sexta-feira, 18 de setembro de 2020

Uma conversa ao jantar

Há refeições que temos mais paciência para saborear as conversas do Duarte. Infelizmente daqui para frente o tempo vai ser escasso e a paciência para tratear umas frase também, por isso vou aproveitar hoje.

A refeição começou com a habitual birra para comer a sopa. O espernear, gritar, pôr a mão na boca a dizer que não quer comer a sopa. Bem as birras vão ser rotinas habituais no futuro sempre que a sopa for um menos saborosa ou não tiver "canjicas".

Eu imbuído nos meus pensamentos e na dura batalha que me espera para a semana não estava a ligar à conversa fluida que o Duarte  estava a ter com a mãe. Quando ele  já comia um peixe cozido com batata doce cor de laranja com um sorriso e satisfação de fazer inveja a muita gente liguei-me definidamente ao discurso de ambos.

A conversa derivou para escola e foi aí que eu fiquei curioso espero conseguir narrar com o mesmo entusiasmo que o Duarte o fez.

A mãe perguntou "tu fazes chichi na sanita" ao que ele respondeu "mãe eu faço de pé, as meninas é que fazem sentadas"..."mãe eu não me sento senão caia lá dentro". A prontidão da resposta do Duarte deixou-me perplexo.

A mãe após uns sorrisos perguntou "são quantos os teus colegas", ao que o Duarte  respondeu "são muitos mãe" e enumerou os números de 1 a 9 sem se enganar em nenhum.

Começámos por lhe perguntar o nome dos colegas da escola ao que ele de forma natural deu um enfâse maior aos rapazes e disse o "Gonçalo Salito, o Tim (Martim), O Duarte Tomás, o Leo (Leonardo) e o Lourenço". Depois de enumerar o nome dos colegas a mãe começou a contar o nome dos colegas através dos 5 dedos da mão ao que o Duarte de forma curiosa disse "o dedo mais pequeno é o do Tim" por ele ser o mais pequeno de todos. A mãe ainda disse  que se calhar o dedo mendinho devia ser para o Leo ao que ele contrapôs "não não é para o Tim". 

Depois de ter falados dos  rapazes perguntámos então e as meninas como é que se chamam. É muito giro perceber que ele rapidamente adaptou a linguagem ao aumento do número de colegas que passaram de 7 para 24. No ano passado só tinha uma colega Matilde, mas como este ano são duas ele disse prontamente uma é Matilde Lopes e a outra é Matilde Costas. Concluiu a enumeração das meninas com a Ritinha, a Alice e a Leonor.

O Duarte sempre teve um poder de observação muito apurado. Lembro-me que quando lhe mostramos fotografia de familiares que viu muito poucas vezes, ele após lhe mostrarmos fotografias  tem uma destreza de os reconhecer e enumerar com uma certeza cativante. 

É muito interessante perceber a rapidez com que ele se apercebe das coisas que fazemos ou dizemos e imita tudo. Conta para o bem e para o mal. 

A conversa terminou com duas fotografias que a Educadora Sofia me enviou. O Duarte explicou cada uma das fotos e descreveu  as brincadeiras que tinha tido na pré-escola. Falou das antas e dos arcos que brincavam no recreio exterior, dos jogos dos animais e dos muitos jogos que haviam nas caixas amarelas e vermelhas.


sábado, 12 de setembro de 2020

Dormir

Dormir é maravilhoso.

Na passada quinta feira quando fazia mais uma viagem de Grândola para Oliveira do Hospital ouvi um podcast onde abordaram as várias variantes do conceito de segurança. Segurança é uma palavra com significados que eu desconhecia na sua plenitude, como ter uma refeição, um salário, não ter dívidas, ter saúde e um sentimento de  segurança quando se circula na rua.

O ato de descansar bem está intrinsecamente ligado ao sentimento de segurança abordado no parágrafo anterior.

O Duarte nunca foi muito de dormir.

