sábado, 28 de março de 2020

Merkel conseguiu evitar o pior. Resta saber por quanto tempo (Artigo de Opinião de Teresa Sousa- Jornal Público)


1. Esperava-se que corresse mal. Correu pior. A única réstia de esperança é que poderia ter corrido ainda pior. Mas continua a ser legítimo dizer que não parece haver número de infectados ou de mortos, cenários catastróficos para a economia, números do desemprego a dispararem a uma velocidade raramente vista, cidades-fantasmas, angústia generalizada quanto ao futuro, que consiga levar os líderes dos 27 países da União Europeia a agirem como europeus. Foi triste a imagem que o terceiro Conselho Europeu por teleconferência deu de si próprio. E não foi por culpa de todos.
Também é legítima uma discussão sobre dívida conjunta ou sobre o montante de crédito que o Mecanismo Europeu de Estabilidade (MEE) deve conceder aos Estados-membros. Ela foi, certamente, intensa na última reunião do Eurogrupo que precedeu a cimeira e que, perante a constatação de divisões insanáveis, preferiu passar aos líderes a responsabilidade da decisão. Não é essa a questão essencial. O que é mais perigoso na situação que a Europa vive neste momento e na sua incapacidade de reagir em conjunto é que alguns dos seus líderes (ainda) não mudaram a sua forma de pensar. Pensam hoje o que pensavam antes da pandemia.
2. O primeiro-ministro português referiu quatro países que se opuseram à emissão de dívida conjunta para enfrentar a reconstrução económica e social da Europa. Depois corrigiu: três irredutíveis e um quarto que aceita o debate. Não revelou quais foram. Não lhe compete. Mas a forma como decorreu o Conselho, num clima tão tempestuoso que ia levando à ruptura, permite algumas conclusões.
Que os Países Baixos se opõem furiosamente aos eurobonds, seja qual for a forma que revistam, já sabíamos, e não houve qualquer esforço de Mark Rutte em desmenti-lo. Foram, aliás, as declarações do seu ministro das Finanças que levaram António Costa a dizer o que disse durante a conferência de imprensa final do Conselho Europeu, classificando-as de “repugnantes”. As suas palavras tornaram-se virais, provavelmente porque exprimem um sentimento partilhado em muitos países europeus. Na sexta-feira, o primeiro-ministro holandês não as quis comentar, mas sentiu-se obrigado a esclarecer que as palavras do seu ministro terão sido mal interpretadas – qualquer coisa entre “não escolheu bem as palavras” e “não o interpretaram bem”. Rutte também disse que eram “muitos” os países que pensavam como ele sobre a emissão de dívida. Hoje, sabemos que “muitos” quer dizer quatro, mesmo que haja ainda alguns líderes europeus que tenham preferido um relativo silêncio. Mesmo assim, nas últimas horas, mais três países juntaram a sua assinatura aos nove chefes de Estado e de Governo que, na véspera da cimeira, enviaram uma carta conjunta a Charles Michel, defendendo que a Europa precisa de recorrer a todos os instrumentos à sua disposição para enfrentar esta crise, incluindo a emissão de dívida. Entre eles, estão países ricos do Norte, como a Bélgica ou o Luxemburgo, mas também a França, a Itália e a Espanha, respectivamente a segunda, terceira e quarta economias do euro, ou Portugal, Irlanda e Grécia e, a partir de sexta-feira, Malta, Chipre e Lituânia.
3. O choque frontal que quase levou o Conselho Europeu à ruptura foi, como seria de prever, entre Mark Rutte e os primeiros-ministros dos dois países onde o sofrimento atingiu já as proporções de uma tragédia humana: Giuseppe Conte e Pedro Sánchez. Nem um nem outro estavam disponíveis para assinar uma Declaração conjunta cheia de palavras vazias, espelhando apenas o “menor denominador comum”, ou seja, o recurso ao Mecanismo Europeu de Estabilidade (MEE) em determinadas condições e a exclusão de “coronabonds”. A ruptura acabou por ser evitada in extremis pela chanceler alemã através de uma intervenção considerada em Lisboa como “construtiva e moderada”, ainda muito longe de ceder no que diz respeito à emissão de dívida conjunta, mas capaz de evitar o pior. O argumento de Angela Merkel em relação aos “coronabonds” não é igual ao “nunca, jamais” de Rutte ou do chanceler austríaco Sebastian Kurz. O seu argumento é que não se deve prometer o que não se tem a certeza de poder cumprir. Mesmo assim, a sua intervenção permitiu aliviar a tensão e encontrar um acordo em torno do ponto 14.º da Declaração, onde nenhuma solução é mencionada para a reconstrução económica pós-pandemia, nem nenhuma é rejeitada. O Eurogrupo volta a ser mandatado para apresentar propostas concretas em duas semanas. “As propostas devem ter em conta a natureza sem precedentes do choque da covid-19, que afecta os nossos países todos”. “A nossa resposta decorrerá passo a passo, à medida que for necessária, com novas acções e de uma forma inclusiva, à luz dos desenvolvimentos e de forma a dar uma resposta abrangente.”
A Alemanha, como Merkel voltou a dizer no final da reunião, prefere o recurso ao MEE. Mas uma das razões pelas quais a Itália, entre outros países, se opõe a este mecanismo de resgate europeu (240 mil milhões dos 410 de que dispõe, que correspondem ao limite máximo de 2 por cento do PIB de cada país), está nas condicionalidades que impõe para a concessão de empréstimos – vistas como uma espécie de “programas de ajustamento” aplicados pela troika durante a crise das dívidas soberanas, com a mesma natureza estigmatizante. Nenhum país, de Portugal a Itália, quer voltar ao tempo da resposta à crise financeira de 2008, com as suas hesitações, as suas decisões no último minuto, as suas “estratégias de punição”, a sua execução em tempo recorde, impedindo as economias de respirar e saldando-se em custos sociais elevados. Sexta-feira, António Costa voltou a insistir nesta comparação.

