sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

Conto de Natal – A porta secreta

“– Meu filho! Já viste bem todas as prendas que o Menino Jesus te deixou este ano? Olha, por exemplo, esta aqui…” – indicou António ao pequeno Diogo.
            “– Parece uma caixa. E há coisas a abanar lá dentro!”
            “– Vamos abrir” – e abriram.
            Dentro do embrulho, um tabuleiro de xadrez. Diogo, com uma mão a segurar o inseparável smartphone e a outra a agarrar o novo brinquedo, deixou escapar um breve suspiro de desalento. Nesse momento, o pai decidiu voltar à carga:
            “– Sabes, quando eu tinha mais ou menos a tua idade, descobri que nesta casa havia uma passagem secreta. Uma porta escondida…” – e Diogo nem o deixou concluir a frase. Agarrou-se-lhe à perna e reclamou:
            “– Onde é? Para onde vai? Leve-me lá!” – sorrindo, António segurou-o pela mão e fez-lhe sinal para se sentar. A “lição de Sissa” iria começar...
            “– Olha, isso vais ter de ser tu a descobrir. E a resposta encontra-se dentro deste tabuleiro de xadrez”.
            Depois, enquanto retiravam os últimos papéis que escondiam a caixa, o pai foi explicando:
            “– Hoje, vamos fazer um duelo. Peças brancas contra as peças negras. Como se fosse uma guerra…”
            “– Mas, pai… os homens brancos e os homens negros são inimigos?”
            “– Não, meu filho! Hoje, já não são. A cor da nossa pele não interessa para nada. Todavia, há alguns séculos atrás, os homens brancos fizeram escravos muitos homens negros”.
            “– Olhe, pai, se eu pudesse mandava pintar as peças. Seriam azuis contra vermelhos!”
            “– E deixa-me adivinhar… tu ficavas sempre com os vermelhos, certo?” – riram em uníssono.
            Na verdade, António ficou com as peças negras e Diogo com as brancas (depois de saber quem começava a jogar, o menino nem hesitou na escolha!). Entrementes, o pai disse:
            “– De todas as tuas peças, existe uma que tem de ser sempre muito bem protegida: é o rei”. Ao ouvir isto, o menino sentenciou:
            “– Então, eu sou o rei! Sou o mais importante”.
            Nessa altura, o pai desabafou:
            “– Sabes, quando tu nasceste passaste a ser o rei desta casa. Eu e a tua mãe começámos a viver em função de ti” – e Diogo ria-se de orelha a orelha.
            Logo a seguir, António esclareceu o valor de cada peça e o modo como se movimentavam:
            “– A rainha vale 9 peões. Pode avançar em todas as direcções. A torre vale 5, anda sempre a direito – na horizontal e na vertical. O cavalo vale 3 peões, movimenta-se em “L”. O bispo também vale 3 peões, mas anda e captura na diagonal…” – e por aí fora, sempre com as peças a saltarem no tabuleiro de um lado para o outro, sob o olhar atónito do menino.
            Às duas por três, quando já estavam no meio da primeira partida, muito lentamente, o pai foi capturando uma a uma todas as peças do menino. Quando apenas lhe restava em cima da mesa o amedrontado rei, o pai desafiou-o:
            “– Vá! Podes jogar”. Diogo, quase a soluçar, atirou:
            “– Mas… assim não é justo! Estou sozinho e ninguém me pode defender”.
            Sorrindo, o pai devolveu-lhe os peões, perguntando:
            “– Estás mais satisfeito?”
            “– Sim, mas ainda não tenho as minhas torres, os bispos, os cavalos…”
            “– Então, meu filho, qual é a tua peça mais importante?”
            “– Todas são importantes, pai!”
            “ Olha, há quem diga que foi esta a lição que um indiano chamado Sissa quis ensinar a um rei muito mau. Não sei se é verdade ou mentira, mas há até quem acredite que foi ele que inventou o xadrez. Certo, certo é que esta é uma lição valiosa para todos nós…”
            Nessa altura, a mãe chegou à sala. Vinha chamá-los para o jantar. Ao olhá-la, o pai não resistiu e exclamou:
