Luís
Reis Torgal publicou no passado mês de Março a sua mais recente obra, à qual
deu o inquietante título História… Que
História? Trata-se de um livro-guia (a fazer lembrar O Príncipe, de Maquiavel), que pode ser lido por todos, seja os (ditos)
especialistas ou meros curiosos; aspecto que, desde logo, traduz um assinalável
esforço de divulgação científica, infelizmente, pouco comum em Portugal. Falamos,
afinal, de um historiador, que, se tiver de escolher entre dois sinónimos, selecciona
quase sempre o mais simples, o que, neste país ainda barroco até ao tutano, diz
muito acerca da sua metodologia de trabalho.
A intenção de simplificar o
exercício da leitura pode, porém, implicar alguns inconvenientes, como sejam
(nesta obra em concreto) a inexistência das notas de rodapé, que o historiador
em causa reconhece, porém, como fundamentais para validar o seu discurso, mas
às quais – aparentemente por critérios editoriais – teve de abdicar.
Apesar do esforço empreendido por
Luís Reis Torgal para tornar o seu discurso acessível a um maior número de
leitores, não podemos esquecer que a obra em análise é, antes de mais, um
exercício de aturada reflexão (a que já nos habituou o autor), exercício ao
qual se associa uma invulgar capacidade de infundir esperança, mormente nos
mais jovens, que, por amor, ainda perseguem o sonho de consagrar a vida ao
estudo da História. Afinal, estamos perante um historiador que, como poucos, soube
e continua a saber “fazer escola”, reunindo em torno de si e da sua
incontornável obra (nomeadamente sobre o Estado Novo) um conjunto de novos
investigadores.
Luís Reis Torgal dividiu o seu livro
em cinco capítulos: 1 – Afinal o que é a História?; 2 – A História e a sua
“circunstância”; 3 – História e ensino; 4 – História, ideologia e memória e,
por fim, 5 – História e intervenção cívica.
Enquanto discípulo deste Mestre – importa
registar aqui a minha declaração de interesses –, reconheço que uma das grandes
lições que dele recebi e que mais me marcou foi o modo como se posiciona
perante os factos a estudar, atacando-os, de frente (“Não inventem”), através
da consulta das fontes originais, da descida aos arquivos históricos e da
omnipresente humildade/dúvida metódica (para evitar os erros que de tão
repetidos se transformaram em verdades), construindo depois um discurso, quase
sempre, aparentemente expurgado de grande roupagem teórica (o que, porém, não
significa que não tenha subjacente um intenso exercício de reflexão
epistemológica, como o demonstram as obras que assinou ao nível da História da
História).
Nestes tempos tão estranhos, no
decurso dos quais a História ou, pelo menos, algumas correntes (ditas) historiográficas
nacionais se parecem aproximar de tudo (Jornalismo, Política, Sociologia,
Filosofia, Economia, Psicologia…) para depois não serem nada; nestes estranhos
tempos em que se premeiam, nos mais variados domínios, as linguagens
herméticas, esotéricas e profundamente ocas, seria importante – segundo penso –
olhar para a lição deste Mestre conimbricense, que, já jubilado da carreira
académica (mas sempre ligado ao incessante labor da História), nos interroga:
Que História é esta que hoje se faz? Que História é esta que hoje, em traços
gerais, se consome? Que História é esta que hoje se divulga, até mesmo no “Canal
História” e na televisão pública portuguesa? Que História é esta – pergunto
agora eu – que ao aproximar-se da Sociologia, da Filosofia, da Economia, da
Psicologia… acaba por, tantas vezes, absorver acriticamente os seus discursos,
para depois se transformar num caldo barroco de inutilidades e, assim, perder a
sua identidade? Que História é esta – pergunto ainda – que parece ter deixado
de privilegiar o contacto com as fontes históricas primárias?
