segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

O Natal do tio Chedas


            À medida que os anos se acumulam nos ossos, maior parece ser a necessidade que os Homens sentem em recordar a própria infância. Num mundo em que tudo muda tão depressa, parece ser fundamental acreditar que, pelo menos uma vez por ano, ainda subsiste uma noite em que quase tudo continua a ser igual, sem, no entanto, nunca se tornar banal. É a noite em que o Menino volta a nascer dentro de cada um de nós...
            Talvez por isso, agora que o Natal se aproxima uma vez mais, dou por mim a recordar aquela época da meninice em que a minha avó São me puxava para junto da lareira e me contava as histórias mais belas que algum dia pude ouvir.
– O tio Chedas ― explicava-me a minha saudosa avó ― vivia numa gruta do Algar, bem lá no meio da floresta…
            ― Numa gruta, avó?!
            ― Sim, numa gruta, imagina! Não digas a ninguém, mas contava-se cá em Vila Franca que ele tinha ajudado a matar o rei Dom Carlos e, por isso, decidiu esconder-se por aqui. Quem me contou isto foi a tua bisavó Ana, pois eu ainda era muito pequenina quando tudo aconteceu …
            ― A avó também já foi pequenina?!
            ― Sim, meu tontinho, já fui. Há muitos, muitos anos…
            ― Ó avó, os polícias nunca prenderam o tio Chedas?
            ― Parece-me que não. A minha mãe contava-me que ele viveu cá até morrer e foi sepultado no nosso cemitério.
            ― Mas ele estava sempre escondido na gruta?
            ― Sim, sempre na gruta. Apenas existia uma altura do ano em que ele se arriscava a sair do covil…
            ― Era a noite dos lobisomens, não era avó?! ― interrompia eu, de tão ávido que estava com a chegada do sempre surpreendente desenlace, que a minha avó dramatizava ainda mais com o enigmático olhar das videntes.
            ― Não! Era a noite de Natal. Os lobisomens ficarão para outra história, uuuuuu
            ― A noite de Natal? ― perguntava eu, enquanto me continuava a desfilar pela imaginação aquele som do uuuuuu… Até hoje, nunca conheci ninguém que imitasse o vazio do medo tão bem como a minha avó.
            O tio Chedas ― como a avó São lhe chamava ― usava uma longa barba branca e coxeava ligeiramente. Embora eu nunca tivesse realmente acreditado que ele ajudou a matar o rei em 1908, certo é que ainda hoje, lá na minha aldeia nativa, existem pessoas que me asseguram que ele viveu na gruta do Algar, sempre escondido, tendo apenas como companhia os coelhos que ia criando e que depois se compadecia de matar para comer.
            Recordava-me a minha avó que todas as madrugadas do dia 25 de Dezembro o tio Chedas abandonava as galerias subterrâneas e vinha sentar-se junto à fogueira que ainda agora se acende no adro da capela. Depois de aquecer os pés e as mãos, caminhava solitariamente pelas gélidas ruas da povoação, revisitando cada casa adormecida na memória.
            Lá na aldeia, as pessoas passaram a conhecer-lhe esse ritual e habituaram-se a aguardar silenciosamente a sua passagem, espreitando-o por entre as frinchas das pedras. Nessa época de tanta fome, não havia iluminação, quer nas casas, quer nas ruas, e, por isso, apenas lhe pressentiam a sombra, cada vez mais contorcida e derreada pela caudalosa passagem dos invernos.
            Alguns conterrâneos, talvez porque a consciência lhes pesasse mais naquela altura do ano, começaram a deixar-lhe, pendurado nas portas, um saco com o pouco que lhes sobrara da ceia de Natal. A minha bisavó, que era forneira de profissão, guardava-lhe sempre uma côdea de pão de milho para que depois, algures pela madrugada dentro, ele pudesse fazer a consoada ao lado dos coelhos que criava, a única família que ainda lhe restava.
            Ao longo da meninice, ano após ano, fui ouvindo cada vez com maior espanto a fabulosa narrativa do tio Chedas e da sua enigmática gruta (ou mina, como tantas vezes ouvi dizer) no Algar. Ainda hoje, decorridas que são mais de três décadas, me arrepia só de pensar na imagem deste homem solitário a caminhar pelas ruas escuras da minha aldeia nativa, em busca do calor do Natal, para depois se refugiar nas intermináveis profundezas. E logo nessa noite tão transcendente, ao longo da qual todas as feridas se avivam e se revisitam intensamente alguns dos esqueletos que trazemos escondidos na alma…

