ainda se lembrava muito bem quando, talvez há menos de duas semanas, tentara fazê-lo e tivera mesmo de fugir a sete pés, para não levar com o ferro da lareira em cima da cachimónia. Gerou-se então longa discussão entre a bicharada por muitas noites dentro.

            Um dia, porém, logo pela madrugada, chegou a ansiada explicação. Na mansão todos puderam ouvir que os Forjaz acabavam de decretar falência e em breve tudo seria entregue aos credores. Num ápice, as empresas foram seladas e quase de imediato vendidas em hasta pública, o mesmo sucedendo com o restante património ampliado ao longo de décadas e décadas de investimento e dura poupança.

            Então, o velho casal, já sem o prestígio que o dinheiro oferece ao nome de baptismo, foi forçado a deixar tudo para trás. Quanto aos animais que um dia haviam acolhido, não hesitaram em escorraçá-los imediatamente com sete pedras nas mãos. Pedrada após pedrada, os desorientados bicharocos ganiam dolorosamente e rodopiavam em volta da porta, nunca se afastando o suficiente para ficarem em segurança. Quando, por fim, as pedras deixaram de cair sentaram-se sobre as patinhas traseiras e aguardaram.

            Manuel e Maria abandonaram a mansão pela porta das traseiras numa manhã de Inverno. Mais sós do que nunca, arrastaram-se pelas ruas da cidade durante várias semanas. Sentiram frio, conheceram a fome, dormiram nas entradas dos edifícios que no passado haviam possuído e, ironia das ironias, acabaram a vasculhar a comida dos restaurantes onde ainda há pouco davam ordens. E enquanto percorriam as ruas em busca das portas abertas sentiam o desprezo das inúmeras visitas que durante anos e anos haviam diariamente recebido nos seus lares…

            Numa dessas intermináveis noites em que vagueavam pelas ruas abandonadas atracaram na velha mansão onde um dia haviam imperado. Repararam então que no interior da casa havia luzes, muitas luzes, e decidiram esperar atrás de um enorme arcipreste que crescera do outro lado da calçada. Estava escuro e, por certo, lá dentro, o jantar estaria prestes a terminar. – Talvez depois algum empregado venha despejar os restos das refeições no lixo... – matutaram para os seus botões. E esperaram, sempre escondidos.

            Estava frio, muito frio mesmo, e os trovões sulcavam assustadoramente os céus. Manuel abrigava a mulher debaixo da gabardina, apertando-a contra o peito quando, subitamente, o ansiado criado da mansão ultrapassou o secular portão de castanho. Viram-no debruçar-se e assobiar, durante alguns minutos. Logo depois, chegaram dois cães franzinos, com as caudas a abanar, fixando atentamente o homem da camisa branca que lhes estendia os restos da noite. O empregado aproximou-se e antes de partir afagou-lhes ternamente o cachaço, sem sequer ter tempo para ver os dois gatos que, entretanto, se haviam acercado da desejada comida.

            À distância, Manuel podia jurar conhecer aqueles animais de algum lado, mas a miopia cada vez mais acentuada imprimia uma perspetiva impressionista a todas as imagens que lhe chegavam à mente. Então, deixou o homem da camisa branca fechar completamente o portão e, depois de avançar alguns metros, quase sentiu um aperto no peito, quando identificou os bicharocos que ainda há tão pouco tempo havia escorraçado à pedrada. Percebia agora que eles sempre haviam permanecido por ali…

            Pressentindo-os avançar para a desejada comida, Manuel assobiou o mais alto que conseguiu, enquanto coxeava em direção ao centro dos acontecimentos, arrastando atrás de si a sua mulher, cada vez mais fraca e dorida pelo gelo da noite, pelo imenso poder da fome. Vazio.

            Ao assobio, os animais olharam em uníssono para o casal, completamente absortos da cabeça às patas, sem qualquer movimento, talvez estupefactos pela inesperada presença dos seus donos. Até que, sem que nada o fizesse prever, um a um, todos se desviaram da fumegante refeição, como que abrindo caminho aos estômagos vazios daqueles que ainda recentemente os haviam abandonado.

            Vendo aquela surpreendente prova de fidelidade e bondade, Manuel baixou ternamente a face e apertou a mão de Maria com mais força. Negociante de poucas palavras, sempre lhe haviam ensinado que um homem não chora, e por isso continuou a arrastar a mulher pela calçada fora. Depois, sempre juntos, sentaram-se lado a lado, recolheram a comida do chão e começaram a atirá-la, alternadamente, a cada um dos animais, também eles profundamente esfomeados. Já há vários dias que nenhum dava uso à dentuça.

            Nas ruas não havia ninguém. O frio descia silenciosamente das montanhas e atravessava cada ser até às mais profundas entranhas. Aninhados sobre a entrada da mansão onde um dia haviam crescido, os quatro patas envolviam-se num lânguido sussurro, rodeando ternamente os seus donos, com ou sem dinheiro, com ou sem roupas douradas ou insígnias imaginadas. Nem sr. Forjaz, nem sr. Manuel, nem conde, visconde, deão ou barão. Apenas e sempre os seus donos, finalmente de regresso. Nada mais.