No dia 15 de Outubro de 2017, o dia dos grandes incêndios na região centro fomos de manhã ao pediátrico de Coimbra com o Duarte que na altura ainda não tinha 9 meses. Recordo-me que quando voltámos já perto da hora de almoço já se avistavam ao longe várias nuvens de fumo.Foi curioso pois o Duarte tinha passado várias noites a dormir muito mal e nessa noite muito difícil para as gentes da beira e particularmente de Oliveira do Hospital, dormiu muito bem.

A escola até aos três anos e 6 meses anos foi um espaço onde o Duarte não dormiu aquilo que na nossa opinião seria o desejável. Nas lembranças mais recentes relativas ao ano letivo 2019-20 lembro-me o que a educadora me disse "o Duarte dorme muito pouco, e por vezes temos de o tirar de lá pois está a incomodar". Após menos de uma hora a descansar colocavam-no a brincar com os mais velhos da pré-escola.

Já nos foi proposto para o Duarte deixar de dormir a sesta, no entanto consideramos que ele descansar por pouco que seja  será  bom para ele.

O Duarte durante o dia é muito estimulado quer pelas educadoras, pais e avós paternos. À medida que o Duarte foi crescendo e as estratégias para o adormecer foram-se tornando cada vez mais complexas,  difíceis e resultavam cada vez menos. Nós nunca tivemos o dom de lhe saber contar histórias para o adormecer e recorremos ao método mais fácil que foi mostra-lhe a Heide, o Gombby ou a menina dos cabelos ruivos no telemóvel. Na fase inicial (verão de 2018) apenas precisava de um episódio para adormecer, no entanto à medida que foi crescendo as dificuldades foram maiores pois um episódio não bastava para que ele dormisse. No final de 2019 lembro-me que após lhe mostrar um episódio de uma série ele se sentava sempre na cama e dizia "pai não quero dormir". Foram duras batalhas que nós enquanto pais e professores tínhamos de ter para conseguir preparar as aulas, fazer as lides de casa e dormir uma horas para nos fazermos à estrada ao outro dia.

Como já foi noticiado por mim neste blogue em Março e Abril, o período de confinamento foi duro para o Duarte e para  nós enquanto pais. O Duarte  perdeu de um dia para o outro o contacto físico com os avós e ficou cingido aos poucos metros quadrados do apartamento. O adormecer foi cada vez mais difícil, e ganhou uma afinidade cada vez maior à mãe.  

Nesta férias recordámos a sua alegria perante todos aquelas novidades. Notámos que ele absorveu todos os aqueles momentos com uma intensidade que eu não esperava. Não foi pois de estranhar que após o almoço fosse muito fácil de adormecer e dormisse horas a fio. Sentia-se feliz e seguro na companhia dos pais.

A visita aos avós maternos no Luso foram sempre para o Duarte locais em que ele sentiu uma tranquilidade, um sossego e segurança que não sentia em mais nenhum outro lugar. No fundo o Luso foi para o Duarte um espaço que ele sempre fez grandes sestas.

A insegurança da nossa profissão dos pais e a personalidade do Duarte podem explicar os sonos curtos após a hora da sesta.

terça-feira, 8 de setembro de 2020

Memórias de Tabuaço

O ano letivo 2019-20 foi muito difícil para mim. 

Com a colocação em Tabuaço consegui obter o horário completo anual que era aquilo que mais desejada, no entanto foi extremamente doloroso dar aulas em duas escolas (Pampilhosa da Serra e Tabuaço) tão distantes e morar geograficamente no meio destas duas localidades.

Sinceramente no início pensei que não iria conseguir, disse-o a muito pouca gente. As mensagens da família e o excelente acolhimento que recebi em Tabuaço fizeram-me acreditar que seria possível.

À medida que o nervosismo foi desvanecendo fui conhecendo melhor a localidade e as suas gentes. A procura de um quarto que servisse as minhas necessidades e me permitisse descansar uma noite em Tabuaço não foi fácil. 