            Este conto é dedicado a todos os anónimos da História que continuam a ajudar os seus semelhantes a encontrar a estrela de Natal, mesmo nas circunstâncias mais dramáticas desse profundo mistério cósmico ao qual damos o nome de vida.
O brilho de Natal também faz parte dessas ilusões sem as quais a vida se tornaria insuportável. E escrever este conto é talvez a forma mais sentida que eu ainda possuo para desejar a todos os leitores um Santo e Feliz Natal.
Renato Nunes (renato80rd8918@gmail.com)      

domingo, 1 de dezembro de 2019

Comentário artigo de opinião "Chuva precisa-se" Jornal Expresso

Todos estamos fartos de chuva no entanto ainda estamos muito longe de estar descansados. O Sul do país ainda se encontra em seca severa. O que mais me preocupa é que chove pontualmente com mais intensidade e a norte da Europa os quantitativos de precipitação estão a aumentar o que é reflexo do aumento da temperatura média anual nas latitude. mais elevadas, uma causa evidente das alterações climáticas.
Cada vez mais temos de ter em linha de conta a poupança de água

Chuva, precisa-se- Artigo de opinião Jornal Expresso

Eis o primeiro número: em apenas um ano, Valter Luz perdeu 80% da sua produção. O olival que detém no nordeste do Algarve está a morrer. A seca que tem atacado o sul do país não o surpreende, mas revolta-o. “Neste momento, os lençóis freáticos não têm água. Toda a gente sabia do problema, não foram tomadas medidas, e agora estamos nesta situação.” O seu olival é um exemplo de agricultura de regadio, cada vez mais prejudicada pela falta de precipitação. E mesmo quando esta existe, é insuficiente, diz Valter: “o que tem chovido agora não dá para encher um copo de água”. O presente ano hidrológico — quando as reservas de água estão no mínimo com as chuvas prestes a começar — iniciou-se a 1 de outubro, mas até agora ainda não deu de si. No Algarve quase não chove há mais de sete meses. “Nos últimos dias já choveu qualquer coisa, e até pode ser que na agricultura de sequeiro haja uma recuperação, mas continua a ser bastante abaixo dos valores médios para esta altura do ano”, explica ao Expresso José Tomás, da Direção Regional de Agricultura e Pescas do Algarve.
O Índice PDSI do Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA), referente a outubro, diz que “houve um desagravamento” da seca no norte e no centro do país, mas a sul do Tejo a situação é preocupante. No total, 93,2% do território português estão em seca — 33,5% em seca ligeira, 31,9% severa, 4,3% extrema. Os concelhos de Castro Marim e Alcoutim — onde está a empresa agrícola de Valter — foram os mais atingidos. “Esta crise é quase tão severa como a grande seca de 2005”, garante José Tomás. Um outro indicador do IPMA, o índice de água no solo, mostra vários pontos algarvios e alentejanos em ponto de emurchecimento permanente, ou seja, com menos de 1% de água no solo. Pedro Monteiro, presidente da Direção Regional, acrescenta que “além do baixo nível de armazenamento das barragens e dos aquíferos [recursos hídricos subterrâneos], observamos que em alguns casos o nível de água no solo já está abaixo do necessário para as próprias plantas e vegetação natural.” Ou seja: há zonas do Algarve onde nem as raízes das plantas conseguem captar a água de que precisam. Enquanto vê a sua subsistência extinguir-se, Valter desabafa: “Só vamos começar a preocupar-nos com a água quando abrirmos a torneira e ela faltar.” O problema não é só português, e a recente polémica envolvendo Espanha e os caudais do rio Tejo prova-o: devido à falta de chuva, o país vizinho pode invocar condições de exceção para não enviar para Portugal os valores mínimos de água acordados. Aliás, uma previsão recente diz que a Península Ibérica deverá ver a sua precipitação diminuir entre 20% a 40% até 2100.