            Ali mesmo, do outro lado dos seus antigos abrigos, não havia solidão. Afinal, também ali chegara, provavelmente, uma das maiores lições desta época: “Família que reza mantém-se unida” – e existem tantas formas diferentes de rezar…

            Naquele inesperado local, pela primeira vez na vida daquele casal foi Natal…

            [Natal,

            Ferida sem mal,

            Safanão de luz

            Que nos conduz

            A perceber

            Que apenas reencontramos

            O que somos

            Quando fugimos do artificial.

 

            Natal, cordão umbilical,

            Caminho que nunca se constrói sozinho;

            É preciso merecê-lo

            Para depois recebê-lo
            E não voltar a perdê-lo.]   

Renato Nunes                       

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Entre a História e a vida


Historiadores e filósofos clássicos como Heródoto, Tucídides ou Cícero acreditaram que “a História é a mestra da vida”. Alguns autores mais recentes, no entanto, têm vindo a sustentar que a grande mestra da História (e da Humanidade) é a vida: enquanto esta nos grava na pele as duras aprendizagens adquiridas à custa dos nossos próprios erros, a primeira limita-se, em traços sumários, a mostrar-nos à distância alguns percursos trilhados pelos nossos antepassados. Trata-se de uma distinção que, embora simplista, talvez possa ajudar-nos a compreender a crónica dificuldade que sentimos em aprender com os erros dos outros…

            Vem este arrazoado a propósito de uma reflexão que já algum tempo venho amadurecendo acerca das relações do Homem com a História, em particular nestes tempos tão estranhos que continuamos a viver. Estar atento aos sinais dos dias deveria ser uma tarefa de todos os cidadãos e, em particular, daqueles que consagram a vida ao estudo desta “narrativa científica”. Também por isso, não consigo aceitar (embora me pareça fácil explicar) o “enterrar da cabeça na areia” que para aí vai grassando, mesmo entre pessoas com responsabilidades histórico-culturais evidentes…

             Por isso, no início deste terceiro parágrafo lanço um desafio ao leitor: perca algum do seu tempo a observar as emissões do “Canal História”. Aí, poderá deparar-se com várias “preciosidades esotéricas”, que podem passar pela procura de seres extra-
-terrestres nas mais surpreendentes construções feitas pelo Homem, no âmbito das várias civilizações, ou até mesmo, só para dar outros exemplos bizarros, pela busca de vampiros, monstros lendários ou deuses que se fizeram Homens… Podia, afinal, falar de um “Canal História” que, de um modo regular, parece querer falar de tudo, menos de História. Naturalmente que, se um canal que deveria ser de referência é assim, nem vale a pena explorar o que acontece no caso dos generalistas… big brother’s (ressalve-
-se aqui, apesar de tudo, o meritório esforço da RTP2 do ponto de vista cultural, pese embora a espada de Dâmocles – leia-se, privatização – que paira sobre a sua cabeça…).

            Esta é, no entanto – como outros articulistas já denunciaram –, a ponta do icebergue de uma tendência mais vasta, que se reflecte, por exemplo, no modo como a História aparece representada nos escaparates das grandes superfícies comerciais, com títulos cada vez mais sensacionalistas e graficamente adornados, mas cujo conteúdo está, afinal, para a História como um camelo para o rio Mondego… Depois, quanto aos estudos sérios que ainda vão existindo (sim, porque neste país ainda se produz alguma investigação séria e rigorosa), quando conseguem ser editados, raramente chegam ao grande público por mais de uns fugazes instantes, logo desaparecendo (inexplicavelmente?) dos expositores.

            Serão estas grandes transformações inconscientemente fabricadas pelos arautos do neo-liberalismo reinante neste novo século, quais usurários que há muito venderam a alma ao Diabo, em nome do seu único deus, o dinheiro? Tratar-se-á apenas de ignorância ou as razões serão mais obscuras? Existirá uma estratégia deliberada de reconverter os cidadãos em súbditos, o pensamento em obediência? Estaremos, afinal, a regressar paulatinamente, sub-repticiamente, a um Estado totalitário, que se intromete nos mais variados domínios da existência do indivíduo, regulando e vigiando obsessivamente tudo o que somos, passando até mesmo pelo número de animais que acolhemos dentro das casas onde vivemos? Aproveitar-se-ão os líderes do facto de as multidões preferirem ser conduzidas, em detrimento de tomar as rédeas do futuro nas próprias mãos? E poderão, efectivamente, tomá-las? O leitor saberá encontrar a sua resposta. Mas, por favor, reflicta. E ouse discordar das minhas respostas.