Acabei por ficar  numa casa no sopé da vila, onde coabitei com o senhorio dono da casa. 

Aquele espaço onde pernoitava apenas uma noite por semana, a madrugada de terça feira foi muito importante para a minha integração. Não me esqueço daquela casa de banho com três sanitas e três chuveiros uns ao lado dos outros à semelhança do que acontece nos balneários. A expressão que o meu senhorio utilizou aquando da apresentação da casa foi surpreendente. "professor esta é uma casa a arder".

Logo na primeira noite que lá dormi percebi logo o intuito da expressão "Professor isto é uma casa a arder". Uma família grande e um grande número de amigos tornavam aquelas noites jantares em família ou somente de amigos. Nunca cheguei a perceber quem eram as pessoas, mas também não fiz por isso eu apenas as ouvia do quarto. Naquele período fez-me tão bem sentir a presença de pessoas, fez-me sentir menos sozinho.

A segunda feira era um dia particularmente complicado, pois tinha muitas aulas e concentradas essencialmente da parte da tarde. Eram dias que eu chegava a casa no sopé da vila de Tabuaço com a minha cabeça completamente destroçada. Cheguei a ir várias vezes ao Meu Super sem ter necessidade de lá ir apenas para desanuviar. 

Segunda feira jantava cedo, pois na maior parte dos casos era só aquecer e comer. Após o jantar apesar de por vezes as temperaturas estarem muito baixas nunca abdiquei de ir tomar café ao " Arcada" que ficava a escassos 300 metros de minha casa. Lembro-me da forma acolhedora como sempre fui recebido, de terem uma salamandra dentro do café, onde muitas vezes a filha brincava enquanto a mãe trabalhava. Vi e conversei com outros clientes do café que trabalhavam nas obras, ou na agricultura e se reuniam ali para conversar, beber cerveja ou um copo de vinho.

Após umas semanas percebi a importância daqueles dias para recuperar energia para dedicar mais tempo ao meu filho. Para o Duarte à semelhança do que está a acontecer agora eu nunca deixei de dormir em casa apenas chegava tarde e saia cedo.

Hoje em  Grândola, um pouco mais distante que Tabuaço de Oliveira do Hospital, o Duarte perguntou "o pai não vem", ao que a mãe retorqui "a escola é muito longe e demora muito a cá chegar" e ele concluiu "mas mãe eu estou preocupado" . Não sei quando ele vai perceber que eu não vou dormir a casa mas para já sabe bem ao Duarte ouvir a mãe ao outro dia de manhã dizer "O pai esteve cá mas chegou tarde e teve que sair muito cedo, ele deu-te um beijinho, deixou-te uns papeis para tu pintares e saiu".

Formas encontradas por nós para contornar a ausência.


quarta-feira, 2 de setembro de 2020

João Brandão, um vilão que aterrorizou as Beiras. Autor: Luís Filipe Torgal



A vida de João Victor da Silva Brandão (1825-1880) dava um romance e um filme magníficos. Esta é a perceção com que ficamos depois de melhor conhecermos as aventuras e desventuras desta personalidade que, como todos os protagonistas da história, só pode ser compreendida à luz da época em que viveu. E que, no seu caso, foi o período marcado pela afirmação do liberalismo em Portugal. Um tempo de crise política que modelou a primeira fase do sistema constitucional português – crise provocada por uma guerra civil entre liberais e miguelistas/absolutistas, depois por confrontos sucessivos entre diferentes fações liberais e pelos primeiros processos eleitorais do sistema constitucional, onde emergiram várias formas de caciquismo (termo originário dos idiomas da América pré-colombiana, com significado de “chefe”, que terá sido adotado pela primeira vez no léxico político português, em 1886, por Oliveira Martins, para rotular os indivíduos que tinham uma incontestável supremacia política e eleitoral a nível local). Uma época que determinou, afinal, a desagregação das estruturas seculares do “Antigo Regime” e o nascimento do Portugal contemporâneo. 