No relatório “Vulnerabilidade de Portugal à Seca e Escassez de Água”, publicado em outubro pela Associação Natureza Portugal em parceria com a World Wide Fund for Nature, é apontado que “desde a década de 70 têm sido cada vez mais frequentes anos com precipitação inferior à média, e cada vez mais raros anos muito chuvosos.” No último ano, mostra o IPMA, em apenas dois meses os valores de precipitação em Portugal foram acima do valor médio: novembro 2018 e abril 2019. Porém, alargando a análise a todo a Europa, a Agência Europeia do Ambiente conclui a existência de duas realidades distintas: durante o verão, a precipitação média diminui bastante na última década na maior parte do sul da Europa (mais de 20 mm), mas aumentou mais de 18 mm no mesmo período em muitos locais do norte do continente. Dados do Sistema de Informação de Recursos Hídricos mostram que de janeiro a setembro último, Portugal continental teve níveis de precipitação de 17 mm, quando a média é de 41,8 mm. Há dez anos, esse valor era ainda mais seco (7,9 mm).
Cá, a falta de chuva representa, historicamente, um problema caro. Afonso do Ó, o autor do relatório da ANP, garante ao Expresso que os prejuízos económicos e ambientais da seca atual “deverão ser ainda mais elevados” do que os registados em 2004-06, quando só o sector agrícola perdeu €130 milhões, toda a produção privada sofreu um impacto de €519 milhões, e €234 milhões evaporaram-se no turismo, na economia, e a garantir abastecimento urbano. Já em 1999, ano também severo, a escassez de água nas várias bacias hidrográficas do país fez o país perder €1,432 milhões só no continente — 22% do produto agrícola bruto. Este ano, especifica o relatório, perderam-se rendimentos nas culturas de outono/inverno (como o trigo e a cevada), pastagens para alimentar o gado, e ocorreu “uma quebra de 10% da área prevista para cultivo de arroz”.
O MUNDO A SECAR
No início do relatório de Afonso do Ó estão presentes alguns dados importantes a nível global: por exemplo, a estimativa de que todos os anos morrem 20 mil pessoas devido ao impacto das secas, e 50 milhões sofrem as suas consequências diretas. Pode estar a cair mais chuva sobre o norte da Europa, mas os períodos de seca — que são “naturais”, aponta Afonso do Ó — estão a evoluir para um problema estrutural de escassez de água um pouco por todo o mundo. Em agosto último, o “The New York Times” alertou para a “ameaça do dia zero” — o dia em que, como avisava Valter, “a torneira deixará de deitar água”, e que estará próximo para um quarto da população mundial. São Paulo e a Cidade do Cabo são algumas das cidades que sofreram recentemente crises de falta de água; a Cidade do México está no fim das suas reservas subterrâneas, e Daca, no Bangladesh, já tem de ir buscar água a mais de 100 metros de profundidade. Países tão diferentes como as Honduras e o Paquistão partilham a mesma fonte de dois problemas distintos: enquanto que no primeiro os incentivos à agricultura existem mas esmorecem perante “o corredor da seca”, no segundo o sector precisa de ser domado para travar o uso desregulado de água.