Também esta sexta-feira, o Financial Times resumia bem a discussão que envolveu os lideres europeus. “Praticamente todos os países sairão desta crise com as suas dívidas inflacionadas e um défice mais pesado. Perante um pano de fundo desta natureza, discutir quem sairá com finanças ligeiramente mais saudáveis seria como vangloriar-se de ter a cara mais limpa depois de um combate na lama.”

4. O Presidente francês e o primeiro-ministro português insistiram no risco de vida que a Europa corre. Não estarão a exagerar. Se esta é a maior crise que os europeus enfrentam depois da II Guerra – como diz Merkel -, se esta é uma “guerra” contra um inimigo comum que não escolha quem ataca, como voltou a dizer esta sexta-feira António Costa, então a resposta só pode ter uma dimensão equivalente. Também esta sexta-feira, o Presidente do Parlamento Europeu, o italiano David Sassoli, manifestando a sua desilusão perante os fracos resultados do Conselho Europeu, lembrou que “ninguém conseguirá escapar a esta emergência sozinho”. “A Europa que vai emergir desta crise não será a mesma. Mas há quem ainda não tenha compreendido isso.”

Artigo de opinião escrito por Teresa Sousa 
Jornal Público 28 de Março

quarta-feira, 25 de março de 2020

Memórias e desabafos em tempo de quarentena

Lembro-me perfeitamente de Janeiro de 2018, o meu reingresso no ensino. O recomeço foi muito duro e a vontade de desistir por diversas vezes assolou a minha cabeça. O nervosismo era imenso e a vontade de falhar maior ainda. Foi com alegria que no final do ano letivo 2017/18 me despedi da Escola Secundária do Fundão com a sensação de dever cumprido e ter ultrapassado este primeiro obstáculo sem distinção mas com dignidade e muito trabalho.