Os feitos, reais ou imaginários, de João Brandão foram cantados em verso nas feiras e romarias do país e têm sido mesmo musicados para grupos corais. A sua história inspirou a literatura de cordel e originou a edição de vários outros livros, folhetos e artigos de jornal escritos por autores que proclamaram a apologia do herói ou apregoaram a delação do criminoso. Os seus maiores detratores, como o jornalista Joaquim Martins de Carvalho (Os Assassinos da Beira, 1889), identificam-no como um “sicário” sem escrúpulos que, com os seus crimes violentos, aterrorizou a vasta região das Beiras. Por sua vez, os seus defensores, como José Dias Ferrão (João Brandão, 1928), preferiram considerá-lo um “político” que se bateu corajosamente pelo triunfo da nova ordem liberal constitucional, mas que soçobrou vítima dos crimes cometidos nesse tempo revolucionário caracterizado pela desordem e a violência. O próprio João Brandão terá também contribuído para potenciar e perpetuar o seu mito com a representação hagiográfica que construiu sobre si próprio, numa curiosa e bem escrita obra autobiográfica (tendo em consideração a limitada formação literária do autor), bem ao gosto romântico da época, redigida na cadeia do Limoeiro (Apontamentos da vida de João Brandão, 1870). 


Para além das interpretações e juízos de valor maniqueístas, existem dados objetivos que nos permitem conhecer melhor o homem que está por detrás do mito. Nasceu no Casal da Senhora (Midões), no seio de uma família rural proletária (o avô e o pai eram ferreiros) que ascendeu socialmente, graças a alianças e casamentos, bem como à audaciosa ação política em prol da causa liberal. 


Em 1828, D. Miguel autoproclamou-se rei absoluto e o seu Governo lançou uma violenta ação repressiva contra os liberais que permaneceram no país, a qual culminou em inúmeros homicídios, prisões e condenações à morte por fuzilamento e enforcamento. Depois, Portugal mergulhou numa guerra fratricida que terminou com a assinatura da Convenção de Évora Monte (1834) e a consequente vitória dos liberais. 


Nessa época agitada, o pai de João Brandão teve uma vida errante, a fugir às perseguições de que foi alvo por parte dos partidários miguelistas e a participar em ações de guerrilha que terão levado os seus inimigos absolutistas a confiscar e a incendiar os seus bens e a retaliar sobre a sua mulher e filhos. Ao invés, no rescaldo da derrota miguelista, a família Brandão terá participado, com a anuência declarada ou críptica do ainda débil Estado liberal, em violentas ações revanchistas contra os vencidos, extorquindo vultuosas indemnizações às famílias derrotadas e combatendo de forma implacável as quadrilhas de bandoleiros miguelistas que recusaram depor as armas. Este último procedimento mereceu mesmo, em 1841, por parte da rainha D. Maria II e do Governo constitucional, um louvor público formal aos Brandões do Casal da Senhora.  


Durante a década de quarenta, eclodiram novas sublevações sociais e políticas agora contra o Governo cartista de Costa Cabral: Maria da Fonte (1846) e Patuleia (1846-47). João Brandão e os seus irmãos combateram em defesa do Cabralismo e por isso entraram em rota de colisão com os seus primos de Midões que haviam abraçado a fação setembrista implicada nas revoltas da Patuleia. A fidelidade de João Brandão à ordem cabralista vigente ter-lhe-á permitido assumir funções de vereador e fiscal da Câmara de Midões. 


Com a Regeneração (1851-68), as recorrentes lutas armadas entre bandos rivais deram, gradualmente, lugar a combates políticos dentro da legalidade constitucional. O propósito fundamental seria, doravante, eleger os governantes do país e os deputados dos dois partidos que constituíam o sistema rotativista dominante: Regenerador e Histórico. 