O mesmo artigo do “The New York Times” sinaliza que já há 255 milhões de pessoas no mundo a viver em stresse hídrico extremamente elevado; até 2030, serão 470 milhões. O portal Aqueduct, pertencente ao World Resources Institute, ordenou os países de acordo com a sua utilização e gestão da água em várias frentes, e concluiu que Qatar, Israel e Líbano são os países que pior o fazem. O top 10 é dominado por países africanos; Portugal surge na posição 41, mas é logo o 7º entre países europeus.
DANÇAS DA CHUVA?
As únicas técnicas conhecidas para forçar a precipitação são a dança da chuva, rituais que algumas comunidades nativo americanas (e não só) praticam quando o desespero da seca mais aperta. Infelizmente, não há dados científicos que comprovam a sua eficácia, tornando-se necessário contornar o problema com outros métodos. Em Portugal, tanto Valter Luz como Pedro Monteiro concordam que, além da sensibilização pública para a importância de poupar água, é necessário mudar a agricultura, com “sistemas de rega mais eficientes e alterações no perímetro agrícola”, aponta Pedro Monteiro. Elenca ainda o tratamento de águas residuais, as recargas artificiais dos aquíferos e a transformação da água do mar em água potável através de centrais de dessalinização (Portugal tem uma em Porto Santo, na Madeira). No entanto, as soluções perfeitas parecem escassear tanto quanto a água. No Guatemala, já é possível recolher água de nevoeiro, mas a energia necessária para que este sistema funciona torna-o pouco viável. E a dessalinização, apesar de ser agora mais barata, tem um grande impacto ambiental, contribuindo para o aquecimento global e prejudicando a vida marinha.
E claro, existem as barragens. Valter Luz dá o exemplo da barragem da Foupana, exigida por agricultores e criadores de gado e a construir em Castro Marim, mas cujo projeto foi abortado pelo Governo. Para o agricultor, só alguém que não conhece o terreno é que pode dizer que há barragens a mais em Portugal. Mas a ciência diz o contrário. “Há de facto barragens a mais no mundo ocidental. Têm um impacto ecológico enorme, destroem praticamente os rios, não há hipótese de haver vida num rio que é como uma veia toda compartimentada”, garante Afonso do Ó. Embora reconheça que as barragens foram importantes para garantir os abastecimentos mínimos, diz que no futuro tem de haver articulação entre aquíferos e albufeiras, uso de águas residuais, e dessalinização “só em casos em que não há alternativa”. Adianta que se não chover este inverno, o Algarve terá de ser abastecido de emergência, mas não culpa a rega dos campos de golfe [consomem 7% da água na região] por isso: “cientificamente é uma falsa questão”.
Pelo contrário, lamenta a escassez de progressos políticos e medidas concretas desde a seca de 2005-06. “Na sequência de uma seca há sempre pequenos avanços, mas mal volta a chover as coisas ficam esquecidas. Não passou a haver uma gestão preventiva do risco de seca, não se diversificaram as origens da água, nem para abastecimento urbano nem para regadios. O Plano Nacional da Água [criado em 2002 e atualizado pela última vez em 2016] é demasiado genérico e teórico, não chega a esse nível de detalhe.” Apesar de tudo, Afonso do Ó sublinha que “não há uma tendência clara de redução da precipitação.” Mesmo com os efeitos das alterações climáticas, depois da seca podem vir dois ou três anos muitíssimo chuvosos. Por isso, “a responsabilidade é sempre nossa: temos de aprender a lidar com o consumo de água que fazemos.”
Artigo de opinião: Tiago Soares 
Jornal Expresso- 30 Novembro de2019

sábado, 16 de novembro de 2019

A minha visão da Educação em Portugal.


Na sociedade atual assusta-me a impessoalidade e a falta de respeito que se nutre por quem trabalha. No caso dos docentes há um enorme desrespeito pela profissão, começando no Ministério da Educação e acabando nos alunos.

Tudo começa na exigência do Ministério que nos obriga a cumprir programas muito extensos com poucas horas para os concretizar. Na minha opinião é excessiva a carga horário escolar dos alunos, que em muitos casos ainda têm de cumprir um sem número de horas de explicações em horário extra-curriculares em idades cada vez mais precoces.

O que está a fazer o Ministério da Educação é complicar o que já de si não é simples. A escola tem um papel muito importante para preparar um aluno para a vida, ensinando-lhe dando-lhe algumas ferramentas para que estes enfrentem uma sociedade cada vez mais complexa e menos inclusiva. Os alunos não gostam das aulas, nem lhe dão o devido valor. Eu nesta semana disse aos alunos que o papel da escola não é só ensinar mas também o socializar e conviver com os professor e colegas, pois apenas dessa forma podemos evoluir e crescer como seres humanos.

