sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Acualização de agendas

Meus caros, ritualizemos a passagem de ano à medida de cada um e porfiemos por tempos melhores. Esperemos que sim.

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Homo Faber

O texto postado pelo Renato e as considerações que o Tiago fez sobre o mesmo assunto remetem-nos para a questão do fascínio que as tecnologias de informação exercem. Embora me sinta relutante em escrever sobre este assunto já tão bem abordado nos dois textos, não posso deixar de dizer que também me preocupa um certo monismo/unanimismo em torno das designadas TIC. Entendamo-nos: sou um utilizador banal do pc e da net. Gosto de visitar bolgs e sites que me possam ser úteis ou ter algum efeito hobby. Creio que isto se enquadrará numa utilização esclarecida da internet. Não é isto, porém, que está em causa.

Preocupa-me o lugar cada vez mais omnipresente, quase compulsivo, que o computador e tecnologias derivadas ocupam no imaginário educativo de há uns anos a esta parte. Empiricamente, qualquer um de nós poderá relatar casos de salas mal aquecidas, com mobiliário velho, janelas partidas, portas avariadas mas devidamente munidas de projector multimédia ou, inclusive, dos quadros interactivos. Não é a disponibilidade destes equipamentos, aliás ocasionalmente úteis, que perturba mas sim o encantamento pouco sofisticado em relação aos mesmos. Dito de outro modo, é a quase dependência da informática como panaceia didáctica e pedagógica acompanhada de um discurso pseudo-científico bebido no eduquês e no pedagogismo das mudanças de «paradigma» da relação professor-aluno e de ambiente de sala de aula. Do meu ponto de vista, a única mudança de paradigma tem sido a redução permanente do perfil funcional dos professores a burocratas com um palavreado jurídico infantil e a executores curriculares sem autonomia nem esqueleto científico. Creio que a profusão de acções de formação nas áreas das TIC e respectivas aplicações em detrimento de boas sessões de formação em áreas científicas (ou mesmo o desincentivo semi-oculto à continuação de estudos pós-graduados ou outros) são demonstrativas da importância desmedida e deproporcionada atribuída áquilo que é instrumental e não essencial. Do mesmo modo, estou persuadido que a crescente infantilização da escola, onde se sacrifica o conteúdo à forma, o permanente ao breve, caminha de mãos dadas com uma obtusa tendência de se acreditar que informação é conhecimento e que o acesso àquela é condição suficiente deste. Com efeito, a procura de informação, seja em que suporte for, só poderá ser séria e relevante se for orientada por algo que está para além das TIC e que só se adquire com o tempo que a maturidade cultural traz. E esse tempo não é o dos downloads nem dos trabalhos decalcados de um qualquer site da net à boleia do discurso já pitoresco do savoir-faire (mas fazer o quê e como?) e de uma autonomia sem conteúdo.

sábado, 25 de dezembro de 2010

Aos meus caríssimos co-bloggers e família, votos de uma belíssima quadra festiva com a paz e harmonia que merecem.