José Mattoso, naquela que continua a
ser uma das grandes referências historiográficas da minha vida – A Escrita da História –, começa, quase
paradoxalmente, por reconhecer a sua dificuldade em abordar questões de
natureza teórica: “A minha insegurança resulta de uma certa aversão pessoal por
questões teóricas e por noções abstractas, agravadas por uma deficiente
preparação filosófica”. Mattoso, como Torgal, de resto, compreendem que a
teorização não pode formatar o discurso historiográfico. Ademais, um exercício
de teorização deve pressupor todo um prévio e longo percurso de contacto e
interpretação das fontes e, por isso, não é por acaso que José Mattoso tenha
ensaiado esses primeiros passos teóricos apenas na década de 80, sublinhe-se,
mais de 20 anos depois de ter concluído o seu Doutoramento em História Medieval.
Acontece porém que, por vezes, mormente em Portugal, um discurso hermético ainda
é percepcionado (seja ao nível da História, da Poesia, da Literatura…) como uma
boa defesa: afinal, quem não é compreendido não pode ser debatido (Quem teria,
afinal, coragem de afirmar que o rei vai nu?). Muitos dos falsos deuses que nós
criamos são, precisamente, alimentados por esta estratégica ausência de debate…
Nesta “civilização do espectáculo”
em que vivemos (Vargas Llosa), vários historiadores adaptam-se vertiginosamente,
rendem-se à mediocridade reinante e, desse modo, também contribuem para a
construção daquilo que Luís Reis Torgal apelida de “sociedades sem História”.
As sociedades em que deambulamos, cada vez mais, anestesiados.
Houve um tempo em que as pessoas
tinham referências – outras pessoas –, que funcionavam como faróis. Nas horas
de maior incerteza, era a elas e às suas palavras que recorriam, como quem se
agarra a uma oração no meio da tempestade. Ler Luís Reis Torgal – em particular,
este seu último livro – é reencontrar uma referência, um guia de saber-pensar
(sem receitas pré-definidas e escassas certezas), o que também significa
recuperar alguma da esperança, entretanto, perdida, na voragem destas noites
sem fim à vista, onde vivemos mergulhados. Recorde-se que o genial D. Quixote de la Mancha, de Miguel de
Cervantes, morreu quando deixou de acreditar nos cavaleiros andantes e
regressou ao mundo terreno, onde apenas desempenhava o papel de Alonso…
Luís Reis Torgal é, reforço, uma das
grandes referências historiográficas da minha vida, o que não implica,
obviamente, que tenha de concordar com tudo o que escreve. Lamento, aliás, que na
sua mais recente obra se tenha rendido aos novos critérios editoriais: exclusão
das notas de rodapé e adopção da verdadeira monstruosidade que é o Novo Acordo
Ortográfico (pelo qual, estranhamente, ninguém é levado à barra dos tribunais…).
Mas isso daria azo a um intenso e longo debate, do qual não excluo a
possibilidade de eu próprio ser já (portanto, a título precoce) uma espécie de
“Velho do Restelo”, incapaz de aceitar as mudanças trazidas pelos novos tempos.
História: poucas pessoas ficarão
indiferentes quando alguém lhes acena com uma parte do que são, uma parcela
onde poderão, afinal, reconhecer muito do que não compreendem acerca de si
mesmas e do mundo que as rodeia. O grande poder da História, enquanto ciência,
também é este: ajudar-nos – como concluiu José Mattoso – a conhecer o que
efectivamente somos (não o que imaginamos que somos), para, se possível, evitar
o que não gostaríamos de ser.
Escreveu Günter Grass, no seu Tambor de Lata, que o século XX haveria
de ficar conhecido como o século sem lágrimas (frase onde me inspirei para
escolher o título deste artigo). O estudo da História também estimula a empatia,
a capacidade de nos colocarmos na pele do outro. Sem esse esforço, estaremos
condenados a viver séculos sem lágrimas e novos holocaustos continuarão a perpetuar-se,
mesmo à frente da nossa indiferença, da nossa crónica ausência de memória
histórica...
Renato Nunes
(renato80rd8918@gmail.com)