É com pena que observo que o caminho seguido pelo Ministério da Educação para solucionar a falta de professores nas escolas seja dar poder aos Municípios e permitir que sejam habilitados docentes através da realização de formações de muito curta duração. Caso isso seja verdade e se concretize, temo pela minha profissão e pelo meu emprego. Toda esta contingência  me deixa revoltado por todo o esforço e sacrifício que tenho feito em prol da educação em Portugal seja em vão.

O facilitismo é um problema na educação como na vida. Hoje ser um bom pai ou mãe não é tarefa fácil . Após um dia de trabalho é obrigatório os pais  terem  tempo para acompanhar o seu filho e perceber como correu o seu dia na escola, observar os seus cadernos diários e a caderneta. Esse trabalho inerente à função de pai é muitas vezes descurado, preferindo-se dar liberdade aos filhos acabando por perder o controlo sobre eles no futuro, pedindo em muitos casos ajuda à escola e aos professores. A educação dos filhos não tem qualquer relação com a capacidade financeira das famílias, pois na minha opinião os pais devem ter Amor pelos filhos, perceber  e respeitar a sua função enquanto pais.

O Ministério da Educação veio na pessoa do Ministro da Educação anunciar que até ao nono ano não deve haver retenções, e caso isso aconteça tem de haver  uma boa justificação para essa ocorrência. Não há pessoa que lhe custe mais chumbar um aluno que a um professor. A exigência e o rigor devem começar na escola, pois esta tem um papel muito importante, tanto na preparação dos alunos para o  mercado de trabalho como para a vida. Com estas novas medidas o futuro deve ser mais difícil para os professores e para os alunos que querem realmente aprender, pois os alunos que não querem aprender vão criar obstáculos cada vez com maior gravidade e as formas que os professores têm para se defender são cada vez menores. Costuma-se dizer que se não os consegues vencer junta-te a eles. Sinceramente temo pelos melhores alunos e pelos  professores que sem formas de inverte a situação  enveredem pelo caminho mais fácil, ou seja o que o Ministério da Educação pretende. Entristece-me perceber que há cada vez menos investimentos na Educação e a qualidade do ensino esteja a decrescer. Quem perde, todos os Portugueses.

quinta-feira, 26 de setembro de 2019

Comentário Artigo de Opinião de Óscar Afonso


O artigo intitulado por Óscar Afonso "Pobre Interior" chamou-me a atenção pelo titulo e li-o atentamente.

Revejo na integra no que ele escreveu. Apenas pretendia que ele e outras pessoas com influência política viessem ao interior, falassem com as pessoas e ganhassem credibilidade perante elas.
Nós pagamos impostos mas não  temos as mesmas facilidades de nos deslocarmos e em muitos casos fecham-nos serviços, conquistados tão arduamente no passado, como os CTT, Centro de Saúde ou Tribunais. Todos os serviços perdidos pela escassa utilização SÃO DE VITAL IMPORTÂNCIA para esta população já tão carenciada.
Nós somos um país tão pequeno, não podemos caminhar a várias velocidade. Há vários problemas no litoral e nas grandes cidades mas existem porque há um excesso de população e as pessoas não têm alternativa e não são aliciadas com incentivos, para se fixarem no interior e com o seu dinamismo, atraírem  gerações mais jovens. É urgente trazer mais vida a regiões que precisam mesmo dela para não morrerem e deixarem de ter voz.

Eu vivo no interior e percebo as enormes dificuldades que os mais jovens têm dificuldades em fixar-se cá. Trabalho numa escola e custa-me perceber que só há uma turma por ano desde o 5o ao 9º ano de escolaridade. Os serviços vão fechando à medida que as vozes criticas vão perdendo força em consequência da idade e da percepção da inutilidade das suas lutas. Há um longo trabalho e caminho a percorrer, Hoje as autarquias e o Governo deveriam cativar os mais jovens para lá permanecerem, valorizando-os e acarinhando-os. Considero um retrocesso a perda de serviços como os CTT, tribunais ou centro de saúde.... Bolas afinal ainda há gente a morar no interior!
Relembro novamente que o EQUILIBRIO deve ser feito para o bem do país.
Não se lembrem só do interior quando precisam ou seja na época das eleições. Por favor passem das palavras aos atos.

