Atravessavam-se quilómetros e aquele
apelido, por si só, era chave infalível para entrar em qualquer cofre-forte: “–
Sabe, venho da parte do sr. Forjaz”. E a casa escancarava-se mesmo à frente dos
nossos olhos, sem qualquer pergunta adicional.
A família Forjaz construíra um dos
maiores impérios da nação, graças, em primeiro lugar, à compra e venda de
habitações. Ao velho Forjaz costumavam, de resto, chamar o rei do imobiliário,
o que curiosamente até rimava com milionário.
Manuel Antunes de Pina Forjaz
nascera em Vila Marim, no norte do país, no seio de uma família da astuta
burguesia. Crescera numa velha casa de granito com vista para um penedo onde
alguém um dia inscrevera uma frase, que sempre guardaria inconscientemente por
dentro: “Família que reza mantém-se unida”. De resto, como não quisera queimar
as pestanas com os livros, acabara por casar-se com uma dama da nobreza, por
sinal bem mais velha, que, segundo acreditava, lhe poderia garantir o prestígio
de um nome azul até ao fim dos dias.
Logo após o matrimónio, partiram
para a capital e, graças ao belo pé-de-meia que traziam escondido, conseguiram
adquirir uns vastos quilómetros de terreno a escassos quarteirões do Tejo.
Apenas dois anos volvidos, revenderam alguns lotes e ganharam o suficiente para
adquirir três belas moradias na zona mais cara da cidade. A histórica Olisipo crescia então a olhos vistos e o
cobiçoso Forjaz, cada vez mais raposo, não perdia a oportunidade de ceifar a
seara.
Passaram-se anos e anos, os
suficientes para que a família Forjaz se tornasse sinónimo de sucesso em todo o
país. Aos poucos, começaram a minar as mais variadas áreas: restauração, saúde,
vestuário e, já numa fase mais recente, uma petrolífera – os reputados investidores
diziam que o ouro negro era o único futuro do país e o cobiçoso Forjaz, cada
vez mais lampeiro, em tudo o que via cheirava dinheiro.
Todavia, sobretudo a partir de uma
determinada fase da vida – talvez porque nunca tivessem filhos – os dias começaram
a parecer-lhes insuportavelmente iguais. O casal Forjaz sentia a rotina a
amargar-lhe na boca: acordar às 5h00 da madrugada, engolir o pequeno-almoço,
separar tarefas (– tu vais à clínica!; – tu segues para os restaurantes…),
atravessar a confusão dos carros parados nos semáforos, respirar o ruído do
fumo a fugir dos escapes das chapas andantes que acabavam de arrancar. E no
meio de tudo isso uma insuportável sensação de profundo vazio. Um vazio que, na
verdade, contrastava com as inúmeras pessoas que diariamente recebiam no
conforto das suas casas repletas de festas simuladas. Silêncio.
Forjaz casara-se com pouco mais de
18 anos. Maria teria na casa dos 30. Durante todas as suas vidas, nunca haviam
conhecido o sabor da fome, nem sequer algum dia haviam pensado em tal
realidade. As suas habitações eram fartas e as mesas estavam sempre recheadas
com tudo o que de melhor existia. Ainda assim, invadia-os a solidão, uma
desgastante e insuportável solidão que a cada minuto os fazia perguntar o
sentido da sua condição e, ao mais pequeno pretexto, os conduzia à discussão.
Um dia, Maria aproximou-se do velho
Forjaz e, estendendo-lhe delicadamente as mãos, mostrou-
-lhe uma caixa de sapatos, cujo interior fora forrado com um pano de seda. Lá dentro, dormitavam dois gatinhos recém-nascidos, ainda com os olhinhos bem fechados. O velho Forjaz coçou a cabeça e sorriu longamente, parecendo assim aprovar a ideia da mulher para combater aquele vazio. De resto, gostou tanto que, logo no dia seguinte, foi ele próprio que repetiu a proeza e trouxe para casa dois cãezinhos que passaram a ser uma das poucas alegrias dos seus dias de milionário solitário.