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Natal recuperado

“– Junto ao Penedo do Algar, à última badalada da meia-noite, as bruxas saem dos seus covis, agarram nas vassouras e esvoaçam pelas matas. Então, passando por cima de todas as árvores, chegam, num instante, à aldeia. O luar ilumina a penumbra da noite quando, subitamente, as vassouras estancam sobre o telhado da casa. Depois, quando regressam ao Penedo, já levam companhia… nessa noite, meu netinho, foi escolhida a tua mãe. Era quase véspera de Natal e o primeiro tronco de oliveira já ardia na lareira.”
            “– Conta-me. Conta-me, avó! Contas?!”
            “– Claro que conto… ouve o vento, pois ele ainda guarda as memórias desse dia. Levaram-me a tua mãe, por cima de todas as árvores, colocaram-na junto a uma grande fogueira e todas as bruxas começaram a pular e a saltar à sua volta. Saltavam e pulavam tão alto que a minha pequenina, de tão assustada, começou a puxar as brasas mais incandescentes para junto dela e depois passou a atirá-las em direcção a tudo o que bulia, queimando as pernas das mais desprevenidas. Então, quando uma delas se apercebeu agarrou-a por um braço e foi escondê-la na alminha do Outeiro da Boiça. As outras bruxas, que seguiram de perto a viagem, desataram a rir em altas gargalhadas, enquanto diziam: – ah pequenota, nunca serás libertada…”
            “– E a minha mãe, ! Ó , e a minha mãe?!”
            “–  Calma, calma… aqui, comigo, tudo sempre acaba bem. Nessa noite, a tua mãe não voltou a casa, mas, logo que a manhã seguinte começou a romper, eu e o teu avô saímos à procura da nossa menina. Quando, por acaso, passámos ao lado da alminha do Outeiro da Boiça, o teu avô, como era habitual, tirou o chapéu e ajoelhou-
-se para rezar. Eu ainda o tentei convencer a deixar as rezas para mais tarde; até lhe devo ter furado os tímpanos de tanto o azucrinar com a minha mania das pressas! Mas o teu avô ajoelhou-se e rezou por todos os espíritos que já não estavam fisicamente entre nós, pediu a Deus que ajudasse todos os Homens, sobretudo aqueles que mais precisavam. Então, como que por magia, bem do meio da pedra, apareceu a minha menininha, beijando muito o teu avô. Agarrou-se a nós a chorar e, quando conseguiu recompor-se, segredou-nos:
eu ouvi as bruxas dizerem que as alminhas guardam os segredos mais bonitos de cada Homem, mas apenas alguém verdadeiramente puro, tão puro que aqui parasse a rezar, pensando somente nos outros, poderia libertar-
-me
…”
            “– E depois ? E depois?!”
            “– E depois foi o Natal, meu netinho! Era véspera de Natal e a lareira iluminava a noite…”
            Ano após ano, ao longo da meninice, fui ouvindo, cada vez com maior espanto, a fabulosa narração associada ao Penedo do Algar e às gentes da minha aldeia. Agora, que o Natal está aí mesmo à porta, dou por mim mais uma vez sentado, em casa de meus pais, a recordar esta estória, que continua a preencher-me. Sempre que aqui regresso e acendo a lareira, quase consigo jurar que pressinto as bruxas paradas em cima do telhado, como outrora, a aguardarem… E isso ajuda-me a recordar que existem lugares que nunca abandonamos; confundem-se de tal modo com aquilo que somos, que, dificilmente, conseguimos descrever-nos sem reconstruí-los por dentro, nos mais ínfimos pormenores, em imagens, cheiros ou sabores. O Natal faz parte desses lugares; faz parte das pessoas insubstituíveis da nossa vida. E o vazio ocupa-se.
            Nestes dias em que o frio e o nevoeiro se entrelaçam, saio muitas vezes a deambular pela noite dentro. Sempre que reencontro uma alminha, talvez por influência das recordações que trago escondidas no poço mais fundo da minha existência, paro, persigno-me e aproximo-me, quiçá à espera de libertar os segredos mais bonitos que ainda não destruí. E, incrivelmente, sorrio, limito-me a sorrir… Existem sorrisos que condensam milhões de palavras; desnecessárias.
            Depois, já em casa, os candeeiros crivados de teias de aranha conservam ainda as memórias de um tempo, simultaneamente, tão próximo e tão distante. Sabem…, mãe, pai, avó, avô… talvez seja hoje que as bruxas vão, finalmente, ganhar coragem e levar-me, por cima de todas as árvores, até ao Penedo do Algar, onde já todos vocês devem estar a dançar, à volta de uma enorme fogueira. Talvez… Mas enquanto isso não acontece, enquanto a última badalada não ecoa, são as estórias do último Natal que ainda me permitem fazer a consoada, como só ela pode ser feita, com toda, toda a família à mesa… antes e depois da última badalada. E do silêncio que ecoa dentro de nós quando pensamos nessa comunhão.
            Pela noite dentro, embrenhado na mais profunda solidão, eterna exigência da reflexão, reinvento-me a escrever o Natal possível, depois da maior perda; eis aqui, afinal, o meu Natal recuperado…
Renato Nunes      
  