No ano letivo 2018/19 estive nas escolas de Manteigas e Pampilhosa da Serra.  Retomei o ensino do terceiro ciclo e a necessidade de me adaptar a realidades muito distintas. Ambas as escolas têm muito poucos alunos e foi o meu primeiro contacto com uma escola TEIP, Pampilhosa da Serra. Senti que este foi um ano der transição de preparação, no fundo de acreditar que era possível e capaz de abraçar esta profissão. Foi o ano que comecei a organizar na minha cabeça como tornar as coisas mais fáceis e aprender com os erros e consegui aos poucos construir a minha metodologia de trabalho.

Este ano letivo está a ser sem dúvida o maior desafio da minha vida profissional. Aceitei-o com algum medo mas com uma grande determinação que ia conseguir, fui colocado em Tabuaço e Pampilhosa da Serra com horário completo anual. Foi uma loucura para tanta gente mas um desafio de constante auto-superação para mim. Uma vez que entro sempre às 9 horas há segunda feira fico em Tabuaço, dia esse que aproveito para descansar mais um pouco e recuperar baterias para os restantes dias da semana, pois em todos os outros vou e venho para Oliveira do Hospital.  Considero o dia que fico em Tabuaço o meu dia livre. Neste ano letivo muito difícil estou a lecionar  3º ciclo, 12º ano e Economia a um Curso Profissional de Restauração e Bar. Tenho conseguido ultrapassar tudo com muito trabalho em casa, apoio da minha esposa, pais e sogros. Neste período aprendi a simplificar processos a improvisar.Foram tantas as vezes que sem a aula devidamente planeada tive que contornar a situação em contexto sala de aula e mesmo saindo da escola tantas vezes triste comigo, ter a noção que amanhã tudo irá ser melhor. O pensamento positivo e o olhar em frente acreditando nas minhas potencialidades foi sem dúvida a minha maior conquista.

O segundo período estava quase a acabar quando surgiu esta triste notícia do corona virus que nos obrigou a estar em casa e a ter de lidar com rotinas tão diferentes. Sinto saudades de dar aulas presenciais e da adrenalina de ter de ultrapassar os obstáculo diariamente. Já tinha tudo muito bem definido na minha cabeça e as coisas estavam a correr bem.
A adaptação a estas novas rotinas têm sido muito difícil para mim. Sinto vontade de sair de enfrentar a vida lá fora mas não posso, sinto que perdi liberdade e é tão duro. Readaptar-me a outros método de ensino tem sido tão difícil, ainda mais quando olho e leio mails e vejo que outros o fazem com tamanha facilidade. Sinto que é o começar do zero e o nervosismo do Fundão está a voltar, a necessidade de me adaptar a uma situação nova,  com novas  metodologias e com novas formas de lidar com o tempo.

segunda-feira, 23 de março de 2020

Soeiro Pereira Gomes: um escritor esquecido?