            “– Olha, filho, e ainda te faltava a rainha!” – Dona Maria não compreendeu, mas sorriu delicadamente, ao perceber que falavam dela.
            Logo depois, já à mesa, o menino voltou à carga. Queria mesmo saber onde se encontrava a tal porta misteriosa. Como se já não bastasse a ansiedade do miúdo, a mãe ainda ajudou à festa:
            “– António! Lá andas tu a ensinar coisas perigosas ao nosso filho! Eu já te disse que essa porta é só para os adultos”. Os olhos de Diogo pareciam prontos a saltar para fora das órbitas.
            Quando se levantaram os últimos pratos da mesa, foram todos até ao presépio. Debruçados sobre o berço, António perguntou:
            “– Diogo, quem é a personagem mais importante do nosso presépio?”
            O menino ainda hesitou, mas lembrou-se da lição do xadrez e respondeu:
            “– O menino é o nosso rei. Mas sem os pais, os animais, as estrelas, os reis magos… o que seria dele?” – os pais entreolharam-se. A noite de Natal estava quase a findar, mas o mais importante ainda vinha a caminho...
            Então, o pai ajoelhou-se junto à manjedoura do Menino e começou a contar-lhe o segredo da porta desconhecida.
            “– A tua bisavó Maria era, como sabes, a minha avó. Um dia, quando eu tinha mais ou menos a tua idade, ela disse-me que nesta casa havia uma porta secreta que dava acesso a um mundo maravilhoso. Ora, quando eu ouvi essa história, fiquei de tal modo curioso que passei a noite em claro, sem dormir. Vasculhei cada recanto desta casa, examinei com todo o cuidado todos os lugares, mas a verdade é que não consegui encontrar o mais pequeno sinal da tal porta mágica. Desanimado, deitei-me em cima da cama e chorei como nunca tinha chorado.
Logo pela manhã, a tua bisavó, uma das pessoas mais inteligentes que conheci em toda a vida, reparou nas minhas olheiras, serviu-me o pequeno-almoço e abraçou-me (nunca esquecerei aqueles abraços). Deitado no seu regaço pude então ouvir esta maravilhosa história:
            “– Seu tontinho… a porta sobre a qual te falei é a porta da sensibilidade. É uma espécie de ferida aberta que apenas algumas pessoas se podem orgulhar de possuir. É um dom”.
            “– E para que serve essa ferida, avó?”
            “– Essa ferida boa ajuda-te a ver melhor o mundo: a chorar com aqueles que choram, a sofrer com aqueles que sofrem; a ver o que os outros tantas vezes não vêem. Sim, faz doer, mas apenas para te ajudar a compreender…”
            Intrigado, voltei à carga:
            “– E isso é importante, avó?”
            “– Muito, meu netinho! Ajuda-nos a criar um mundo melhor!”
            Ao proferir aquelas derradeiras palavras, o pai voltou-se novamente para o filho, fixando-o ternamente, olhos nos olhos:
            “– Sabes, meu rei, quando tu nasceste, essa porta de que falava a tua bisavó voltou a abrir-se dentro desta casa. E foi a primeira vez, desde que a tua bisavó morreu – já lá vão mais de 20 anos –, que voltámos a fazer o presépio. Que voltámos a sentir o Natal” – e as lágrimas iluminavam-lhe a face.
            Quanto ao menino, bem pequenino como todos os meninos, olhava ternamente os pais, talvez sem compreender muito bem o sentido exacto de todas aquelas palavras – os poemas que, ao longo da vida, nos escapam pelas mãos!
            Talvez um dia, bem lá no futuro, aquele menino recordasse aquelas palavras e decidisse até recontá-las ao seu próprio filho. E talvez dissesse que foi naquela longínqua noite que a porta secreta se abriu, pela primeira vez, mesmo à sua frente. A tal porta secreta que o Natal nos ajuda a recordar e a nunca deixar fechar. Por muito que as pedras afiadas inundem as calçadas por onde vagueamos.
            Afinal, apesar de todas as cinzas que acumulamos nas mãos, quando Dezembro ecoa nas ruas e as luzes cintilam dentro de nós, tudo volta a ser possível. É através dessa ferida aberta, da qual brotam as lágrimas que nos lavam por dentro, que chega até nós o sentido do Natal...