"Pobre interior" -Artigo de Opinião Jornal Expresso

Em Portugal, a distribuição geográfica da atividade económica, social e cultural entre o litoral e o interior é, como todos sabemos, demasiadamente assimétrica e, consequentemente, o mesmo acontece com a distribuição da população. O litoral é jovem, urbano, povoado, dinâmico e ativo. Pelo contrário, o interior é envelhecido, rural, desertificado, estagnado, deprimido e associado a uma milenar vida de miséria.
Porque as pessoas vão para onde há “economia”, a emigração para os centros urbanos do litoral tem sido a tendência histórica. A escassez de população nas zonas de fronteira com Espanha começou com a conflitualidade histórica entre os Reinos de Portugal e de Castela-Leão: sem população, infraestruturas e oportunidades de emprego gerou-se uma barreira entre Reinos. Posteriormente, a orientação marítima imposta pelos descobrimentos acentuou o atraso do interior. Desde os anos 30 do século passado, mas sobretudo no pós-II Guerra Mundial, com a globalização e o aumento da concorrência, aumentou a pressão competitiva sobre as empresas pelo que, sem ajuda pública, passaram a concentrar-se no litoral. A tendência agravou-se com a adesão à EFTA nos anos 60 e a adesão à CEE/UE nos anos 80 do século passado. O reforço da atraso do interior foi sempre potenciado pelo poder político com maior investimento público em infraestruturas, serviços e criação de emprego no litoral, onde há eleitores.
Em suma, as migrações que têm assolado o interior à procura de melhores condições de empregabilidade no litoral (e no estrangeiro) conduziram ao progressivo esvaziamento demográfico e empresarial. Apesar de todos os constrangimentos que historicamente se têm imposto ao interior, representa – e representará – cerca de 70% do território nacional e, atualmente, já menos de 30% da população.
Como a generalidade dos governos anteriores, porque fica sempre bem dizer que há que apostar no “pobre” interior, também o atual manifestou “desejo” de contribuir para a diminuição do atraso. Como de todas as outras vezes, também na presente legislatura tal não passou de um “desejo”. O mais admirável é que o processo continua a repetir-se e os políticos continuam a apostar na memória curta dos eleitores, continuando a ficar bem – e, provavelmente, a “render” votos – manifestar “desejo” de apoiar o “desgraçado” interior. Assim, em pré-campanha, o primeiro-ministro deu-se ao luxo de “perder” uma semana em viajem mais ou menos turística pelo interior para, com a afetuosa comunicação social por perto, dar conta do novo futuro “desejo”. Curiosamente, com a mesma intensidade que se diz apostar no interior, vão-se encerrando serviços (veja-se o encerramento de diversos balcões da CGD ou de estações dos CTT), pelo que as populações esquecidas do interior terão de satisfazer as suas necessidades em centros urbanos mais pró litoral.
É verdade que o avanço nas tecnologias de informação – televisão, internet e telemóveis – pode atenuar o isolamento de algumas pessoas esquecidas do interior, mas não favorece a fixação no interior e, portanto, não promove a inclusão e a coesão social e territorial. Também as melhorias nas vias de comunicação – estradas e autoestradas – podem atenuar o isolamento, mas não promoveram o desenvolvimento e a coesão, acabando sobretudo por permitir maior mobilidade entre regiões. Em particular, muita gente, como eu, que saiu para o litoral pode agora, mais facilmente, passar fins de semana ou férias na terra natal do interior.
O que se espera dos governos é que sejam capazes de corrigir as falhas de mercado, pelo que devem intervir no sentido de promover / reestruturar a atividade económica no interior. Se assim não for, como não tem sido, entra-se, como tem acontecido, num círculo vicioso. A “economia” foi deixando de ser suficiente para melhorar as condições de vida, passando a faltar empregos e equipamentos básicos. À medida que a população do interior foi diminuindo, menos “economia” foi sendo precisa e muitas empresas foram fechando: o círculo vicioso da pobreza e da desertificação foi-se autoalimentando “a olhos vistos”.
