domingo, 18 de setembro de 2016

Os piores deuses? Nós.

        O historiador Yuval Noah Harari publicou em 2011 uma obra, intitulada Sapiens. De Animais a Deuses. História Breve da Humanidade. Numa época em que o conhecimento é cada vez mais compartimentado, é meritório o esforço do académico para nos apresentar uma síntese global da evolução da Humanidade (macro-
-História). Trata-se, portanto, de um livro estimulante, que abre com uma questão seminal: como foi possível que o Homem moderno – um ser “insignificante” há cerca de 70.000 anos atrás – tenha conseguido dominar o mundo?
            Eis, pois, uma viagem à noite mais escura da nossa existência, fundamental para compreender a diferença entre o que efectivamente somos e o que apenas imaginamos ser. Um percurso orientado por questões às quais nem sempre os historiadores dedicaram a devida atenção.
         De um modo geral, o professor de “História do Mundo” na Universidade Hebraica de Jerusalém sustenta que terá sido a nossa capacidade de cooperação em larga escala e de modo mais flexível a elevar-nos ao pedestal máximo dos seres, tornando-nos, assim, uma espécie de deuses na Terra. Uma vitória apenas garantida graças à nossa capacidade de linguagem e de imaginação, competências que nos levaram a criar abstracções como o dinheiro, empresas, ou seja, um conjunto de “ficções legais” às quais estaremos cada vez mais ligados. O nosso mundo e a nossa sobrevivência parecem depender, em grande medida, da confiança que continuamos a depositar nestas ilusões. Confiança é, pois, uma palavra-chave na actualidade.
             Ora, a crise económica global iniciada em 2008, um pouco à semelhança da Longa Depressão que rebentou em 1929, constituem dois possíveis exemplos do que pode suceder quando existem demasiadas ilusões, nomeadamente aquela que nos leva a acreditar que é possível fazer indefinidamente mais dinheiro apenas com dinheiro. Um problema cuja origem pode ser situada antes do século passado, pois Yuval Harari descreve-nos o caso da “Bolha do Mississípi”, uma crise de natureza especulativa do sistema financeiro, sublinhe-se, ainda em pleno século XVIII.
            Além das bolhas de natureza especulativa, o mundo contemporâneo vive imerso em muitas outras ilusões. Como “pessoas sensíveis” que somos – parafraseando Sophia de Mello Breyner Andresen – não matamos galinhas, mas comemo-las. Vamos buscá-las ao talho, já limpas e cheirosas, ignorando o percurso que, na maior parte dos casos, fizeram até chegar ali. As circunstâncias em que são criados os animais que nos servem de alimento são recuperadas pelo historiador israelita de um modo difícil de esquecer. Eis a legenda que acompanha uma imagem onde se vêem pintainhos em cima de um tapete rolante de uma incubadora comercial:
       “Pintainhos machos e fêmeas imperfeitas são excluídos do tapete rolante e asfixiados em câmaras de gás, colocados em destruidores automáticos ou, simplesmente, atirados no lixo, onde são esmagados até à morte. Centenas de milhões de pintainhos morrem todos os anos nestas incubadoras”.
            Como se comprova pelo excerto transcrito, o best-seller internacional que inspira este artigo foi escrito de um modo didáctico e límpido, algo difícil de encontrar na maioria dos historiadores portugueses. Trata-se, de resto, de uma obra que procura desconstruir várias ideias que julgamos como adquiridas, constituindo, por isso, um estímulo à reflexão e um desafio à nossa capacidade para “pensar fora da caixa”. Primeiro exemplo: “A Terra de há 100 milénios era pisada por, pelo menos, seis espécies diferentes de homens”, asserção que nos leva a problematizar a linha de progresso contínuo, segundo a qual a hominização é, vulgarmente, apresentada nos manuais de História (do Australopithecus até ao Homem moderno). Segundo exemplo: alguns animais ditos irracionais conseguem mentir – “já foi visto um macaco-de-
-Tarrafe a gritar «Cuidado! Um leão!», sem que houvesse um leão por perto. O sinal de alarme assustou, convenientemente, um outro macaco que tinha acabado de encontrar uma banana, deixando o mentiroso sozinho para poder ficar com o prémio para si”. Terceiro e último exemplo: a tragédia ecológica, pela qual somos responsáveis, iniciou-se muito antes da Revolução Industrial – “O Homo Sapiens levou à extinção perto de metade dos animais de grande porte do planeta, muito antes de os humanos terem inventado a roda, a escrita ou as ferramentas de ferro”.
            Importa, porém, dizer que Yuval Harari, doutorado em História pela Universidade de Oxford, parece obcecado pela “síndrome das descobertas” (expressão consagrada pelo historiador Luís Reis Torgal), o que o leva a colocar questões nem sempre muito objectivas, como a tentativa de comparar o grau de felicidade do Homem antes e depois da invenção da agricultura ou, ainda a título ilustrativo, saber se existe justiça na História.
            O perigo de idealizar o passado – a que o próprio investigador se refere – parece, por vezes, levá-lo a apresentar uma perspectiva cor-de-rosa dos tempos pré-
-históricos: “A economia de recolecção garantia à maior parte das pessoas vidas mais interessantes do que a agricultura ou a indústria”. Ademais, considerar a passagem do paleolítico ao neolítico como “a maior fraude da História” assemelha-se-me bastante redutor, pois todos os progressos (qual moeda com duas faces) são sempre acompanhados de desvantagens. Claro que inventar a agricultura significou “acelerar a passadeira da vida”, o que nos trouxe novos problemas (diminuição da altura média, inflamação das articulações, cáries dentárias, doenças infecciosas como a tuberculose – na sequência da domesticação dos animais…). É, porém, importante não perder de vista a necessidade de fazer um balanço dos aspectos positivos e negativos, reflexão que me leva a pensar no dramático período de luta pela sobrevivência que os nossos antepassados caçadores-recolectores viveram, encontrando-se completamente dependentes das misteriosas forças da natureza, desde logo, da grande instabilidade do clima, erupções vulcânicas, cheias, bem como das perigosas migrações a partir de África (continente que até hoje continua a ser considerado o berço da Humanidade)...
            O optimismo algo exacerbado que parece atravessar as 490 páginas da obra é refreado pelas palavras finais do autor no posfácio, intitulado “O animal que se tornou um deus”:
                                   Infelizmente, o domínio sapiens na Terra produziu, até agora, pouco de que possamos orgulhar-nos.
                                               […] Ainda pior: os humanos parecem mais irresponsáveis do que nunca. Deuses autoproclamados, com apenas as leis da física para nos fazerem companhia, não somos responsabilizados por ninguém. Estamos, assim, a espalhar o caos sobre os nossos companheiros animais e o ecossistema envolvente, em busca de pouco mais do que o nosso próprio conforto e divertimento, sem, no entanto, nos darmos por satisfeitos.
                                               Existirá algo mais perigoso do que deuses insatisfeitos e irresponsáveis, que não sabem o que querem?