Contudo, à revelia deste ambiente mais conciliador, o bando de João Brandão, com a aquiescência do próprio ministro do Reino, Rodrigo da Fonseca Magalhães, envolveu-se no célebre episódio da “montaria” ao salteador João Nunes, conhecido como o “Ferreiro da Várzea”, que culminou no bárbaro assassinato deste velho adversário de Brandão, em 1854. Tal ato originou uma campanha hostil no jornal O Conimbricense contra João Brandão e todos os ladrões e assassinos que, com a cumplicidade do poder estabelecido, continuavam a saquear a província da Beira, que “vive há muitos anos debaixo do império do trabuco e do punhal”. 


Foi indiciado deste crime e perseguido por forças militares. Passou à clandestinidade durante cinco anos (1855-1860). Acabou por se entregar, tendo sido preso, julgado e absolvido pelo crime atrás citado, num rocambolesco processo judicial que foi denunciado pelos detratores de João Brandão como tendencioso e indulgente para com os culpados. 


Saído em liberdade, casou com Ana Eugénia Correia Nobre (da Várzea da Candosa), que possuía alguma fortuna, pretendeu renunciar à sua anterior vida aventurosa e dedicar-se à administração das propriedades de sua mulher. Consta que, muito antes disso, chegou a planear casar com Maria Rita das Neves, a mulher que viria a ser mãe de António José de Almeida (1866-1929, presidente da República Portuguesa, entre 1919 e 1923), e que certa vez, no contexto das lutas entre liberais, teria ameaçado de morte o pai do futuro presidente (Luís Reis Torgal, António José de Almeida e a República, 2004, p. 33). A este propósito, importa esclarecer que as origens mais ancestrais da sua família provêm das freguesias de São Martinho da Cortiça (Arganil) e de Farinha Podre (atual São Pedro de Alva, Penacova), de onde são originários os avós paternos, a avó materna e os pais de António José de Almeida.  


Porém, retomou as atividades de eleitor e cacique local, tendo-se envolvido, fervorosamente, nos processos nada democráticos de angariação de votos em benefício dos candidatos que apoiou e que concorreram sucessivamente à Câmara de Deputados pelos círculos de Arganil, Oliveira do Hospital e Penacova. Tais processos, que revelam bem o poder e a influência que João Brandão tinha na região, envolviam, por um lado, a lealdade, a reciprocidade de favores, a amizade, a adesão voluntária; por outro lado, desvendam a submissão pessoal e a ameaça de coerção de que era vítima a sua rede clientelar. 


O fenómeno do caciquismo oitocentista aqui aflorado permite-nos ainda confirmar que as mais altas personalidades políticas das fações do Estado demoliberal recorriam amiúde aos serviços de homens truculentos como João Brandão – ou, sobretudo, de grandes proprietários agrícolas e altos funcionários do Estado – para obter triunfos eleitorais regionais e locais que lhes permitiam vencer eleições nacionais. Em contrapartida, estes conluios possibilitavam aos caciques organizarem-se em influentes oligarquias locais que obtinham avultadas benesses do poder central e dominavam de forma muito pouco transparente as administrações municipais e até os próprios tribunais.


Todavia, este tipo de ação política comportava também os seus riscos, sobretudo para aqueles caciques irredutíveis cuja fama de malfeitores começava a torná-los incompatíveis com uma fase mais consolidada, cívica e progressista da Monarquia Constitucional. Com efeito, os diversos inimigos que João Brandão foi gerando (alguns deles bem posicionados na hierarquia dos poderes político e judicial) jamais esqueceram os seus crimes e afrontas. Vários terão mesmo acabado por se coligar para mover-lhe um ardiloso processo de acusação pelo assassinato e roubo do padre José de Anunciação Portugal, na Várzea de Candosa. Foi preso por estes crimes cometidos em 1866. Após um julgamento parcial e crivado de infrações legais, onde a acusação nunca terá conseguido provar com clareza a culpabilidade do réu, João Brandão foi declarado culpado do crime de homicídio premeditado e condenado pelo tribunal da Comarca de Tábua à pena de morte comutada com o degredo perpétuo em África. Embarcou para Angola, em 1870, colónia em que manteve uma vida romanesca, terá amealhado proventos na produção de açúcar e de aguardente de cana, mas, também, onde acabou por morrer assassinado, em 1880. Suspeita-se que o seu sócio e o próprio Governador de Benguela estiveram envolvidos na sua morte. De todo o modo, a autoria e as motivações deste crime, assim como o caso macabro da decapitação do seu cadáver e o transporte da cabeça de João Brandão para Benguela estão ainda hoje por esclarecer. 