Renato Nunes (renato80rd8918@gmail.com)

sábado, 16 de dezembro de 2017

"Pai tu não vais morrer"

Na Quinta Feira pouco passava das 11h da manhã quando estava a ouvir a Antena 1 e deparei-me com o testemunho de um bombeiro, que esteve no combate no Teatro das operações do Grande Incêndio de Pedrogão em Junho de 2017. O relato deste bombeiro tocou-me pela expressividade das suas palavras. Durante o incêndio sentiu-se numa situação extremamente aflitiva, onde viu a morte muito próxima em consequência da estranha ferocidade das chamas que os encurralou num emaranhado de fumo e temperaturas muito elevadas.

Já numa maca do Hospital o bombeiro, num estado extremamente grave teve a presença do seu filho de 12 anos de idade, que o abraçou dizendo insistentemente, “pai tu não vais morrer”, ao que o pai respondeu apesar das imensas dores e do sofrimento que sentia “filho está descansado, pois isso não irá acontecer”. O filho afastou-se um pouco e de dedo em riste apontou para o pai e disse com uma convicção incomensurável “Pai tu não vais morrer”. O bombeiro após esse período não mais voltou a ver o filho, tendo várias complicações de saúde onde, com o acumular de várias intervenções cirúrgicas e 4 paragens cardíacas, culminou com a permanência em coma durante mais de 2 meses.

Esta história emocionou-me, pois fez-me pensar na importância que um filho tem nas nossas vidas e a força que ele nos dá para continuarmos a viver. Sinto um enorme Amor pelo meu filho e naquele momento senti uma enorme vontade de o agarrar, de lhe dizer o quanto Gosto dele e quanto ele é importante para a minha vida. Termos um filho muda a forma de vermos a vidaum Ser está sobre a nossa responsabilidade e desejamos de forma inexcedível que ele seja Feliz e que nós estejamos junto dele para o ver crescer. 