Face ao litoral, permanece uma enorme desigualdade de oportunidades. Desde logo pela inferior qualidade dos serviços fornecidos pelo Estado nas áreas da cultura, educação, justiça e saúde. Permite-se que a elite dirigente e técnica de um sem número de organismos com funções de regulação, controlo e fiscalização, cuja atividade produtiva se concentra no interior, desempenhe as suas funções no litoral. Refira-se a título de exemplo o Instituto da Vinha e do Vinho, o Instituto dos Vinhos do Porto e Douro, a Administração e todos os serviços da EDP, Iberdrola e outras.
Consideram as barragens como “investimentos de desenvolvimento local” (embora para alguns até já sejam um problema porque, pasme-se, contribuem, por evaporação, para a perda de água!), mas apenas criam o posto de trabalho do vigilante durante a sua fase de exploração, pois o “real” emprego concentra-se no litoral. Aliás, o que o Estado tem feito com estes empreendimentos é nacionalizar, ao abrigo do interesse nacional, os meios de produção de milhares de anónimos que tinham aí a sua independência económica e simultaneamente garantida a liberdade, para depois concessionar a uma entidade privada a sua exploração, cujos detentores de capital jamais contribuíram para a melhoria da massa crítica social destes lugares. O mesmo vai obviamente passar-se com a exploração de lítio que não passará de mais um recurso sugado do interior.
Resumindo, o investimento que o Estado tem promovido no interior, em vez de criar efeito de replicação/imitação, concentra ainda mais o emprego e a riqueza no litoral, alargando o fosso entre as regiões. Há apenas investimentos pontuais, intempestivos, sem qualquer possibilidade de adensamento do tecido económico e social. Investe no turismo, mas corta serviços de saúde. Investe na educação, mas cria organismos com capacidade de absorção de recursos humanos de elevada formação no litoral. Despeja milhões no combate aos incêndios rurais, mas os beneficiários estão no litoral. Não existe, de facto, uma política integrada de aumento de competitividade do território do interior, para que os recursos dos residentes lhes permita aceder aos bens e serviços que a sociedade fornece. Resta a migração que tem sido e continua a ser a sina de transmontanos, beirões, alentejanos e de parte de minhotos.
Desejando agora promover a coesão e o desenvolvimento social e territorial, se não houvesse hipocrisia, o governo concederia de imediato incentivos generosos, compensando os custos da interioridade. O montante adequado seria certamente menor que o despendido com a recente ajuda à banca! Seguindo a máxima “não dê o peixe, ensine a pescar”, a forma de distribuição desses incentivos requer a formulação de estratégias que tornem o interior competitivo, o que significa que é necessário saber identificar as vantagens competitivas que devem ser preservadas. Com ajuda pública, o interior, desde logo pela mão de autarcas competentes, deve aproveitar capacidades instaladas e características que o diferenciam, potenciando-as e traçando uma estratégia que fortaleça o aproveitamento económico das oportunidades. O interior tem recursos mais ou menos abundantes que devem ser valorizados e aproveitados a seu favor – e nunca sugados –, desde o património cultural (monumental e imaterial) aos espaços naturais, desde produtos agrícolas singulares aos recursos do subsolo. Em algumas indústrias tem até tradição. É assim que se deve pensar o desenvolvimento.
O interior deve finalmente beneficiar do princípio da solidariedade interterritorial, como Portugal na totalidade (e o litoral, em particular) tem beneficiado dos países mais ricos da União Europeia. Isso faz-se, por exemplo, invertendo a lógica de desqualificação dos serviços e infra-estruturas existentes. Faz-se também por via do reforço de serviços e da atratividade de alguns centros urbanos do interior, estrategicamente posicionados. Faz-se, ainda, olhando para os recursos e capacidades endógenas e pensando o respetivo desenvolvimento a partir do aproveitamento desses recursos e dessas competências.
Portugal será forte se tiver também um interior forte!
Artigo de opinião Jornal Expresso de 26 de Setembro de 2019
Óscar Afonso Presidente do Observatório de Economia e Gestão de Fraude e docente na FEP