Soeiro Pereira Gomes nasceu em Gestaçô (concelho de Baião, Porto), no dia 14 de Abril de 1909, e faleceu no dia 5 de Dezembro de 1949, com apenas 40 anos. Se fosse vivo, completaria 111 anos. O seu exemplo de luta cívica e a sua obra bem mereciam outro destaque, daí este breve artigo.
Quando morreu, Soeiro vivia na clandestinidade há cerca de 5 anos, pois, enquanto membro do Partido Comunista, fora um dos dirigentes locais, em Alhandra (Vila Franca de Xira), da greve de 8 de Maio de 1944. Sublinhe-se que Soeiro era, desde 1932, empregado de escritório na Fábrica de Cimentos Tejo, em Alhandra.
Ao longo da sua curta vida, colaborou com o jornal O Diabo, publicou, entre outros, Esteiros (1941) e, já a título póstumo, Refúgio Perdido (1950) e o romance inacabado Engrenagem (1951). Além disso, profundamente comprometido com a transformação da realidade social, desempenhou também um papel importante ao nível da comunidade local, ajudando a construir uma piscina para que as crianças e os jovens aprendessem a nadar sem enfrentarem os perigos dos esteiros do Tejo, desenvolvendo actividades de cariz cultural ou dando lições de ginástica aos filhos dos operários.
Quem hoje fala em Soeiro Pereira Gomes recorda-se, sobretudo, da obra Esteiros, dada à estampa durante a II Guerra Mundial, quando o autor tinha 32 anos. O livro — um dos marcos do Neo-Realismo português — contou com uma capa e ilustrações de Álvaro Cunhal e foi dedicado aos “filhos dos homens que nunca foram meninos”.
O enredo do romance gira em torno de 5 crianças (Maquineta, Gaitinhas, Guedelhas, Gineto e Sagui), que são obrigadas pelas duras circunstâncias da vida a tornarem-se adultos antes do tempo, ingressando no árduo mundo do trabalho e da exploração capitalista, para conseguirem, graças ao parco rendimento auferido, ajudar as famílias a pagar a sobrevivência. Por exemplo, no forno, onde se fazia o tijolo, “Gaitinhas deu o ombro à carga, mas deixou-a cair, derreado, pela violência do calor que lhe trespassou a camisa e queimou os ombros e orelhas. Um empurrão do mestre fez-lhe brotar lágrimas de raiva”.
Este é também, como escreveu Isabel Pires de Lima, em jeito de introdução à 5.ª edição do livro (1979), um “grito de denúncia”, que alerta para as profundas clivagens entre os explorados e os exploradores, a miséria social, a fome. Eis-nos perante um conjunto de crianças que, impedidas de frequentar a escola, acabam por ter de mendigar e roubar, por vezes até mesmo outros miseráveis como elas.
Muitas pessoas, sobretudo aquelas que nasceram no Estado Novo salazarista, recordar-se-ão das circunstâncias descritas por Soeiro Pereira Gomes no romance Esteiros. Lembrar-se-ão dos seus próprios percursos ao relerem os relatos pungentes daquelas crianças e das suas famílias exploradas pelos patrões capitalistas; reconhecer-
-se-ão no sofrimento que ainda os atravessa por terem sido incapazes de ultrapassar a dureza das suas circunstâncias. O espelho intemporal criado pelo talento literário de Soeiro ajudará muitos a compreenderem ainda melhor aquilo que a vida lhes roubou — quantos não desejariam ter estudado, concluído um curso superior e não o fizeram porque foram forçados a abandonar a escola para ir trabalhar? Deixo somente um exemplo, entre muitos outros igualmente significativos. Gaitinhas (cujo verdadeiro nome era João) vivia com a mãe, Madalena, que estava muito doente com tuberculose (acabaria, de resto, por falecer). Madalena, devido às dificuldades financeiras, teve de convencer Gaitinhas a sair da escola e, por isso, foi pedir ajuda ao sr. Castro para empregar o filho na Fábrica Grande. Durante a conversa, porém, Madalena deixou escapar a mágoa de ver o seu menino abandonar os estudos (o Mestre-Escola previra que ele tinha muitas capacidades e podia ir longe. Já o pai de Gaitinhas, que andava algures pelo mundo, queria mesmo que ele fosse um médico que ajudasse os mais pobres…). Eis a resposta do ricaço à malograda mãe: “Que mal tem isso? […] Evidentemente que vossemecê não queria fazer dele um doutor”. Afinal, isso estava reservado para o seu filho Arturinho e para os restantes filhos dos capitalistas, pois os pobres estavam — na lógica da sua época — condenados a perpetuar a herança da miséria e do analfabetismo.