-lhe uma caixa de sapatos, cujo interior fora forrado com um pano de seda. Lá dentro, dormitavam dois gatinhos recém-nascidos, ainda com os olhinhos bem fechados. O velho Forjaz coçou a cabeça e sorriu longamente, parecendo assim aprovar a ideia da mulher para combater aquele vazio. De resto, gostou tanto que, logo no dia seguinte, foi ele próprio que repetiu a proeza e trouxe para casa dois cãezinhos que passaram a ser uma das poucas alegrias dos seus dias de milionário solitário.
A chegada dos irrequietos bicharocos
trouxe luz à escuridão do casal e a partir daquele momento os dias nunca mais
foram os mesmos. O velho Forjaz via os tapetes roídos e as cadeiras arranhadas,
mas perante o olhar complacente dos novos inquilinos nem sequer conseguia
erguer a voz para proferir a mais breve reprimenda. Limitava-se a sorrir à
esposa, que a todo o custo tentava esconder as asneiras dos bicharocos!
Bastaram alguns dias e tornou-se evidente que a harmonia trouxera finalmente
uma família à moradia. E pela primeira vez havia alegria.
Passaram-se meia dúzia de anos e os
animais cresceram alegremente na companhia uns dos outros. Nem os cães corriam
atrás dos gatos, nem os felinos se intrometiam nos afazeres caninos. Quando
muito, nos tempos mais recentes, lá vinha um miar mais assanhado ou um latido
mais assustador sempre que a comida parecia não chegar para todos. A princípio,
os quatro patas – amamentados no tempo das vacas gordas – começaram a estranhar
a diminuição progressiva da ração, mas ao fim de algum tempo lá acabaram por
convencer-se que tudo aquilo faria parte de uma dessas dietas malucas que a
dona tantas vezes prescrevia a si mesma. Arre que era teimosa!
Mesmo Fadista, o possante perdigueiro
de orelhas caídas que mais se aproximara do coração do velho Forjaz, deixara de
conseguir avançar o suficiente para sentir a mão no pêlo a afagar-lhe os
sentidos. Aliás, ainda se lembrava muito bem quando, talvez há menos de duas
semanas, tentara fazê-lo e tivera mesmo de fugir a sete pés, para não levar com
o ferro da lareira em cima da cachimónia. Gerou-se então longa discussão entre
a bicharada por muitas noites dentro.
Um dia, porém, logo pela madrugada,
chegou a ansiada explicação. Na mansão todos puderam ouvir que os Forjaz
acabavam de decretar falência e em breve tudo seria entregue aos credores. Num
ápice, as empresas foram seladas e quase de imediato vendidas em hasta pública,
o mesmo sucedendo com o restante património ampliado ao longo de décadas e
décadas de investimento e dura poupança.
Então, o velho casal, já sem o
prestígio que o dinheiro oferece ao nome de baptismo, foi forçado a deixar tudo
para trás. Quanto aos animais que um dia haviam acolhido, não hesitaram em
escorraçá-los imediatamente com sete pedras nas mãos. Pedrada após pedrada, os
desorientados bicharocos ganiam dolorosamente e rodopiavam em volta da porta,
nunca se afastando o suficiente para ficarem em segurança. Quando, por fim, as
pedras deixaram de cair sentaram-se sobre as patinhas traseiras e aguardaram.
Manuel e Maria abandonaram a mansão
pela porta das traseiras numa manhã de Inverno. Mais sós do que nunca,
arrastaram-se pelas ruas da cidade durante várias semanas. Sentiram frio,
conheceram a fome, dormiram nas entradas dos edifícios que no passado haviam
possuído e, ironia das ironias, acabaram a vasculhar a comida dos restaurantes
onde ainda há pouco davam ordens. E enquanto percorriam as ruas em busca das
portas abertas sentiam o desprezo das inúmeras visitas que durante anos e anos
haviam diariamente recebido nos seus lares…
Numa dessas intermináveis noites em
que vagueavam pelas ruas abandonadas atracaram na velha mansão onde um dia
haviam imperado. Repararam então que no interior da casa havia luzes, muitas
luzes, e decidiram esperar atrás de um enorme arcipreste que crescera do outro
lado da calçada. Estava escuro e, por certo, lá dentro, o jantar estaria
prestes a terminar. – Talvez depois algum
empregado venha despejar os restos das refeições no lixo... – matutaram
para os seus botões. E esperaram, sempre escondidos.