            Respostas que, afinal, são cada vez mais difíceis de encontrar, sobretudo para aqueles que se sacrificaram ao longo de uma vida inteira ou para os jovens que desperdiçaram décadas a concluírem percursos académicos, muitas vezes com distinção, e depois são convidados a emigrar para o resto dos seus dias. Respostas que, de resto, não estão ao alcance dos comuns mortais e cujo sentido, por mais que os nossos manhosos líderes nos procurem inculcar, deixam sempre qualquer ser pensante com a pulga atrás da orelha. Afinal, como recentemente me escrevia um amigo, este país já não é para jovens, nem para idosos e, naturalmente, ainda menos para crianças. Este país é para as pedras e, claro, para os arrivistas, os burocratas mangas-de-alpaca, os corruptos, os farsantes, tantos engenheiros ou doutores “à la burla”, que depois até lançam livros onde se apresentam como vítimas de um sistema que ainda há bem pouco tempo ajudaram habilmente a forjar…

             Atravessamos um período de indefinição, laxismo, niilismo, anomia e, sobretudo, de total impunidade em relação aos protegidos dos vários reis que para aí existem. Efectivamente, pensando bem, Portugal abandonou a Monarquia em 1910, mas nunca deixou de ser um conjunto de pequenos reinos, governados por vários caciques, cuja utilidade é tantas vezes justificada com o pretexto de um carimbo ou uma simples rubrica. Olhamos à nossa volta e vemos polícias condenados à prisão por terem colocado a vida em risco, perseguindo criminosos; pais com medo de imporem regras aos filhos, pela pressão social de algumas correntes psico-pedagógicas que transformam as crianças em deuses que não podem ouvir um não ou sentir o traumatismo da frustração e muito menos de um berro; professores ameaçados, agredidos, publicamente humilhados e, agora, forçados a fazer provas cujo principal objectivo, além de representar um belo encaixe financeiro para os cofres do Estado, passa por escamotear os dramáticos números do desemprego. Afinal, deixarão de existir docentes desempregados, cinicamente reconvertidos em candidatos a professores que não conseguiram obter aprovação na tal prova generalista já do dia 18 de Dezembro, onde serão testadas as competências esotéricas que para aí grassam… A verdade é que a qualidade do sistema não constitui o grande objectivo deste tipo de medidas com carácter eliminatório que, de resto, me fazem lembrar um pouco a trágica anedota do paciente que se dirige repetidamente ao médico, queixando-se de dores no peito e o clínico limita-se a mandar-lhe repetir exames atrás de exames, até que o desgraçado lá acaba por morrer e, desse modo, contribui para a redução estatística do número de doentes. Não é, afinal, o que tem sucedido em Portugal ao longo dos últimos anos com esta obsessiva ideia de que tudo se resolve com mais exames, em detrimento de atacar as verdadeiras causas? A este ritmo, não tardará que deixem de existir desempregados, pobres, deficientes ou quaisquer outro tipo de calamidades e então o reino dos céus terá, finalmente, chegado a este cantinho do Mundo… Hoje, no meio de tanta miséria e de tanto cinismo, os acenos que o poder nos faz são cada vez mais apetecíveis. Depois, resistir-lhes implica uma integridade, que, reconheço, nem sempre se coaduna com a necessidade de sobrevivência.

            As linhas traçadas para o futuro deste país, nomeadamente ao nível da Educação, são simplesmente desastrosas. Veja-se, por exemplo, a preconizada privatização das Escolas (ninguém se iluda: é o que está realmente a acontecer), que significará “apenas” a destruição de um dos mais poderosos meios de mobilidade social ascendente construído neste país no pós-25 de Abril e que permitiu a vários jovens (entre os quais me incluo) continuar a estudar e ensaiar construir um futuro diferente das raízes onde nasceu. Com todas estas medidas, no mundo dos privados, as elites poderão continuar a perpetuar-se (dinheiro gera dinheiro, poder gera poder) e os desgraçados do berço poderão igualmente perpetuar-se… na miséria. Estamos, afinal, perante um profundo retrocesso civilizacional.

            Os arautos que nos desgovernam parecem efectivamente acreditar no efeito Mateus: “Porque ao que tem, dar-se-á e terá em abundância; mas ao que não tem, ser-
-lhe-á tirado até mesmo o que tem”. Será que é apenas porque nunca conheceram o amargo de não ter? A verdade é que – perdoem-me o desabafo – ninguém deveria governar os outros sem conhecer o sabor da fome, sem sentir na pele a verdadeira dimensão da realidade.

            Neste último parágrafo, debruçado entre a vida e a História, opto pelas pontes que unam as duas construtoras da memória e, consequentemente, de tudo o que somos. Recordando o meu próprio percurso pessoal e daqueles que me são mais próximos, regresso à História-ciência e História-docência a que um dia pensei, ingenuamente, poder consagrar a vida, em regime de exclusividade. Regresso a todos os gigantes que continuam a transportar-nos aos ombros. Regresso a esses gigantes, a tantos heróis do silêncio do anonimato, que merecem, pelo menos, a nossa indignação. E deles recupero uma lição que a História parece querer gritar-me – se a indiferença vencer, o século XXI não será muito diferente do século que o antecedeu: 1914-1918 – I Guerra Mundial; 1939-1945 – II Guerra Mundial, Holocausto… Será mesmo necessário continuar a escrever, sabendo que apenas este último conflito terá provocado mais de 50 milhões de mortos e a banalização do genocídio? Até quando a História e a vida caminharão de costas voltadas dentro de cada um de nós?