sábado, 9 de dezembro de 2017

O ódio à escola

            7h00. O despertador toca e Mauro enrola-se nos cobertores, assim que consegue silenciar o maldito aparelho. A situação acaba por repetir-se mais quatro vezes, até que a mãe irrompe pelo quarto, ameaçando-o de dedo em riste. O menino decide então arrastar-se até à casa de banho, enquanto amaldiçoa a sorte que lhe calhou na rifa da vida.
            7h30. Daqui a uma hora, o Mauro estará dentro do carro do pai a caminho da escola. Até lá, apenas corridas entre a casa de banho, o quarto, a cozinha… corridas vertiginosas entremeadas por gritos de urgência, interrompidos pelo veloz beijo de despedida da mãe, invariavelmente atrasada.
            8h40. Dez minutos de atraso e o pai atira a mochila de Mauro para o banco de trás do carro. Alguns instantes depois, seguem os dois a toda a velocidade pela estrada fora, enquanto na rádio se fala do trânsito infernal na capital e da chuva que tarda em chegar. Lei de Murphy: raio dos semáforos escolhem sempre o dia errado para ficarem vermelhos!
            9h00. Mauro está à porta da escola, o pai toca-o docemente na testa e permanece parado alguns instantes a vê-lo desaparecer para além do portão. Arranca depois a toda a velocidade rumo ao escritório. É forçoso recuperar os 5 minutos que leva de atraso.
            9h05. Mauro irrompe pela sala de aula. O professor exige a sua saída imediata e pede-lhe para bater à porta antes de voltar a entrar. Ainda estremunhado, lá obedece. Senta-se, começa a retirar os livros da mochila: Inglês, Português, Matemática, Expressões e Estudo do Meio. Depois, perfilam-se os cadernos das Fichas de Actividades e o volumoso dossier do caderno diário, acompanhado do estojo. A mesa é pequena e o colega do lado faz-lhe sentir o descontentamento com um subtil pontapé na tíbia. Mauro sabe que não convém tugir nem mugir, pois o intervalo chega depressa e as mãos do colega são conhecidas pelos pares de galhetas que vão, benevolentemente, distribuindo.
            9h15. A sala do 3.º ano pode enfim começar a produzir. Hoje, o dia amanhece com a disciplina de Inglês, o esperanto dos tempos modernos, que abre a porta do paraíso para todos os pecadores:
            Let’s study the family! Open your books on page eleven – e os meninos aprumam-se perante uma língua ainda tão estranha e distante.
            Cerca de meia hora depois chega a vez da Matemática. A entrada do professor titular torna o ambiente mais rigoroso:
            – Abram os livros na página 31. Vamos ler, interpretar e explorar gráficos de barras e tabelas. Moda, diagrama-de-caule e folhas, amplitude, dados quantitativos e qualitativos. O silêncio petrificava a sala.
            Faltava cerca de um mês para o fim das aulas e o derradeiro teste escrito anunciava-se. Todos suavam e os cadernos inundavam-se de nervosismo. Mauro tentava concentrar-se em tudo, mas o perfeccionismo traía-o, não o deixando fazer quase nada:
            – Onde está o teu diagrama-de-caule e folhas? – o grito lancinante do professor arrancou-o da indecisão. Alguns instantes depois, quando o intervalo chegou, mal conseguia sentir os dedos.
            11h00. Após 30 minutos de vadiagem pelo recreio, recomeçavam os trabalhos, agora com o Português socrático trazido pelo desacordo ortográfico:
            – Gramática. Vamos aprender a escrever. Como sabem, no ano anterior, a Prova de Aferição foi um desastre completo. Copiem para o caderno…
            Lição número 1 – Determinante artigo;
            Lição número 2 – Determinante possessivo;
            Lição número 3 – Determinante demonstrativo;
            Lição número 4 – Paráfrases…
            Os exercícios iam e vinham, interminavelmente. O quadro enchia-se e apagava-
-se a uma velocidade estonteante. Os cadernos dos meninos também, que mais não fosse de rabiscos e gatafunhos. Muito frequentemente, lá vinha um grito do Mestre e a cópia correcta reiniciava-se. Não havia tempo a perder, que a gramática era uma deusa perante a qual todos tinham de inclinar-se: ALELUIA! Começava, então, o maestro:
            – O que é “o”?
            – Determinante artigo definido – respondia o Mauro.
            – O que é “um”?
            – Determinante artigo indefinido – acertava a Matilde.
            – O que é “do”?
            – Contracção da preposição “de” mais o determinante artigo definido “o” – e o professor respirava finalmente, quando o Mauro e a Matilde acertavam em uníssono a última pergunta da Bíblia linguística. Os outros meninos podiam enfim respirar, quando o sucesso de alguns camuflava o insucesso de quase todos.
            Logo a seguir, era a vez da poesia. Cecília Meireles chegava do outro lado do Atlântico, trazendo consigo “A pescaria”:

“Cesto de peixes no chão.
Cheio de peixes, o mar.
Cheiro de peixe pelo ar.
E peixes no chão.
Chora a espuma pela areia,
na maré cheia.
As mãos do mar vêm e vão,
as mãos do mar pela areia
onde os peixes estão.
As mãos do mar vêm e vão,
em vão.
Não chegarão
aos peixes do chão.
Por isso chora, na areia,
a espuma da maré cheia”.