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

A Importância de saber usar as Novas Tecnologias

”Vivemos na designada sociedade da informação” Parece não existir qualquer dúvida sobre a frase inicialmente citada. A informação circula a um ritmo alucinante, actualmente é possível ter um conhecimento imediato de algo que se passa do outro lado do Mundo. É a magia da informação.
Comentando o post do Renato que aborda a submissão perante as novas tecnologias, o primeiro parágrafo não poderia vir mais a propósito.
Lá está, “post”, sinónimo das novas tecnologias, outrora designava-se texto ou artigos, palavras bem portuguesas, ao contrário de post, um neologismo introduzido pela internet. Apesar da complexidade que a Língua Portuguesa acarreta não consigo deixar de ficar fascinado pela constante descoberta que faço, quando me apercebo de uma palavra nova que conheço e a consigo integrar num texto. Após o estado de saturação resultante do excesso de trabalho pretendo ler o último livro do Eduardo Agualusa, “Milagrário Pessoal” que fala precisamente sobre a questão  da introdução de novas palavras e da extinção de outras.
Com isto acabei por fugir um pouco ao cerne daquilo que queria falar, no entanto considero que me faz bem escrever ao mesmo ritmo que me surgem as ideias, sem reflectir muito sobre elas, ajuda a acalmar e desentorpecer pensamentos que rigidamente se direccionaram numa direcção durante as últimas semanas. Continuando!!!
Actualmente vivemos numa sociedade designada pelo Renato de “Ditadura do Digital”, não vejo as coisas de um modo tão duro e autoritário, no entanto concordo em parte com aquilo que ele escreveu no seu post. O Digital, a internet é algo que tem pouco mais de meio século de existência, no entanto foi algo que veio revolucionar a sociedade actual. A informação hoje está à distância de um clique, há um manancial de recursos enorme que nós professores temos de ter o discernimento de o saber usar convenientemente. A Era digital quando mal usada pode dar origem à preguiça e à falta de eficácia no ensino. Com isto quero dizer que quando pretendemos alguma informação por mais simples que seja vamos à internet. Perdeu-se o hábito do contacto com os livros, e a dificuldade inerente à procura de encontrar alguma informação que pesquisemos.
Cabe-nos a nós professores e transmissores de conhecimento, não usar estar novas tecnologias como promissoras de algo com um intuito essencialmente lúdico, minimizando os conteúdos e as competências.
Digamos em abono da verdade toda esta situação que caminha para uma desmotivação e descrédito da carreira docente não é culpa maioritariamente nossa, pois hoje em dia com a obrigatoriedade do ensino até ao 12º ano há um consequente aumento dos alunos sendo as turmas mais heterogéneas. No meu caso chego a ter que planear 3 aulas para uma turma, pois tenho 2 alunos com necessidades educativas especiais, com ritmos de aprendizagem diferentes.
Actualmente ser professor, é algo cada vez mais exigente, pois envolve a percepção das realidades degradantes que entram cada vez mais no ensino. As estratégias e modelos de aprendizagem têm que se adequar a esse grupo de novos alunos. As novas tecnologias onde eu insiro os manuais em formato digital, permitem amenizar a carga burocrática e laboral a que estamos sujeitos, no entanto temos de saber usa-la conveniente para que o saber palpável e a exigência da avaliação, não se percam e haja um mínimo de dignidade no ensino.

A necessidade de conhecer os nossos direitos

O ano de 2010 que está prestes a terminar foi celebrado pela União Europeia como sendo o Ano Europeu contra a Pobreza e Exclusão Social. É cada vez mais importante percebermos a realidade que nos rodeia, as desigualdades espaciais e económicas, entender as suas razões e consequências.
A disciplina de Geografia tem o papel de aferir as competências, de acordo com o grau de ensino, ajudando os alunos a interpretar melhor o nosso Mundo, pois considero que a sua boa percepção os poderá tornar cidadãos mais conscientes no futuro.
As desigualdades económicas, sociais e demográficas são cada vez mais evidentes. Na nossa sociedade é cada vez mais difícil triunfar e ter êxito, pois valoriza-se cada vez mais a qualificação, assim como a autoconfiança e a capacidade de arriscar.
O conhecimento dos nossos direitos é por isso cada vez algo indispensável. No dia 10 de Dezembro celebra-se o Dia Internacional dos Direitos Humanos, declaração proferida em 1948 pela ONU. Há várias omissões aos Direitos Humanos em vários países que é necessário alertar, pois todo o ser humano tem os mesmos direitos, devendo por isso ser respeitados em qualquer parte do Mundo.
É um percurso longo, provavelmente não atingível a curto prazo, mas é preciso dar um crescente valor à pessoa humana em detrimento dos interesses económicos, que na maior parte das vezes sobressaem. Em Portugal começam a notar-se cada vez mais casos de pobreza, observam-se que a linha entre a estabilidade e instabilidade é cada vez mais ténue e muito dos direitos fundamentais do Homem são colocados em causa.
A alterações dos valores e princípios é algo cada vez mais urgente, deixar de pensar unicamente em nós e preocuparmo-nos mais com o bem estar dos outros. É importante recuperar um pouco da inter-ajuda que existia num passado próximo. Por isso é com satisfação que devemos assumir a proposta da União Europeia de comemorar o próximo ano de 2011 como sendo o Ano do Voluntariado e da Cidadania Activa. Para que para que a dávida de nós aos outros e a garantia do respeito pelos Direitos Humanos sejam uma realidade.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