Para quem desejar compreender melhor a extraordinária história da vida de João Brandão, aconselho seis obras fundamentais: João Brandão, Apontamentos da vida de João Brandão: por elle escritos nas prisões do Limoeiro envolvendo a história da Beira desde 1834, com [excelente] introdução de José Manuel Sobral, Lisboa, Vega, 1990; Joaquim Martins de Carvalho, Novos apontamentos para a história contemporânea: os assassinos da Beira, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1889; José Dias Ferrão, João Brandão, Porto, Litografia Nacional, 1928; José M. Castro Pinto, João Brandão, o «terror da Beira», Lisboa, Plátano Editora, 2004; Irene Vaquinhas, “Alguns aspetos da violência nos campos portugueses no século XIX”, in Revista de História da Sociedade e da Cultura, Coimbra, Centro de História da Sociedade e da Cultura da Universidade de Coimbra, 2001, pp. 285-325; e Marco Daniel Duarte, Tábua. História, Arte e Memória, Município de Tábua, 2009, pp. 287-320. Os dois últimos textos supracitados e até o prefácio de José Manuel Sobral atrás mencionado são das poucas obras publicadas de teor historiográfico, embora pouco exaustivas, sobre o tema aqui tratado. Quem pretender obter mais informações sobre a vida e a morte de João Brandão em Angola, deve também ler o folheto de César Santos, O desventurado de Midões. João Brandão em África, 1880-1950, Coimbra, Tipografia Coimbra Ed., 1950. 


Apesar da prolífica literatura, mais ou menos recente, existente sobre este tema, continua por publicar uma obra historiográfica de grande fôlego acerca do homem que foi reconhecido, por alguns autores, como “benemérito, altruísta” e “desventurado”, mas cognominado, por outros escritores, de “terror da Beira”. Essa investigação detalhada e narrativa interpretativa fluente poderão desconstruir as representações fabulosas, paradoxais e redutoras de “bandido generoso” ou de “bandido facínora” e, porventura, apresentá-lo inserido numa tipologia mais inteligível. A saber: João Brandão teria sido, no mundo rural português oitocentista, um “cacique” ou uma espécie de “coronel” (trata-se de um modelo social que prosperou no Brasil no período da “República Velha”, 1889-1930), quase sempre armado e desprovido de escrúpulos, movido por motivações mais pessoais e económicas do que sociais e políticas, e simultaneamente temido e admirado pela população da região das Beiras. 


Por tudo o que ficou escrito, creio que não devemos enquadrar João Brandão na controversa tipologia de «bandido social» conceptualizada pelo historiador Eric Hobsbawm. Ele foi, sobretudo, um fora-da-lei recalcitrante cuja conduta violenta, assassina e amoral não foi consagrada à defesa dos pobres e espoliados. Por isso, não se tornou um herói popular, mas antes um vilão intrépido tão respeitado como receado pelos diversos estratos da sociedade rural da sua época. Assim, apesar de o seu nome permanecer gravado na memória coletiva dos beirões, a sua trajetória de vida não faz dele uma personalidade especialmente talhada para intitular espaços públicos atuais. Muito menos para a autarquia de Tábua ter decidido destinar o nome de João Brandão para patrono da sua Biblioteca Municipal.    


 Autor: Luís Filipe Torgal