Estava frio, muito frio mesmo, e os
trovões sulcavam assustadoramente os céus. Manuel abrigava a mulher debaixo da
gabardina, apertando-a contra o peito quando, subitamente, o ansiado criado da
mansão ultrapassou o secular portão de castanho. Viram-no debruçar-se e
assobiar, durante alguns minutos. Logo depois, chegaram dois cães franzinos,
com as caudas a abanar, fixando atentamente o homem da camisa branca que lhes
estendia os restos da noite. O empregado aproximou-se e antes de partir
afagou-lhes ternamente o cachaço, sem sequer ter tempo para ver os dois gatos
que, entretanto, se haviam acercado da desejada comida.
À distância, Manuel podia jurar
conhecer aqueles animais de algum lado, mas a miopia cada vez mais acentuada
imprimia uma perspetiva impressionista a todas as imagens que lhe chegavam à
mente. Então, deixou o homem da camisa branca fechar completamente o portão e,
depois de avançar alguns metros, quase sentiu um aperto no peito, quando
identificou os bicharocos que ainda há tão pouco tempo havia escorraçado à
pedrada. Percebia agora que eles sempre haviam permanecido por ali…
Pressentindo-os avançar para a
desejada comida, Manuel assobiou o mais alto que conseguiu, enquanto coxeava em
direção ao centro dos acontecimentos, arrastando atrás de si a sua mulher, cada
vez mais fraca e dorida pelo gelo da noite, pelo imenso poder da fome. Vazio.
Ao assobio, os animais olharam em
uníssono para o casal, completamente absortos da cabeça às patas, sem qualquer
movimento, talvez estupefactos pela inesperada presença dos seus donos. Até
que, sem que nada o fizesse prever, um a um, todos se desviaram da fumegante
refeição, como que abrindo caminho aos estômagos vazios daqueles que ainda
recentemente os haviam abandonado.
Vendo aquela surpreendente prova de
fidelidade e bondade, Manuel baixou ternamente a face e apertou a mão de Maria
com mais força. Negociante de poucas palavras, sempre lhe haviam ensinado que
um homem não chora, e por isso continuou a arrastar a mulher pela calçada fora.
Depois, sempre juntos, sentaram-se lado a lado, recolheram a comida do chão e
começaram a atirá-la, alternadamente, a cada um dos animais, também eles
profundamente esfomeados. Já há vários dias que nenhum dava uso à dentuça.
Nas ruas não havia ninguém. O frio
descia silenciosamente das montanhas e atravessava cada ser até às mais
profundas entranhas. Aninhados sobre a entrada da mansão onde um dia haviam
crescido, os quatro patas envolviam-se num lânguido sussurro, rodeando
ternamente os seus donos, com ou sem dinheiro, com ou sem roupas douradas ou
insígnias imaginadas. Nem sr. Forjaz, nem sr. Manuel, nem conde, visconde, deão
ou barão. Apenas e sempre os seus donos, finalmente de regresso. Nada mais.
Ali mesmo, do outro lado dos seus
antigos abrigos, não havia solidão. Afinal, também ali chegara, provavelmente,
uma das maiores lições desta época: “Família que reza mantém-se unida” – e
existem tantas formas diferentes de rezar…
Naquele inesperado local, pela
primeira vez na vida daquele casal foi Natal…
[Natal,
Ferida sem mal,
Safanão de luz
Que nos conduz
A perceber
Que apenas reencontramos
O que somos
Quando fugimos do artificial.
Natal, cordão umbilical,
Caminho que nunca se constrói
sozinho;
É preciso merecê-lo
Para depois recebê-lo
E não
voltar a perdê-lo.]
Renato Nunes