Renato Nunes

quinta-feira, 18 de julho de 2013

Os compromissos impossíveis (ou infrutíferos…)


Numa entrevista a Igrejas Caeiro, em 1958, o historiador Jaime Cortesão disse: “Eu penso também que toda a História tem um carácter contemporâneo. Nós estudamos a História como quem procura responder a questões do nosso tempo” (Alfredo Ribeiro dos Santos – Jaime Cortesão UM DOS GRANDES DE PORTUGAL, 1993, p. 343).

            Talvez resida aqui a génese do meu progressivo interesse pelas primeiras décadas do século XX. De facto, é difícil não encontrar aspectos análogos entre as duas primeiras décadas do século transacto, em Portugal – e, de um modo mais vasto, em toda a Europa – e a situação de clara indefinição política que vivemos na actualidade. No passado, o descrédito dos actores políticos conduziu muitas pessoas, entre as quais se contaram inúmeros intelectuais, a acreditar que a ditadura era o único caminho possível para a salvação do país. O próprio António Sérgio, intelectual que evoluiu para concepções socialistas democráticas e participou nos movimentos oposicionistas ao Estado Novo, que se definia como “apartidário”, escreveu, numa carta datada de 3 de Dezembro de 1912, a Raul Proença: “Sem tirania governa-se e deve-se governar num país educado, constituído, organizado; mas temo bem que sem tirania não será possível meter na organização um país em que o governo, as classes dirigentes são uma súcia de bandidos, charlatães e parasitas, como entre nós. Eu peço a tirania, não a tirania de um, mas uma tirania trocada entre miúdos. Em cada repartição, em cada escola, em cada quartel, em cada instituto, um pequeno tirano cheio de boa vontade e de saber concreto, capaz de resistir à força acumulada e asfixiante da imoralidade hereditária, que já deixou mesmo de ser imoral, de tal maneira entrou nos costumes” (António Sérgio – CORRESPONDÊNCIA PARA RAUL PROENÇA, 1987, p. 40).

            E numa carta datada de 1923, prosseguiu o mesmo ensaísta: “Os políticos procedem como se graves perigos nos não ameaçassem a todos”. (obra citada, 1987, p. 166).

            Noventa anos depois desta última carta, quantos portugueses não se poderão, afinal, rever nas palavras do ensaísta/historiador? Que outra caracterização se poderá atribuir ao modo como o nosso Primeiro-Ministro tratou o seu parceiro de coligação do CDS/PP, ao longo de vários meses, ou a “criancice” que Paulo Portas, já amuado, utilizou para chamar a atenção? Cento e um anos depois da primeira carta, quantos portugueses não acreditarão que, efectivamente, a única solução passa pela ditadura? Pois bem, pese embora toda a desilusão que o actual sistema político continua a merecer-me – já lá irei – continuo a não acreditar em tiranias ou em tiranos, ainda que amplamente anunciados como temporários ou transitórios, simples intermediários para depois chegar à “idade do ouro”, como, de resto, a própria Manuela Ferreira Leite parece já ter defendido quando falou em “suspensão da democracia”.

            Dito isto, nada me inibe, também, de escrever que não confio num entendimento a três partidos, que o ressabiado senhor Presidente da República parece ter sonhado numa noite mal dormida. Quem quiser acreditar que o “Governo de Salvação Nacional”, caso consiga, efectivamente, formar-se (para além de um ineficaz plano de generalidades…), é capaz de regenerar o sistema político em que nos movemos; quem quiser – repito –, que acredite. A mim, que me perdoem, mas esta ideia de um “milagre” não me convence, embora fique feliz, caso a História venha a comprovar que estou errado.

            Se Cavaco Silva conhecesse esta afirmação de António Sérgio, que a seguir reproduzo, talvez pensasse duas vezes antes de avançar para a solução que anunciou: “As melhores reformas são aquelas de que os legisladores não têm conhecimento, as que passam desapercebidas na Imprensa Nacional. Uma reforma de organização nunca reforma cousa alguma, e introduz confusão e indecisão nos serviços até que a nova organização se torna habitual. Sou sempre portanto por que se mantenham as formas o mais possível” (obra citada, 1987, p. 41). A educação e a cultura não são, portanto, um bem supérfluo, mas uma necessidade.  

            É, de resto, extraordinário que numa época em que se defenda, às vezes até à exaustão, a descentralização, se tenha recentemente interferido com uma das vias que ainda podem ajudar-nos a perseguir o caminho do desenvolvimento: as freguesias. O já decretado fim de várias freguesias, concebido de régua e esquadro a partir dos gabinetes ministeriais, sem tomar em conta as necessárias especificidades, não representa apenas uma poderosa machadada no poder local ou nas legítimas e históricas pretensões autonómicas das populações, mas, segundo creio, um rude golpe num dos caminhos que nos permitiria apostar no crescimento. Bastará, de resto, comparar a evolução de algumas das mais recentes freguesias para perceber, a olho nu, as diferenças entre o antes e o depois, por vezes até mesmo sem o auxílio dos fundos estruturais europeus… e, já agora, que daqui a alguns anos se volte a fazer o mesmo exercício nas freguesias agora extintas…