 Após uma vertiginosa leitura, chegava a vez de esquartejar as estrofes, os versos, identificar as rimas, explorar figuras de estilo e sonoridades. No meio disto tudo, bem lá do fundo da sala, o Pedro, que ainda mal conseguia identificar metade das letras do alfabeto, lembrou-se de levantar a mão e interromper:
            – Professor! Posso fazer uma pergunta?
            – Fala, fala para aí… mas rápido, que é preciso avançar!
            – A poesia é um cesto de peixes?
            – Valia mais estares calado! – e todos se riram em uníssono. A contagem tinha, contudo, de ser rapidamente retomada. Os números eram depois confirmados um a um pelo Mestre, que, de resto, já limpava o suor da testa com tanto somatório. A poesia, aqui para nós, também nunca fora o seu forte, neste país em que quase todos são poetas, mas quase ninguém lê poesia. Isto para já não falar da História, da Literatura e outras quejandas artes dos pré-históricos capazes de viver um dia afastados dos smartphones.
            Quando o toque que anunciava o recreio chegou, a imagem do cesto de peixes, que ilustrava o poema esquartejado, permanecia projectada no quadro. E Pedro saiu para o intervalo a pensar que a poesia devia estar relacionada com as tarefas piscícolas… Quanto ao professor, com mais de 30 anos de serviço, sentia-se extenuado. Pensava em tudo o que ainda tinha de leccionar até ao final do ano e sentia-se a tremer. Os programas eram a Bíblia e tudo tinha de ser sumariado, custasse o que custasse, doesse a quem doesse. Como se isso já não bastasse, depois das aulas, aguardavam-no ainda os relatórios para preencher, as fichas para corrigir, as aulas para preparar, os pais para atender, as faltas e os sumários para registar. Havia ainda a acção de formação do Reiki que nunca mais acabava. E as metas do sucesso para alcançar mandavam às urtigas todas as energias positivas que bem tentava atrair... Burocracias e mais burocracias, problemas e mais problemas para solucionar que o levavam a desejar estar longe de tudo e de todos (síndrome de burnout, dirão alguns) . Certo é que quando finalmente se sentava no carro para regressar a casa dava sempre por si a pensar há quanto tempo não conseguia ler um livro ou simplesmente sorrir com um sorriso dos seus meninos.
            No período da tarde, chegava Estudo do Meio. E a corrida era retomada, hoje em torno da função excretora… Logo a seguir, que o tempo era escasso, chegavam as Expressões, com mais conceitos e conceitos que deveriam ser sumariados. Teorias que o pobre do professor, confinado às paredes daquela escola dos primeiros anos, mal poderia imaginar que voltariam depois, ano após ano, ciclo após ciclo, a ser novamente repetidas. No fim do dia, iludia-se em surdina: talvez houvesse ainda oportunidade para fazer um desenho e deixar os meninos sonhar. Mas a verdade é que raramente o tempo permitia outros voos e os sorrisos continuavam sempre a ser adiados.
            17h30. Fim das aulas e o Mestre regressa a casa. De seguida, há um intervalo e as actividades extra-curriculares podem enfim começar. O professor das AEC’s (Actividades Extra-Curriculares, para os mais distraídos) vem de outra escola e quase sempre chega atrasado, mas os alunos esperam-no sentados no recreio, já cansados. Depois da Educação Física, começa o hip-hop e o yoga. Por volta das 18h00, o pai do Mauro há-de vir buscá-lo, pois a maratona do Ironman ainda vai no adro.
            Às 18h30 iniciam-se as explicações. Três vezes por semana, a carrinha vem buscar quase todos os meninos à escola, logo a partir do 1.º ano, que é de pequenino que se torce o pepino... Lá no centro, a cerca de 15 minutos de viagem, fazem os trabalhos, organizam os cadernos, dissipam dúvidas, treinam mais exercícios, ensaiam novos exames, enquanto o Mauro estuda desalmadamente Inglês. Nos restantes dois dias da semana, o adulto em miniatura vai para o Taekwondo, a natação e a dança. Tudo para descomprimir e relaxar, que ao sábado de manhã há Inglês naquela escola conceituada onde também estudou o irmão, agora no internato em Medicina, enquanto o domingo é deixado para estudar e fazer os trabalhos em família, depois de ir à missa. E, claro, para o Mauro poder jogar no computador durante toda a tarde. Sim, que também é fundamental relaxar os sentidos e desfrutar das excelentes classificações arrancadas a ferro e fogo das mãos dos mestres…
            Às últimas horas do domingo, como quem cumpre uma rotina, o pai abeira-se do Mauro e, invariavelmente, pergunta-lhe:
            – Amanhã começa a escola! Estás feliz?
            – Não! – e o menino olha sofregamente para o ecrã da playstation, a sua mais recente prenda por ter conseguido ser o melhor da turma no teste de Português.
            O pai ainda exclama, profundamente desalentado:
            – Não entendo… no meu tempo eu gostava de ir à Escola. Hoje, não querem saber de nada. Que geração! Põe, pelo menos, os olhos no teu irmão…
            Mas Mauro já não ouve nada. Quando, finalmente, se levanta, arrasta-se penosamente até à cama e recorda-se da sexta-feira passada. Faz um esforço para recapitular o que aprendeu nas aulas, mas não lhe vem nada à cabeça. Apenas consegue lembrar-se do seu amigo Pedro, que não tem dinheiro para comprar o equipamento para jogar futebol e menos ainda para andar no Centro de Explicações. E enquanto tenta adormecer, Mauro, um menino de 9 anos, que as pautas ratificam como um excelente aluno, pensa no ódio que sente sempre que imagina a escola, e não compreende. Simplesmente não compreende. Adormece.
            No dia seguinte, a pista de fórmula 1 estará novamente à sua espera…