A ditadura do digital…

            “ – Fará sentido continuar a escrever assim, com a caneta na mão, quando à nossa volta tudo é dominado pelas novas tecnologias, quando vivemos numa sociedade que exige o recurso a computadores para as tarefas banais do dia-a-
-dia?” – eis uma questão, recorrentemente, colocada pelos adolescentes nas Escolas portuguesas.
            De facto, se pensarmos no “choque tecnológico” implementado nos últimos anos, talvez não seja muito difícil imaginar que os velhos cadernos e as canetas que nos habituámos a ver em cima das secretárias acabem por ser substituídos pelas novas tecnologias, que emergem, aos olhos de muitos, como a panaceia para todos os problemas do sistema educativo. Os computadores “Magalhães” aparecem hoje como a imagem de marca do estudante nacional, mas eles são apenas a ponta de icebergue de um movimento mais complexo que passa, por exemplo, pela gradual substituição do quadro-negro e do insosso giz pelos modernaços quadros interactivos, pelos comandos individuais que permitem a cada aluno ensaiar, a partir da sua carteira, alguns célebres jogos já eternizados em formato televisivo ou ainda, apenas a título de exemplo, pelas Acções de Formação que os docentes têm de frequentar na área das novas tecnologias, tendo em vista o famigerado reconhecimento da sua “competência digital”, desiderato final de qualquer docente que se preze…
            Embora reconheça que existe hoje uma tendência muito vincada para todos nos deixarmos levar pela ditadura do teclado e admitindo o contributo válido que as novas tecnologias desempenham nas sociedades actuais, penso que será pertinente reflectir nalguns aspectos que passo a enumerar.
            I – As novas tecnologias não são imprescindíveis para que exista um bom ambiente de trabalho e de aprendizagem dentro da sala de aula. O computador, os quadros interactivos e demais acessórios são, apenas e só, mais um dos recursos que o professor e os alunos têm ao seu dispor. Bem sei que não produz tanto “espectáculo”, mas a simples leitura interpretativa de um texto pode ser tão ou mais válida do que qualquer um dos propalados recursos tecnológicos. Aliás, segundo creio, o professor é e continuará a ser o principal “recurso” dentro da sala de aula, pelo que essa ilusão de querer transformá-lo num simples motivador dos meninos que vão “descobrindo e desenvolvendo as competências”, pura e simplesmente não faz qualquer sentido. As novas tecnologias, é bom que não se esqueça, não devem constituir, dentro da sala de aula, um fim em si mesmo, mas um meio para que os alunos aprendam e se desenvolvam…
            II – Dizia-me recentemente um professor catedrático que “a Escola já não serve, fundamentalmente, para aprender a ler, a escrever e a contar”. Contra-
-argumentei na altura e volto aqui a reafirmá-lo. No meu entender, a Escola deve servir, fundamentalmente, para aprender a ler, a escrever e a contar, sob a orientação e (não receio dizê-lo) a autoridade do professor. O resto, as competências de que tantos pseudo-pedagogos falam, virá sempre por acréscimo, será o resultado natural de uma aprendizagem substantivada em conteúdos. Ninguém reflecte no vazio. É preciso possuir conhecimentos, para depois conseguir mobilizar o que sabemos e aplicá-lo à situação concreta. O conceito de competência, no meu entender, é indissociável de conteúdo. Muitos problemas do actual sistema de ensino entroncam, precisamente, aqui: na substituição dos conteúdos pelas esotéricas competências e na desautorização crescente da figura do docente.
            III – Um bom professor deve, antes de mais, dominar cientificamente os conteúdos da disciplina que lecciona. É urgente intervir a montante e não a jusante, onde já pouco há a fazer. A formação contínua dos professores deverá ser recentrada na sua área de leccionação, pois, na actualidade, parece prevalecer a ideia segundo a qual para ser um bom professor de História é preciso saber de tudo (sobretudo Informática…), menos de História. As teorias pedagógicas, que me perdoem os que não concordarem, afloram naturalmente, quando existe conhecimento, quando existe vocação, quando há vontade de ajudar os outros e o aluno, o professor, demais órgãos educativos e a imprescindível família assumem, verdadeiramente, um papel activo.
            IV – Quando analisamos o longo e complexo processo de evolução física e mental do Homem, podemos constatar que a mão desempenhou um papel fulcral na Hominização, pois o (aparentemente) simples facto de o Homem necessitar de agarrar, suavemente, um objecto exige uma estreita articulação/coordenação com o cérebro, factor que possibilitou o seu desenvolvimento. Na actualidade, existe uma inquestionável tendência para substituir a ideia do lápis e da caneta como prolongamentos da mão, por um novo método, em que nos limitamos a premir um botão (técnica de “picar o teclado”). Antes, quando, ainda crianças, ouvíamos as histórias que os nossos avós tinham para contar-nos desenvolvíamos a imaginação. Agora, tudo é servido, já totalmente mastigado… Implicações, a longo prazo, desta tendência? Não sei. Mas a verdade é que todos os processos que possam implicar um maior comodismo cerebral deveriam, pelo menos, fazer-nos parar para reflectir, ou não fosse a doença de Alzheimer, já neste momento, um inquietante problema…
            V – Talvez a tendência actual saia mesmo vencedora e o velho hábito de escrever à mão, com a folha de papel vazia e a caneta, acabe por ser substituído pelas novas tecnologias. Talvez essa tendência venha mesmo a tornar-se uma marca incontornável dos novos tempos, a par do anunciado fim dos livros em suporte de papel. A verdade é que, a maioria dos poetas que já li confessam não conseguir libertar qualquer poema em frente ao ecrã e os artistas dificilmente poderão prescindir desse contacto mais directo com os materiais. Não sei o que virá a seguir, apenas posso perguntar: será que a “ditadura das máquinas” pode humanizar-nos? A minha consciência leva-me a responder que não. O leitor saberá encontrar a sua resposta.