            Sem cair nas ilusões do regionalismo, a verdade é que seria fundamental que o poder central passasse a olhar o poder local de outro modo, muito especialmente no que diz respeito ao extraordinário poder de influência das Juntas de Freguesia na própria vida das populações e na gestão das melhores soluções para o seu desenvolvimento. Bastará, de resto, pensar que, prestes a chegar ao mês de Agosto, continuamos a assistir aos malogrados incêndios, que todos os anos consomem uma das maiores riquezas naturais que possuímos, e continuamos, impávidos e serenos, com um número significativo de beneficiários de vários subsídios a fazer, rigorosamente nada. Pura e simplesmente, desprezamos o precioso conhecimento que as Juntas possuem destas e de outras matérias…

            É certo que a mediocridade e a corrupção também chegam ao nível dos autarcas concelhios e dos presidentes das Juntas. É igualmente evidente que nos faltam estadistas, capazes de, numa lógica de médio e longo prazo, pensarem em estratégias eficazes para revitalizar, sobretudo, os concelhos do interior do país, operacionalizar políticas de desenvolvimento local e, por exemplo, estancar o êxodo rural, promovendo políticas de incentivo à fixação das pessoas e à própria natalidade. É certo que continuamos a navegar à cabotagem, pensando apenas no dia de hoje, mas, com todos os vícios que o poder local possa, efectivamente, enfermar, é com ele que devemos contar. É fundamental investir seriamente na formação das pessoas que estão à frente do poder local, pois elas representam a linha da frente de todos os combates, e, segundo creio, é com elas que, verdadeiramente, ainda poderemos contar para melhorar a situação do país.  

            Enquanto cidadãos, que ousam pensar pela própria cabeça e não devem hesitar em apontar o dedo aos (evidentes) erros dos muitos mercantilistas que nos têm governado, a verdade é que também chegou a altura de percebermos, enquanto simples cidadãos, que todo este sistema é insustentável tal e qual como está estruturado. O “Estado Providência”, uma das grandes conquistas do século XX, deve ser colocado à disposição daqueles que, efectivamente, necessitam e não sob o interesse de corporações ou interesses partidários. Doa a quem doer, esta mentalidade que, inacreditavelmente, ainda vai existindo mesmo entre os mais jovens (“O Estado tem de aguentar, sempre aguentou”), esta “filosofia de vida” é, quanto a mim, insustentável. Apoiar quem verdadeiramente necessita, sim; alimentar a ideia de que não é necessário trabalhar, sustentar o parasitismo, não. Até porque, não o esqueçamos, neste momento, enquanto país, dependemos do dinheiro dos outros para continuar a funcionar.  

            Sem procurar aqui escamotear os problemas intrínsecos a várias autarquias (endividamento imparável, elevado número de funcionários públicos recompensados pelos partidos, ao longo de décadas, com um lugarzinho ao sol…), a verdade é que, segundo creio, uma efectiva visão estratégica, a médio e longo prazo, para o país poderia começar pelo poder local. Seria um dos passos para privilegiar a economia, em detrimentos das finanças o que equivale a dizer, pensar para além de hoje… 

            O país ganharia, aliás, se Cavaco Silva (um dos responsáveis pela destruição da nossa agricultura e das pescas…) tivesse nomeado ele mesmo um governo de transição, indo, por exemplo, buscar os seus membros a todos os partidos – de um modo proporcional aos resultados obtidos nas últimas eleições –, mas baseando a sua escolha no mérito, no curriculum, no percurso de uma vida (que não tem de passar, necessariamente, pela Universidade) e não no sistema de compadrio que para aí grassa. Bem sei que muitos me dirão que todos os partidos estão “minados”, mas, goste-se ou não, eles são imprescindíveis numa democracia. Todas as opções que consigo, de resto, imaginar – incluindo aceitar a proposta de remodelação apresentada por Passos Coelho – me parecem, por conseguinte, mais acertadas do que esta infeliz proposta de um “casamento a três”, que mais não faz, afinal, do que prolongar a incerteza em que vivemos…

            Face à importância do poder local, seria importante encetar, de imediato, um contacto mais estreito com as autarquias e as freguesias de todo o país. Ouvir as populações, sentir os seus problemas, pressentir os obstáculos ao seu desenvolvimento e daí tirar conclusões que se vertessem em medidas concretas… Com todos os defeitos que esta proposta possa envolver, estou certo que seria, pelo menos, bem mais vantajosa para o país do que uma visita às ilhas Selvagens, onde, neste momento, por certo, Cavaco Silva deverá andar, absorto no mundo imaginário em que vive, a ouvir o som das cagarras...

            A questão da credibilidade do regime político e dos seus principais actores pode ser associada à grave crise económica e financeira em que vivemos. Faltam-nos, eu diria que quase sempre nos faltaram, ao longo da História, políticos competentes e acima de tudo bem-intencionados. Neste momento e cada vez mais, a honestidade, o “dar o exemplo”, funcionariam como factores decisivos de credibilização daqueles que nos conduzem.    

