quinta-feira, 5 de julho de 2018

A História dá lições?

Há alguns meses, sem aviso prévio, entrou-me pela casa um senhor na casa dos 90 anos. A residir há mais de quatro décadas em Espanha, vinha agora a Portugal com o grande objectivo de revisitar o típico edifício beirão de granito onde tinha nascido e que, por mera coincidência, hoje se encontra na posse da minha família. O brilho no seu olhar, enquanto ouvia desfiar um conjunto de memórias a respeito dos falecidos pais, levou-me a reviver o meu próprio interesse pela História.

À medida que envelhecemos, há uma tendência geral para regressar com maior regularidade às memórias de infância. Essa interminável saudade por um tempo onde tudo parecia possível e eterno anda de braço dado com a necessidade, cada vez mais premente, de compreender um pouco melhor o que somos (e talvez até mesmo o que nunca pudemos ser).

Na recta final da vida, aquele homem regressava ao ponto de partida, como quem busca no álbum de fotografias familiares a imagem mais remota da sua própria existência, insistindo, por conseguinte, em recordar o que o tempo teima em apagar. Trata-se, afinal, de uma tentativa para reconstruir uma narrativa que confira algum sentido à vida ou ao que resta dela. Uma ilusão sem a qual tudo se tornaria insuportável.

Ora, quando se estuda História sentimo-nos menos sós, não só porque compreendemos que representamos apenas mais um grão de areia num imenso deserto, mas também porque aprendemos que a vida de cada indivíduo apenas adquire sentido em função do que fazemos pelos outros.

Porém, existe hoje uma tendência para esvaziar a História do seu pendor narrativo, transformando-a num discurso teórico e hermético, de tal modo abstracto que o indivíduo é frequentemente subalternizado. Mas mais do que isso, vigora uma tendência para sustentar que a História não dá lições. 

É contra esta concepção de uma disciplina supostamente expurgada de valores e ensinamentos que eu, frequentemente, me insurjo. Afinal, se existe alguma área do conhecimento que pode ajudar os indivíduos a pensar pela própria cabeça, essa disciplina é precisamente a História. Não só porque nos demonstra, com recurso a exemplos concretos, que as circunstâncias de cada indivíduo são importantes, mas também porque nos ensina que cada Homem pode ultrapassar os seus próprios constrangimentos geográficos, familiares, financeiros... Entre outras, eis as ferramentas que a História permite desenvolver:
– estruturar o pensamento e construir uma narrativa organizada e sequencial, o que, neste era do caos da informação que inunda as redes sociais, constitui uma ferramenta fundamental para aprender a separar o essencial do acessório, a verdade da mentira;
– fomentar a empatia, uma condição essencial para compreender melhor o outro;
– criar um espírito de humildade, o que também equivale a dizer aprender a estar calado, aprender a ouvir, antes de avançar com a defesa de qualquer ideia;
– consolidar a noção de interdependência ética com todos os seres, num permanente, complexo e demorado processo evolutivo;
– ter consciência da finitude de todos os processos, incluindo, claro está, da própria vida pessoal;
– aprender a interrogar o meio envolvente e as circunstâncias da sua própria época (afinal, o historiador começa a construir-se dentro da sua casa e junto da comunidade local). A História ajuda-nos a edificar uma perspectiva mais ampla da “atmosfera do nosso agir” (Antero de Quental), levando-nos a procurar ir para além da espuma dos acontecimentos;
– reconhecer que os cogumelos não nascem ao acaso, estes necessitam sempre de determinadas circunstâncias favoráveis para proliferarem;
– compreender melhor as opções político-ideológicas em que nos situamos e as alternativas, de facto, existentes, o que também equivale a dizer aprender a vigiar o que fazemos, dizemos ou pensamos. E que as reacções inconscientes podem ser indícios tão ou mais importantes do que todas as opções pacientemente reflectidas. E aqui não posso deixar de recuperar as sensatas palavras de Umberto Eco: “O Ur-Fascismo ainda paira à nossa volta, às vezes em trajos civis. Seria tão confortável para nós se alguém assomasse à cena do mundo e dissesse: «Quero reabrir Auschwitz, quero que as camisas negras tornem a desfilar em parada pelas praças italianas!» Mas, ai, a vida não é assim tão fácil. O Ur-Fascismo ainda pode voltar sob as vestes mais inocentes” (Como reconhecer o Fascismo. Da diferença entre migrações e emigrações, Lisboa, Relógio D’Água, 2017, p. 29).
Quem diz que a História não dá lições pretenderá, talvez, dizer que as suas ferramentas dificilmente nos poderão ajudar a ganhar muito dinheiro ou assumir outro tipo de preponderância social. E sobre isso não tenho qualquer dúvida. Em sentido inverso, penso que poucas ciências como a História poderão ajudar-nos a construir um mundo efectivamente mais justo e sustentável, pelo que o seu estudo constitui, em si mesmo, uma forma privilegiada para construir uma consciência cívica e um pensamento crítico original, ferramentas que tanta falta fazem nos estranhos tempos digitais em que vivemos.
Sim, a História pode dar lições. A quem saiba ouvi-las e interrogá-las… 

Renato Nunes (renato80rd8918@gmail.com)