A luta destas crianças e das suas famílias pela sobrevivência representa o trágico percurso de tantas gerações portuguesas, às quais a realidade roubou os sonhos: como no caso de Maquineta, que tanto desejara ir trabalhar para as máquinas na Fábrica Grande e acabou por ter de carregar carvão no cais. Ou das trágicas consequências das cheias no rio Tejo, durante o Inverno: “O caudal barrento do rio arrastava fardos de palha, animais e lágrimas. E o homem daqueles sítios, alheio às conversas, nada mais via do que luto à sua frente”.
Mas as páginas de Esteiros também reflectem a gradual tomada de consciência cívica e política das suas personagens: “Madalena cerrou os lábios. Bem sabia ela que o destino era a vontade dos homens”. Ou ainda: “Maquineta bateu com força na nuca, e asseverou, como se discutisse com o próprio mestre: — Aqui é que ninguém põe a canga, nem que me matem”.
Claro que este perigo não poderia passar despercebido à censura do Estado Novo, que, em 1966, ou seja, 25 anos após a edição do livro, afirmava num dos seus relatórios:
“É um romance regionalista de análise crítica da vida miserável das populações ribeirinhas do rio Tejo, nas zonas das Lezírias, fazendo realçar a injustiça, a exploração da miséria, resultado das desigualdades sociais, no que o livro não é justo, mas antes especula.
[…] Julgo por isso que este livro deveria ter sido proibido quando apareceu, mas agora dever ser ignorado”.
O leitor Francisco C. Salgado (censor especializado na análise das obras literárias) pesava, portanto, os efeitos contraproducentes de uma eventual proibição da obra (fruto proibido é o mais apetecido), mas encerrava, considerando que deveriam ser impedidas as referências ao livro nos meios de comunicação social, condenando-o assim, na prática, à não-existência.
O final dos Esteiros representa uma inequívoca mensagem de esperança, ou não tivesse este livro sido publicado em 1941, quando decorria a II Guerra Mundial e nascia, gradualmente, entre as oposições portuguesas, a esperança de que a vitória dos Aliados traria consigo o fim do regime salazarista. Este esforço de procurar colocar o texto no seu contexto, segundo penso, revela-se fundamental para compreender esta obra e em particular o seu desenlace.
Eis o final do romance, com sabor a futuro de mudança: Gineto, preso na cela (depois de ter sido apanhado a roubar carvão), pensou ouvir Gaitinhas, que todavia já partira com Sagui para percorrer o mundo, em busca do pai. O pano encerra com o sonho de Gineto: quando os amigos regressarem, virão libertá-lo e “mandar para a escola aquela malta dos telhais — moços que parecem homens e nunca foram meninos”. A escola — sublinhe-se — surge aqui como um instrumento de libertação individual e social. E o sonho fica em aberto. Até hoje...
Soeiro Pereira Gomes passou à clandestinidade em 1944. Nessa sequência, a sua esposa, Manuela Câncio Reis, foi presa pela PIDE, mas nem isso levou o escritor a entregar-se. Em 1947, na sequência de uma queda de bicicleta (pensaria que estava a ser perseguido pela PIDE), foi-lhe diagnosticado um cancro nos pulmões, que acabaria mesmo por matá-lo dois anos depois. Hoje, as suas obras não fazem parte do Plano Nacional de Leitura e dificilmente se consegue adquiri-las numa livraria. A RTP, porém, dedicou-lhe, numa das suas emissões pedagógicas, um breve programa particularmente interessante, que recomendo vivamente a todos os leitores (https://ensina.rtp.pt/artigo/esteiros-de-soeiro-pereira-gomes/).
Numa época em que todos vivemos um drama mundial, com impactos imprevisíveis, é altura de aproveitar o nosso isolamento para regressar aos grandes clássicos da literatura. Soeiro Pereira Gomes figura, por direito próprio, no patamar dos grandes escritores e merece, por conseguinte, que as escolas o estudem e os portugueses o leiam.
Esteiros, esses braços (canais) do rio Tejo, “como dedos de mão espalmada”, ajudam-nos também a não esquecer que o destino dos Homens é construído diariamente por cada um de nós. E que é, sobretudo, pelos mais desfavorecidos que vale a pena lutar. Uma mensagem cada vez mais útil e que importa repetir à exaustão. Também por isso, a reedição das obras de Soeiro Pereira Gomes é, segundo penso, uma necessidade premente...
Renato Nunes (renato80rd8918@gmail.com) 