            Ademais, a curto prazo, a política tem de abrir-se, forçosamente, aos cidadãos que não se encontram vinculados partidariamente, pois este modelo de arregimentar os boys para os partidos (que chegam depois, rotativamente, ao poder) está profundamente esgotado. É, de resto, inconcebível – pese embora todos os perigos que daí possam resultar – que um simples cidadão não possa apresentar a sua candidatura a Primeiro-
-Ministro, sem ter o trampolim dos partidos a catapultá-lo. Ademais, segundo creio, seria importante reformular o próprio modo de funcionamento da Assembleia da República, mas isso justificaria, por si só, um novo artigo, pelo menos…

            Se António Sérgio nos dizia que “uma reforma de organização nunca reforma cousa alguma”, também é certo que a História nos ensina que sempre que o Homem sonhou destruir tudo e começar a reedificar a partir do zero o resultado final foi catastrófico. Esse extremismo foi, de resto, um dos motivos que esteve na origem da perseguição movida aos Judeus ou, apenas a título de exemplo, aos que ousaram pensar pela sua própria cabeça. Vivemos num tempo em que o cata-vento do nosso destino pode, a qualquer momento, virar-se para qualquer lado, um pouco à semelhança do que ocorreu nas primeiras décadas do século XX. Ontem, como hoje, os ventos do extremismo são fortes e, brevemente, tenderão a tornar-se ainda mais poderosos, com o inevitável aumento do desemprego, dos problemas sociais e do aparecimento de novos Messias portadores da Boa Nova, mas a decisão de escolher é apenas nossa… Enquanto a tivermos, não a desperdicemos.

            Na altura das grandes decisões, o conhecimento da História fará toda a diferença. A educação, obtida com rigor, método e trabalho, fará, cada vez mais, toda a diferença… Dessa diferença resultará, afinal, o país que queremos legar aos nossos filhos.
 
            Renato Nunes
 
 

domingo, 16 de junho de 2013

Eternas lições de palmo e meio


Já a manhã ia avançada quando a versão musicada por Paco Bandeira do inesquecível poema de Fernando Pessoa atravessou o infinito da sala: “No plaino abandonado//Que a morna brisa aquece//De balas trespassado//Duas de lado a lado//Jaz morto e arrefece”. E estrofe a estrofe o silêncio crescia dentro de nós.

            Esgotada a canção, regressou-se a cada verso, um a um. Bebemos então cada palavra, cada letra, como quem alcança água em pleno deserto. E na cabeça da menina, tão grande por fora e tão pequenina por dentro, começou a construir-se uma imagem. Uma história talvez até mais concreta do que esta caneta que agora seguro entre os dedos.

            E a menina viu, mesmo à sua frente, uma planície quase deserta, onde talvez ainda pairasse no ar o cheiro da destruição que apenas as armas podem deixar. Um jovem deitado no chão, com uma cigarreira ao lado e um lenço branco no bolso, a esvoaçar interminavelmente. A farda raiada pelo sangue. O olhar vazio. Silêncio. Dor indizível. E uma insuportável sensação de não haver tempo: “Tão jovem, que jovem era//Agora que idade tem”.

            Lá longe, uma mãe que reza pelo seu menino, o seu único filho, estupidamente mobilizado pelos homens de gabinete, para matar ou deixar-se matar. Na cozinha ou na sala – quem nos pode impedir de imaginá-lo? – talvez uma “criada velha” que chora, sempre que pensa naquele lenço branco que um dia deu ao menino que ajudou a tornar homem. E, minuto após minuto, uma flor crescia no olhar daquela menina, de quem tantos diziam (dizem) não ter emoções, por ser autista.

            Verso a verso, palavra a palavra, letra a letra, eis-nos chegados à antepenúltima estrofe do poeta dos heterónimos. Então, a menina perguntou:

            “– A mãe queria muito que o filho voltasse, não queria?”.

            “– Queria! Nem podes imaginar como ela sonhava…”.

            Mas as lágrimas não me deixaram concluir a resposta. Num ápice, atracámos na última estrofe; a meta tão aguardada por aquele olhar misterioso que teimava em perscrutar-me por dentro, como se houvesse um segredo para lá da minha própria consciência, um segredo que eu próprio nunca conhecera. Então, com os olhos entrelaçados, percorremos com os dedos as últimas palavras: “Lá longe em casa há a prece//Que volte cedo e bem//Malhas que o império tece//Jaz morto e apodrece//O menino de sua mãe”. E mesmo a meu lado a pergunta voltou a ecoar:

            “– O menino nunca voltou para a mãe?”.

            “– Pois não. Nunca, nunca mais voltou. E todos os dias existem meninos que voltam a partir, para nunca mais regressar…”.

            E eu vi – posso jurar que vi – o olhar daquela menina transformar-se num oceano, onde o tempo e as civilizações se confundem. A escassos centímetros do meu olhar, uma lágrima, da cor de cristal, escorreu-lhe ternamente pela face. E todo o sentido da vida se condensou naquele momento.