Renato Nunes

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Desenhar a consciência e salvar-se…

Já perdeste a noção das horas em que procuraste salvar-te enquanto escreves. Os dedos escorrem-te pelo teclado. Lá fora chove desalmadamente; é a forma que a Natureza encontrou para se purificar; quanto a ti, este é o único verbo que aprendeste a conjugar para, ainda, te conseguires lavar.
            O local onde te encontras já serviu de abrigo a outros Homens, que partiram muito antes de chegares. À tua volta, as paredes estão prenhes de pinturas e mesmo em frente ao teu nariz jaz um enorme bisonte, eternizado naquele instante em que a lança o atravessa. Sentado, com o computador nas pernas, ligas a lanterna e vais inspeccionando detalhadamente cada pormenor da gruta, quiçá na esperança de reconstruir os esqueletos que trazes perdidos na memória.
            Quando o discípulo de Hipócrates te disse que apenas te restavam mais alguns meses de vida e ouviste aquela palavra, que ainda agora não consegues sequer pronunciar, fugiste o mais depressa possível. Correste, correste até chegar aqui, a esta húmida caverna.
            Agora, embrenhado na mais profunda solidão, remiras cada uma das pinturas rupestres e vêm-te à memória as centenas de livros que foste devorando sobre a arte da pré-história. Sim, tu sabes que numa gruta esparsamente iluminada seria quase impensável esgrimir uma função meramente estética para estes desenhos. Sim, os compêndios alertam-te para o significado mágico destes traços, factor indissociável da omnipresente luta pela sobrevivência. Mas tu procuras o Homem concreto para além destes magníficos desenhos, queres conhecê-lo de um modo tão intenso que, de tanto imaginá-lo, quase podes jurar pressenti-lo ali mesmo a escassos metros da tua presença.
            Sentes que está frio, está muito frio e este lugar parece ter feito um pacto com a escuridão. Agora mesmo, desejas estender a mão direita e tocar na pele desse antepassado que há vinte mil anos aqui esteve, a colorir com o próprio sangue as pedras que também lhe serviam de abrigo. Tu sabes que chegaste aqui irremediavelmente atrasado, mas as imagens que carregas dentro de ti são de tal modo vivas que, por breves instantes, chegas mesmo a perder-te nesse lapso que medeia o passado e o presente. Entretanto, nesse entretanto que é a vida, talvez tenhas deixado de existir ou talvez possas até ter-te transformado num outro eu – a minha única certeza é que deixaste de estar só.
            Deixei de conseguir reconhecer-te, mas, por entre a penumbra, consigo ver que tens agora a teu lado a rena que demoraste uma semana a caçar. Pareces acenar-me. Sim, estás agora a acenar-me. Queres dizer-me como esta caçada foi dura. Primeiro, ouviste os bramidos da besta ainda à distância de um lançamento com recurso ao magnífico propulsor, depois, construíste uma imagem da sua forma e esculpiste-a a ocre vermelho e com o teu próprio sangue. Apontas a parede mesmo à minha frente e eu sorrio. Continuas, então, a reconstituição, dizendo-me que ludibriaste o vento com a ajuda do deus-sol, atraíste o animal e desferiste-lhe o golpe