Aprender exige tempo para amadurecer e pensar. Quando nos lembraremos disso?
O actual sistema educativo continua agarrado ao velho adágio: “Água mole em pedra dura tanto bate até que fura”. Por isso, numa espécie de tentativa de acelerar o tempo, transformou-se o primeiro ciclo (a antiga Escola Primária) na antecâmara da universidade e passa-se o resto dos anos a repetir em dó maior o que já se tentou leccionar em dó menor. E os exames repetem-se uns atrás dos outros, com relatórios e mais relatórios, como se deles resultasse o milagroso remédio para todas as doenças.
É altura de transformar o sistema numa escadaria, com patamares ajustados e interligados. Rever os programas, garantir que os directores sejam eleitos pelos seus pares e reduzir, de modo realmente significativo, o número de alunos por turma seria o início de uma revolução, pelo sucesso de todos os alunos e pela saúde mental de todos os professores. O problema, perdoem-me a ousadia, é que as grandes causas continuam a não mover moinhos…

Renato Nunes (renato80rd8918@gmail.com)

sábado, 2 de dezembro de 2017

Quem compra pássaros?

Todos os sábados, quando ainda mal amanhece, saio de casa em direcção ao mercado semanal. Para além da qualidade dos produtos hortícolas e dos preços apetecíveis, gosto de tomar o pulso ao povo da terra que me acolheu. Depois, pela manhã dentro, as intermináveis conversas com os vendedores locais ajudam-me a compreender melhor os dramas daqueles que ainda têm a coragem necessária para consagrar a vida à agricultura, sobretudo neste país.
            Esta manhã, porém, ao deambular por um dos corredores mais afastados da zona central do comércio local, uma voz inquietante desviou-me a atenção das nabiças:
            “– Quem compra pássaros?”
Não resisti e aproximei-me. À chegada, um cenário dantesco corroeu-me a alma: gaiolas e mais gaiolas com roseicollis, periquitos, papagaios, enquanto, bem à minha frente, uma catatua olhava longamente na minha direcção. Baixei-me e quase consegui tocá-la. Concentrei-me, então, na linha que a prendia ao pedaço de madeira, enquanto a via tentar destruir, bicada após bicada, as algemas que a separavam da felicidade: um fio de nylon com pouco mais de um dedo polegar. Quase petrificado, ali fiquei, de joelhos, enquanto a vendedora, pressentindo mais um potencial cliente, se aproximava com ar sorridente:
            “– É uma catatua domesticada. Pode tocar-lhe que ela não morde! E são apenas 70 euros…” – olhei à volta, sem conseguir esboçar qualquer resposta. Presa à minha indecisão, a pobre mulher lá voltou rapidamente à carga:
            “– Aquelas além também são catatuas, embora selvagens. Apenas 25 euros cada… aqueles roseicollis ou inseparáveis-de-faces-rosadas, como também lhes chamam, faço-lhe um desconto, pois estamos quase no fim da praça…” – agradeci com um leve e forçado sorriso. Tão forçado que quando dei por mim estava novamente só perante a inquietação da catatua.