            Lá longe, não consigo dizer muito bem onde, talvez Fernando Pessoa tenha sentido o poder das palavras que nos deixou. Aquele poema, autêntica chave para abrir corações, destruiu a poderosa armadura do autismo e foi alojar-se no local mais profundo da consciência humana. E quiçá Pessoa tenha sorrido, perante o incrível poder das palavras, perante o revolucionário poder da poesia.

            Alguém escreveu um dia, penso ter sido Günter Grass, que depois de Auschwitz não poderia haver mais poesia. Pelo contrário, eu cada dia acredito com maior convicção que depois de Auschwitz – e de tudo o resto… – talvez só a poesia (ou a arte, de um modo mais geral) ainda nos pode salvar. Sensibilidade – ferida para a compreensão das diferenças e motor de todas as mudanças… [As feridas//Portas abertas//Rumo ao vazio//Do nosso silêncio. //Quando lá tocamos//É que nos arrepiamos//E lavamos//Com as lágrimas que libertamos…].

             A alguns minutos daquele episódio, chegou outro menino. Vinha cansado de tanto correr, ávido de ser ouvido. E falou-me da sua ida à igreja. Segredou-me que gostava de estar na casa de Deus, onde ia com a “senhora” da instituição onde vivia. Quando lhe perguntei se rezava, confessou-me nem saber em que pensava quando lá estava. E eu voltei imediatamente à carga:

            “– Então, o que sentes?”.

            “– Sinto uma mão na cabeça, a proteger-me”.

            Tantos anos depois dos episódios aqui descritos, imbuído pelo vazio próprio do fim do ano lectivo, dou por mim aqui sentado, nesta sala com vista para o infinito do mar. E surpreendo-me a pensar que nenhum menino de 10 anos deveria conhecer o sabor de tamanha solidão para necessitar desta mão, imaginária ou não…

            [O modo como lidamos//Com a diferença//Revela o que somos//Para lá do que a vista alcança. //Abençoados aqueles que ouvem as estrelas//Pois, nem todos podem ainda vê-las. //Talvez um dia, talvez um dia//Quando houver sabedoria…].

                                                                                  Renato Nunes

“Alcança quem não cansa”


            27 de Maio de 1963, meio-dia e trinta: falecia, no Hospital da CUF, de Lisboa, Aquilino Ribeiro, depois de 50 anos de intenso labor literário, que lhe permitiram revelar à luz do dia cerca de 70 livros, 17 dos quais romances. E, importa sublinhá-lo, falamos de um autor cujas publicações rondam uma média de 200 páginas por volume! Ademais, poderíamos mencionar as incursões histórico-biográficas feitas pelo escritor, os artigos de investigação literária, as memórias, as crónicas, os textos publicados em jornais, entre outros trabalhos que a própria investigação ainda vai resgatando do desconhecimento público.

            Ora, no ano em que também se completam os 100 anos da sua estreia literária (1913, Jardim das Tormentas) não resistimos à tentação de deixar aqui algumas reflexões sobre o notável romancista beirão, que foi, diga-se desde já, um dos poucos autores nacionais a dedicar-se, praticamente ao longo de toda a vida, em regime de exclusividade às letras.

            Nascido na freguesia do Carregal, concelho de Sernancelhe, no dia 13 de Setembro de 1885, quando reinava em Portugal D. Luís I, Aquilino Ribeiro viveu num período de encruzilhadas: Monarquia, I República, Ditadura Militar e Estado Novo. Filho de um sacerdote, ingressou no Seminário de Beja, foi expulso, rumou para Lisboa, sentiu-se atraído pelos ideais republicanos e, inclusivamente, tomou contacto com os regicidas (na obra Dossier Regicídio o Processo Desaparecido, o professor de Filosofia Política da Universidade Católica Mendo Castro Henriques acusa o autor beirão de ser um dos regicidas, embora, segundo a nossa perspectiva, nunca apresente factos contundentes sobre essa ilação, sustentada apenas em indícios, que apesar de constituírem uma importante base para futuras investigações não encerram definitivamente o problema). Preso durante a Monarquia, detido durante a Ditadura Militar, evadiu-se por duas vezes dos calabouços e lutou, de armas nas mãos, pelo restabelecimento da República.

            Já durante o Estado Novo (1933-1974), Aquilino Ribeiro, pese embora o facto de ter sido durante vários anos um dos (poucos) autores “intocáveis” e inclusivamente elogiado pelo próprio António de Oliveira Salazar, viu, por exemplo, ser-lhe instaurado, em 1959, um processo-crime devido à publicação do seu romance Quando os Lobos Uivam, que, entretanto, foi proibido e retirado dos escaparates.

            Aquilino cultivou, como poucos, o ideal humanista de conhecimento. Toda a sua obra transpira, afinal, o amor que o autor do romance Terras do Demo (1919) tinha pela vida, nas suas mais variadas e ínfimas formas. Por isso, deu voz aos animais como dificilmente encontraremos paralelo na história da literatura nacional. O paradigmático Romance da Raposa (editado em 1924) e alguns contos da Arca de Noé – III Classe (1936) bem mereciam figurar na lista de textos estudados nas Escolas…

            Atento como poucos aos pormenores, bebeu na Natureza grande parte da sua inspiração. O contacto com os clássicos, o estudo afincado do latim, desde os seus tempos dos “Preparatórios” e do Seminário, as vivências na Beira, as suas deambulações pela capital do início do século XX, que então fervilhava em ideais revolucionários, bem como, inquestionavelmente, a sua experiência de exilado político em Paris (ainda que de um modo intermitente, entre 1908 e 1931 Aquilino esteve exilado por três vezes na capital francesa) constituem factores determinantes para compreender o (invulgar) domínio que o “Mestre” (como foi frequentemente apelidado) revelava da língua materna.