fatal, no exacto momento em que recomeçou a nevar. Agora, sem que nada o fizesse prever, interrompeste o relato. Apontas desamparadamente para cima, mas o teu olhar parece ultrapassar a última pedra que te impede de tocar o firmamento. A gritar, a gesticular por todos os lados e em direcção a todos os lados, anuncias-me que o deus-sol te exigiu um sacrifício e, por isso, tiveste de regressar sozinho à gruta. Com toda a violência que consegues, atiras uma bolota contra a parede, para logo a seguir murmurares que arrastaste a presa e a depositaste na cavidade onde ainda agora se encontra. Depois, continuas, voltaste a desafiar o gelo exterior. Não sabes ao certo por que o fizeste, mas algo dentro de ti parecia anunciar-te que era assim que deverias actuar. Quando chegaste ao local da caçada, embalaste o cadáver de teu irmão no peito e avançaste até aqui, onde agora permaneces. Ele era o sacrifício que o deus-sol te exigiu.
            Tens as mãos inundadas de sangue. Do alto do meu pedestal, fiquei a observar-te enquanto sustinhas a lança para vasculhar as entranhas da carcaça do animal. Agora mesmo, vejo-te chafurdar a mão direita do teu irmão no interior da rena. O cheiro a sangue fresco inunda toda a lúgubre caverna. Mas tu não pareces incomodado com nada disso. Estás apenas preocupado em gravar lado a lado, na ala nascente do abrigo, as mãos direitas dos únicos irmãos que algum dia ali tinham vivido: tu e ele. Só depois poderás partir.
            Partirás até que exista um depois. Ritualmente, sempre que a lua se enche e os sentidos, já saciados, se apaziguam, regressas àquela gruta parada no tempo. Quando o fazes, sentes a tua existência prolongada naquela imagem; passou a ser a tua porta para as emoções. Diariamente, transporta-la contigo, ajuda-te a acreditar que não estás só, que lá longe a mão do teu único irmão continua presente, sempre pronta a agarrar-te, mesmo que não o tivesses ajudado quando ele mais necessitou. Aquela imagem é estranha: tu deste-lhe vida, mas ao mesmo tempo ela alimenta-te, adquiriu uma vida própria. Com ela, aprendeste lentamente a imaginar o que está para além do que podes apenas tocar e inventaste o futuro.
            Ao longo do tempo (ah! filogenia…) aprendeste a saber que sabes o que sentes, subiste a pulso o poço da existência: desde o proto-eu, passando pelo eu nuclear até ao eu autobiográfico, como muito mais tarde António Damásio haveria de chamar ao patamar mais sublime da consciência humana.
            Aqui, nesta gruta gélida e escura, há milhares de anos atrás, tu eras eu, eras nós… a casa da consciência, como Damásio lhe chama, começou a ser, verdadeiramente, aperfeiçoada naquele dia, naquela hora, por um nosso antepassado que se procurava para além do que tocava e desenhava…
            A arte construiu-nos, salvou-nos e poderá sempre voltar a erguer-nos, sobretudo nos momentos em que mais necessitarmos. Possam estes traços auxiliar-vos, tal como ainda agora me ajudaram, nestes instantes da vida em que andamos perdidos dentro de nós próprios, à procura de um sentido para o que enfrentamos, o que somos ou para onde vamos.
Renato Nunes