domingo, 16 de junho de 2013

Eternas lições de palmo e meio


Já a manhã ia avançada quando a versão musicada por Paco Bandeira do inesquecível poema de Fernando Pessoa atravessou o infinito da sala: “No plaino abandonado//Que a morna brisa aquece//De balas trespassado//Duas de lado a lado//Jaz morto e arrefece”. E estrofe a estrofe o silêncio crescia dentro de nós.

            Esgotada a canção, regressou-se a cada verso, um a um. Bebemos então cada palavra, cada letra, como quem alcança água em pleno deserto. E na cabeça da menina, tão grande por fora e tão pequenina por dentro, começou a construir-se uma imagem. Uma história talvez até mais concreta do que esta caneta que agora seguro entre os dedos.

            E a menina viu, mesmo à sua frente, uma planície quase deserta, onde talvez ainda pairasse no ar o cheiro da destruição que apenas as armas podem deixar. Um jovem deitado no chão, com uma cigarreira ao lado e um lenço branco no bolso, a esvoaçar interminavelmente. A farda raiada pelo sangue. O olhar vazio. Silêncio. Dor indizível. E uma insuportável sensação de não haver tempo: “Tão jovem, que jovem era//Agora que idade tem”.

            Lá longe, uma mãe que reza pelo seu menino, o seu único filho, estupidamente mobilizado pelos homens de gabinete, para matar ou deixar-se matar. Na cozinha ou na sala – quem nos pode impedir de imaginá-lo? – talvez uma “criada velha” que chora, sempre que pensa naquele lenço branco que um dia deu ao menino que ajudou a tornar homem. E, minuto após minuto, uma flor crescia no olhar daquela menina, de quem tantos diziam (dizem) não ter emoções, por ser autista.

            Verso a verso, palavra a palavra, letra a letra, eis-nos chegados à antepenúltima estrofe do poeta dos heterónimos. Então, a menina perguntou:

            “– A mãe queria muito que o filho voltasse, não queria?”.

            “– Queria! Nem podes imaginar como ela sonhava…”.

            Mas as lágrimas não me deixaram concluir a resposta. Num ápice, atracámos na última estrofe; a meta tão aguardada por aquele olhar misterioso que teimava em perscrutar-me por dentro, como se houvesse um segredo para lá da minha própria consciência, um segredo que eu próprio nunca conhecera. Então, com os olhos entrelaçados, percorremos com os dedos as últimas palavras: “Lá longe em casa há a prece//Que volte cedo e bem//Malhas que o império tece//Jaz morto e apodrece//O menino de sua mãe”. E mesmo a meu lado a pergunta voltou a ecoar:

            “– O menino nunca voltou para a mãe?”.

            “– Pois não. Nunca, nunca mais voltou. E todos os dias existem meninos que voltam a partir, para nunca mais regressar…”.

            E eu vi – posso jurar que vi – o olhar daquela menina transformar-se num oceano, onde o tempo e as civilizações se confundem. A escassos centímetros do meu olhar, uma lágrima, da cor de cristal, escorreu-lhe ternamente pela face. E todo o sentido da vida se condensou naquele momento.

            Lá longe, não consigo dizer muito bem onde, talvez Fernando Pessoa tenha sentido o poder das palavras que nos deixou. Aquele poema, autêntica chave para abrir corações, destruiu a poderosa armadura do autismo e foi alojar-se no local mais profundo da consciência humana. E quiçá Pessoa tenha sorrido, perante o incrível poder das palavras, perante o revolucionário poder da poesia.

            Alguém escreveu um dia, penso ter sido Günter Grass, que depois de Auschwitz não poderia haver mais poesia. Pelo contrário, eu cada dia acredito com maior convicção que depois de Auschwitz – e de tudo o resto… – talvez só a poesia (ou a arte, de um modo mais geral) ainda nos pode salvar. Sensibilidade – ferida para a compreensão das diferenças e motor de todas as mudanças… [As feridas//Portas abertas//Rumo ao vazio//Do nosso silêncio. //Quando lá tocamos//É que nos arrepiamos//E lavamos//Com as lágrimas que libertamos…].

             A alguns minutos daquele episódio, chegou outro menino. Vinha cansado de tanto correr, ávido de ser ouvido. E falou-me da sua ida à igreja. Segredou-me que gostava de estar na casa de Deus, onde ia com a “senhora” da instituição onde vivia. Quando lhe perguntei se rezava, confessou-me nem saber em que pensava quando lá estava. E eu voltei imediatamente à carga:

            “– Então, o que sentes?”.

            “– Sinto uma mão na cabeça, a proteger-me”.

            Tantos anos depois dos episódios aqui descritos, imbuído pelo vazio próprio do fim do ano lectivo, dou por mim aqui sentado, nesta sala com vista para o infinito do mar. E surpreendo-me a pensar que nenhum menino de 10 anos deveria conhecer o sabor de tamanha solidão para necessitar desta mão, imaginária ou não…

            [O modo como lidamos//Com a diferença//Revela o que somos//Para lá do que a vista alcança. //Abençoados aqueles que ouvem as estrelas//Pois, nem todos podem ainda vê-las. //Talvez um dia, talvez um dia//Quando houver sabedoria…].

                                                                                  Renato Nunes

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