            Aquilino: um homem que viveu numa época de encruzilhadas, mas também, conclusão da nossa responsabilidade, um homem de charneira, que nos permite perceber que, se é bem verdade que as épocas históricas são atravessadas por rupturas, não é menos verdade que também podemos detectar continuidades... Pese embora o facto de continuar a ser um autor pouco lido ou estudado (a começar nos bancos das Escolas ou das Universidades), Aquilino revela-se fundamental para compreender uma parte significativa da nossa História recente e, por conseguinte, o nosso próprio presente…            

            Numa carta enviada a Vitorino Nemésio, com a data de 25 de Abril de 1930, portanto quando decorria o seu III exílio, o “Mestre” desabafa, em tom de presságio: “A verdade é que cada vez me convenço mais que isso não é uma pátria, mas uma tripa. Com mágoa o penso e digo. Há uma coisa que me enternece aí: a natureza e o camponês. No fundo, não fazem mais que um: terra. Os poetas, os políticos, os literatos, na maioria, que detestável cambada! […] Não auguro nada do futuro de Portugal e do final desta tragicomédia”. (Cf. Jorge Reis – Aquilino em Paris. 1.ª edição, Lisboa, Veja, 1988, p. 112).

            Numa época em que, à semelhança do passado, vemos os nossos jovens (quase sempre os melhores…) forçados a abandonar o país, também por motivos políticos (a incompetência política de uma parte significativa daqueles que nos governaram – governam – tinha de conduzir, necessariamente, a este país sem futuro), pensamos que valerá a pena regressar à obra aquiliniana. Além de constituir um tratamento profiláctico contra a arrogância, será, por certo, um dos primeiros passos para começar a valorizar o conteúdo, em detrimento da forma (uma batalha tão cara ao Neo-
-Realismo…).

            Não imaginamos, de resto, outra solução para os nossos problemas, além de mais trabalho, rigor e competência. Um caminho que Aquilino perseguiu e eternizou na célebre máxima: “Alcança quem não cansa”. Estaremos nós, verdadeiramente, predispostos a persegui-la?

Renato Nunes

quinta-feira, 13 de junho de 2013

Fernando Pessoa

Quando estava a organizar uns livros que já tinha lido e queria doar à biblioteca municipal de Oliveira, dei com um boletim cultural da Fundação Calouste Gulbenkian dos idos inícios dos anos 90 do século passado. O Titulo do boletim é "O Homem Português". Abri à sorte num artigo que se intitulava Portugueses: Heróis Adiados e comecei a ler: "Das feições de alma que caracterizam o povo português, a mais irritante é sem duvida o seu excesso de disciplina. Somos um povo disciplinado por excelência.(...) Age sempre em grupo, sente sempre em grupo, pensa sempre em grupo. Está sempre à espera dos outros para tudo. E quando por milagre de desnacionalização temporária, pratica a traição à Pátria, de ter um gesto , um pensamento, ou um sentimento dependente, a sua audácia nunca é completa, porque não tira os olhos dos outros, nem a sua atenção à critica.(...) Somos incapazes de revolta e de agitação. Quando fizemos uma "revolução" foi para implantar uma coisa igual ao que já estava." Tendo em conta as ideias tão próximas do que acontece nos dias de hoje esperei quando virei a página ver o nome de um autor recente, qual não é o meu espanto quando vejo que esta dissertação foi escrita por FERNANDO PESSOA. A génese do povo português não muda apesar do tempo.

sexta-feira, 7 de junho de 2013

A Greve docente aos exames

Numa conversa que mantive no passado mês de Abril, com um colega professor, ele disse que a forma mais visível para que os professores fizessem pressão sobre o governo seria fazer greve aos exames, pois isso poria em causa o futuro dos alunos e a sua entrada no ensino superior. Revolta-me aperceber-me que ele tem toda a razão, pois agora apercebemo-nos do medo dos nosso governantes, que a situação... por mim anteriormente descrita se concretize. Revolta-me e entristece-me principalmente, pois na minha opinião a preocupação do governo com os professores devia ocorrer durante todo o ano, dando-lhe condições para que os alunos estejam o mais bem preparados possíveis. Infelizmente não é isso que tem acontecido, com o aumento do número de aluno por turmas, os mega agrupamentos e o constante medo da mobilidade, os professores sentem-se inseguros e sem as melhores condições para o desempenho das suas funções e dar aos alunos tudo o que eles merecem. Infelizmente o nosso governo, só se lembra dos professores quando a sua imagem é colocada em causa no exterior. Pois seria uma vergonha para o país os alunos não poderem fazer os exames de acesso à universidade.