segunda-feira, 16 de março de 2020

Uma semana que me irá ficar para sempre na memória.


O planeta está doente e pela primeira vez na minha vida sinto pânico generalizado.

Nas escolas na passada semana vivi uma situação de crescente alarmismo à medida que os casos foram aumentando e as conversas entre professores, nos corredores, na sala de professores ou no restaurante onde por norma vamos simplesmente para desligar do trabalho. Manter a sanidade mental, focar-mo-nos no essencial, transmitir tranquilidade aos alunos foi essa a tarefa que nos moveu.

Ensinar conteúdos da nossa disciplina foi uma tarefa que passou para mim para plano secundário. No meu caso acabei para fazer exercícios para consolidação dos conteúdos até porque esta semana coincidiu com uma semana de testes ou de revisões para os mesmos.

Nesta semana não foi fácil passar aos alunos a mensagem da verdadeira gravidade da situação, uma vez que para eles a suspensão das aulas é um sinal positivo não levando a peito todas as indicações de professores, auxiliares. Eu leciono essencialmente ao 3ºciclo a realidades sociais e económicas muito difíceis, onde os pais na maior parte dos casos não têm capacidade para os conter em casa e para lhe explicar o estado de emergência que vivemos. Tudo isso me assusta imenso e me deixa muito preocupado.

Recordo-me de um episódio que vivi na passada sexta feira  e me ficará para sempre na memória. Na última aula do dia quando a funcionária foi à sala e me deu um comunicado para ler, senti a minha voz tremula e insegura, e admito que foi a mensagem que mais me custou ler  aos meus alunos. Após a leitura da mensagem de encerramento antecipado das aulas senti um burburinho generalizado e eu ainda com a máscara de professor lembro -me que pousei de uma forma mais brusca o relógio sobre a minha secretária e gerou um silêncio geral na sala e reafirmei novamente o estado de emergência que todos vivemos e que o papel deles será muito importante, para a contenção do vírus. Terminei a aula com a auto-avaliação dizendo que as aulas presenciais poderiam neste ano lectivo  ter terminado naquele dia ao que me apercebi que alguns alunos expressaram um "Ooooh" em sinal de admiração. O futuro será incerto e para o bem da humanidade tenho de acreditar na ciência e como professor e cidadão tudo farei o que estiver ao meu alcance para ajudar. Após o final da aula senti um vazio. A partir de agora vão-me faltar as rotinas que eu me habituei a gostar.

Passado o fim de semana e começou o período de quarentena. Ao longo da vida aprendi a ser otimista e a enfrentar os problemas que sobre mim se debruçam. Nesta fase tento ver tudo o que de positivo está à minha volta para sorrir, ter esperança e dá-la à minha família mais próxima. Observar que Macau já não há casos há largos dias ou que na China a tendência é de recuperação. O povo português é um povo solidário que não vira a cara à luta mas agora mais do que nunca temos de o ser verdadeiramente e contribuir para que juntos possamos ultrapassar esta pandemia que nos encontramos.
Para mim a escrita vai ser uma rotina que me fará ultrapassar os dias em casa. Como professor estarei disponível para dar aos meus alunos as ferramentas e conteúdos para trabalharem e nãos se esquecerem da importância da escola.


sábado, 7 de março de 2020

Memórias de 2020 que me fizeram recordar 2016


Para se conseguir aguentar as agruras da vida sempre com um sorriso tem de se ter amor por aquilo que se faz, de outra forma trabalhar passa a ser um sacrifício e não um prazer o que é muito doloroso. Já passei pelos dois estados e é muito interessante perceber que mesmo com as opções menos felizes que tomamos aprendemos tanto.

Eu em 2016 tinha muitas dúvidas sobre o caminho a seguir, conhecer aquilo que de facto me faz feliz e realizado. Apercebi-me que esse ano foi o ano de viragem da minha vida sem dúvida. No Verão de 2016 estava desempregado e ligou-me uma amiga a perguntar-me se eu estava disponível para ser carteiro no giro da Vide(Seia), posso dizer hoje que é o mais difícil que havia naquele concelho. Assenti  ao convite no desespero de conseguir uma ocupação. Tive até ao mês de Julho à experiência e a partir de agosto entrei num empresa externa que trabalhava para os correios, pois aos CTT não compensava fazer aquele giro. Com a regressão do número de pessoas e de correspondência o número de carteiros decresceu naquela zona de 4 para 1. Para mim que estava a dar os primeiros passos foi uma entrada demolidora.