            Dito isto, também não poderemos ignorar os avanços já registados pelo Homo Sapiens, nomeadamente a partir do século XVIII. Como o próprio historiador faz questão de recordar, em 1958, um estudante negro chamado Clennon King candidatou-se ao ensino superior. Consequência: foi julgado e internado num asilo psiquiátrico, pois o juiz “considerou que uma pessoa de cor tinha, decerto, de ser louca para pensar que poderia ser admitida na Universidade do Mississípi”.
            Existem ao longo de toda a obra algumas afirmações que me parecem, no mínimo, discutíveis. Registo alguns exemplos, embora daí decorra o perigo de descontextualizar o pensamento do autor. Faço-o, sobretudo, em jeito de desafio ao leitor, para que estude a obra e chegue às suas próprias conclusões:
            “A vida de um camponês é menos segura do que a de um caçador-recolector. […]. A vida nas aldeias trouxe, certamente, alguns benefícios imediatos aos primeiros agricultores, como uma melhor protecção contra animais selvagens, a chuva e o frio. No entanto, para a pessoa comum, as desvantagens provavelmente suplantam os benefícios”;
            “À medida que o século XXI se vai desenrolando, o nacionalismo está a perder rapidamente terreno”.
            “Hoje, a humanidade quebrou a lei da selva. Existe, por fim, uma verdadeira paz e não apenas uma ausência de guerra. Para a maior parte dos regimes, não existe um cenário plausível que conduza a um conflito aberto dentro de um ano”.
            Ademais, datar o início da Revolução Industrial há “500 anos” afigura-se-me abusivo.
            Entre outros aspectos, teria sido importante, aquando da explicitação apresentada em torno dos ratings dos vários países, que o autor reflectisse um pouco sobre os negócios obscuros que envolvem as agências encarregues da atribuição destas classificações de referência mundial. O documentário Inside Job, realizado por Charles Ferguson, em 2011, daria um bom mote para o efeito...
            Outrossim, não poderemos também ignorar a crescente capacidade de adaptação demonstrada pelo Homem moderno em relação às suas circunstâncias e à necessidade de dominar a Natureza. A sua sobrevivência e domínio, desde logo sobre as restantes espécies humanas (que poderá ter inclusivamente destruído, caso dos Neandertais), também dependeram disso. 
            Em conclusão, é notável a capacidade de Yuval para interligar os conhecimentos e apresentar uma visão de síntese da globalidade. Considero, portanto, tratar-se de uma obra de referência, que merece a maior divulgação possível. Assim, se este breve artigo não foi suficiente para despertar o seu interesse, amigo leitor, saiba ainda que Yuval Harari – aludindo a vários investigadores – menciona a possibilidade de em 2050 o homem se tornar “amortal”…
            De resto, vale a pena visualizar esta intervenção do historiador e depois mergulhar na leitura da obra: https://www.ted.com/talks/yuval_noah_harari_what_explains_the_rise_of_humans?language=pt#t-24057
             Afinal, os admiráveis (mas também perigosos) “mundos novos” que se abrem diante de nós exigem cidadãos cada vez mais atentos e interventivos na sua pólis. A ética e a memória histórica são um imperativo de todos os tempos, mas sobretudo desta época em que os novos poderes do Homem, cada vez mais egoísta, parecem conduzir-nos ao nosso próprio fim – pelo menos como nos conhecemos – e igualmente à extinção de inúmeras espécies, a começar pelos anfíbios e passando, entre outros, pelos grandes primatas do planeta (Público, 10/9/2016).
            Seremos mesmo Sapiens, o tal “Homem Sábio”?

            Renato Nunes (renato80rd8918@gmail.com)