            A plumagem colorida da exótica ave atraía os olhares dos que por ali passavam, embevecidos por ver um aperaltado pássaro, com crista de galo, empoleirado numa estaca de madeira. Lembrei-me, então, de Da Vinci, que compraria os pássaros nas feiras, apenas para poder voltar a libertá-los… e perante o exemplo do génio humanista senti vergonha de mim.
            Em frente da pobre catatua, o tempo parecia ter parado. De quando em vez, os nossos olhares encontravam-se. Talvez curiosa com a minha presença, interrompia as bicadas no fio, para logo depois voltar a retomar a tarefa. A razão parecia levá-la a compreender a missão de Sísifo que tinha pela frente, mas, ao mesmo tempo, o instinto parecia forçá-la a insistir uma e outra vez. Afinal, o instinto de liberdade é sempre mais forte do que todos os raciocínios urdidos.
            Quando, por volta do meio-dia, me vim embora, carregado de alfaces e cenouras, trazia estampada na alma aquela luta inglória. E é agora, aqui sentado à porta de casa, com vista para o Tejo, que recupero o sentido de mais um dia. Lá ao fundo, os maçaricos, os alfaiates e os flamingos esvoaçam em cima dos lodaçais. E lembro-me das gaiolas e da infeliz catatua, a bicar as algemas da escravatura moderna. As imagens vêm então em catadupa e assomam-me à memória as aves de rapina que um dia vi acorrentadas num desses museus de falcoaria, em que invocando o princípio das relações mutualistas se condena à escravatura um animal para gáudio de meia dúzia de homens. Lembro-me ainda de ter estudado que algures num passado não muito distante existia o hediondo hábito de furar os olhos dos melros para que eles cantassem de um modo mais profundo e dolente. E ao imaginar que esse canto terá animado serões e inspirado até poetas ou músicos, dou por mim a sentir vergonha de ser homem.
            Quando compreenderemos, finalmente, que os animais não se compram e vendem? Quando compreenderemos que os seres humanos não são tão especiais como julgam? Quando se tornará claro que a nossa suposta superioridade em relação a toda e qualquer forma de existência não passa de uma representação errada e profundamente perigosa?
            Talvez que para muitos dos leitores faça ainda sentido a caça, bem como o tenebroso ritual de espetar ferros afiados nos dorsos de touros, perante as gargalhadas da assistência, mas para mim tudo isso já não faz qualquer sentido. Vai mesmo contra tudo o que a passagem dos anos me tem ajudado a compreender.
Sem margem para dúvida, matar por prazer já não deveria fazer parte do mundo ao qual eu gostaria de pertencer, tal como comprar animais para depois aprisionar dentro de jaulas. Se cada cidadão tem hoje nas mãos o imenso poder do consumidor, a verdade é que nem tudo se pode comprar ou vender. A liberdade é, definitivamente, uma delas.
Na obra A genealogia da Moral, editada em 1887, escreveu Nietzsche: “Talvez deva admitir-se que o deleite da crueldade não desapareceu; apenas se subtilizou, se revestiu das cores da imaginação, se espiritualizou e se cobre com nomes hipócritas”. O futuro parece, cada vez mais, continuar a dar-lhe razão…

Renato Nunes (renato80rd8918@gmail.com)