Lembro-me perfeitamente do clima frio que existia naquele Centro de Distribuição Postal (CDP) e da forma sobranceira que o chefe olhava para os seus empregados.
.
Vou dar dois exemplos para explicar a forma fria com que trabalhava no CDP de Seia em 2016
O primeiro exemplo foi no dia 10 de Julho, dia em que Portugal conquistou o Euro 2016. Nesse dia tal como todos os outros apresentei-me ao trabalho às 7:30 fiz o cumprimento normal e não ouvi naqueles 45 minutos que passei a organizar as coisas para ir para a rua um único comentário à grande e inédita vitória de Portugal. Observei rostos fechados e um enorme peso na realização daquele trabalho.
O segundo exemplo,  foi um acidente que tive em trabalho quando me deslocava com o carro para fazer o meu serviço e embati frontalmente com o outro carro. Foi a primeira vez e espero que a única que tive um acidente deste género. Neste segundo exemplo, o embate foi duro apesar de ter tido a sorte de não ter ficado com sequelas físicas. Lembro-me que fui ao hospital e tive alta cerca de um par de horas depois e o meu chefe veio ter comigo e disse-me para ir trabalhar de tarde no meu carro e eu assenti. Durante a realização do giro alguns populares perguntaram-me se estava bem mas foi muito triste saber que havia um conhecimento geral sobre o que tinha acontecido e na Vide, os CTT que eu tinha que ir todos os dias, não haver uma palavra de conforto naquele dia particularmente difícil para mim.

Naqueles meses que estive a trabalhar para os CTT ultrapassei todas as adversidades com afinco, apesar de sentir que o meu trabalho não era minimamente reconhecido. Senti que a satisfação e gosto por aquilo que se fazia não contava para aquela gente que liderava os CTT de Seia, o que lhes interessava era que o trabalho aparecesse feito. A cada dia que passava senti um avolumar de queixas dos CTT e dos populares sobre o meu trabalho.

Eu apesar de todos os problemas que me deparei senti a enorme importância do carteiro para aquelas pessoas que vivem no extremo isolamento. Lembro-me que além de pagar reformas fazia inúmeros outros serviços como pagar água, luz, gás, Tv cabo, levantava receitas de farmácia etc.
Lembro-me que passei um verão tórrido e  sozinho calcorreava quilómetros de estrada em mau estado, muitas vezes terra batida. Não me cansei de dizer tudo o que me ia na alma e lembro-me perfeitamente de um dos representantes da junta da Vide me dizer que iria levar a discussão toda aquela problemática que o carteiro passava diariamente. Era de facto preciso fazer alguma coisa. Sinceramente penso que nada foi feito e que continua tudo na mesma com cada vez menos gente e cada vez mais abandonada. Deixei a profissão de carteiro no final de novembro após ter sido demitido.

Passados todos este anos, hoje decidi enveredar pelo profissão de professor e estou a leccionar na Pampilhosa da Serra, onde  muitas vezes passo junto das placas que nos indicam a direção a  seguir para  localidades onde trabalhei em 2016 e esboço um sorriso não sei se de satisfação se de desanimo por quem tem o azar de não poder sair daqueles lugares.

Esta semana um colega meu que faz o mesmo percurso para ir trabalhar como professor na escola da Pampilhosa da Serra despistou-se. Felizmente correu tudo bem e penso eu que não teve sequelas físicas preocupantes . Atualmente está uns dias em casa  a recuperar do choque que foi aquele acontecimento. No final desta semana quando falava com ele ao telefone lembrei-me imediatamente do tempo em que trabalhava nos CTT e que fui trabalhar no próprio dia em que  tive o acidente. Nós mais que ninguém temos que pensar em nós e se fosse hoje rejeitava ir trabalhar naquele dia e provavelmente nos restantes.