quinta-feira, 15 de agosto de 2019

As Areias do Imperado uma trilogia Moçambicana Mulheres das Cinzas (Volume I)


O primeiro volume de Areias do Imperador, intitulado por Mia Couto "Mulheres das Cinzas".
Optei por me afastar da inúmera informação que existe na internet sobre o primeiro volume desta trilogia, para dar na íntegra o meu cunho pessoal ao livro que acabei agora de ler.
Mulheres das cinnza é um livro que retrata a conquista de Gaza (região localizada a Sul de Moçambique)  por Mouzinho de Alburque no final do século  XIX, região governada pelo Imperador Ngungunhane que liderava a força Vátua que se opunha à presença portuguesa em Moçambique.







O início da trilogia gira em torno de uma aldeia com o nome fictício assim como as suas personagens

A coroa Portuguesa com uma economia frágil não conseguia fazer face à defesa de um país tão extenso com é Moçambique e a região de Gaza constituída por inúmeros povoados foi conquistada pelo imperador de Gaza (Ngungunhane) que se aproveitou das fraqueza da coroa portuguesa.

As personagens da aldeia de Nkokolani são o avô Tsangatelo, o pai Katami, a mãe Chilkazi e os filhos Iami, Dubula e Mwantu são uma família abastada quando comparamos com os restantes habitantes da aldeia.

Tsangatelo e Katami eram pessoas muito respeitadas na aldeia com uma clara ligação à coroa portuguesa. Os membros mais novos da família, apresentavam características muito diferentes, pois enquanto  Dubula  era rebelde e lutava a favor do imperador, Mwantu por ter uma personalidade mais frágil optou por defender a coroa portuguesa. Iami a mais jovem da família apresentava uma estreita ligação à família e aos hábitos e costumes da aldeia.
Tsangatelo era conhecido por ser o mensageiro e comandante de um conjunto de homens no transporte de correspondência, marfim pratas e outros viveres que lhes eram solicitados. Acontece que numa dessas viagens Tsangatelo demorou um pouco mais do que o previsto e sua mulher não conseguiu pagar à coroa portuguesa os impostos devidos. Como consequência do incumprimento  o Governo Português levou a esposa de Tsangatelo para pagar a dívida e apesar do seu regresso e do pagamento da dívida esta nunca mais foi vista.

De uma forma intempestiva Tsangatelo partiu para a África do Sul em direção às minas de diamantes, contrariando a opinião da família que considerava o trabalho muito duro para um homem de 70 anos. Tsangatelo nunca mais foi visto na aldeia após a sua partida para a África do Sul sendo dado como morto.

Katami trabalhava na agricultura e era perito na realização de tarimbas um instrumento africano. Certo dia a coroa portuguesa solicitou a Katami que este transportasse armas para os portugueses que se encontravam em Lourenço Marques, tarefa essa que nunca foi bem aceite por sua mulher Chilkazi que considerava que essas armas iriam destruir a sua aldeia.

Portugal para o domínio das suas colónias enviava governadores que eram pessoas instruídas que eram contra as ideologias vigente e como punição, eram condenados a ir para as colónias fazer a ligação com as comunidades locais e dar-lhes a entender as mais valias da presença do Governo Português em Moçambique. Neste caso foram Sardinha, Fragata e Germano de Melo. Sardinha teve um final trágico dada a afinidade que ganhou com as comunidades locais perdeu as ligações a Portugal e a sua permanência em Moçambique já estava a ser prejudicial a Portugal. Sardinha percebeu do descontentamento do governo e devido ao isolamento e pela situação frágil em que se encontrava suicidou-se com a espingarda que trazia consigo.

A personagem mais retratada na História através de inúmeras cartas foi  Germano de Melo que comunica ao General Português que comanda as tropas em Lourenço Marques a situação de fragilidade que vivia e a importância da escrita para ajudar a passar o tempo a que estava condenado. Germano de Melo manteve uma ligação com os habitantes da aldeia de  Nkokolani sendo Mwantu o seu guarda costa e Iami pelo seu português fluente, sua cúmplice, enfermeira e a mulher que lhes satisfez os seus desejos. Germano de Melo dada a cumplicidade que ganhou com  Iami chegou a prometer-lhe algo que se veio a revelar fatal, pois disse-lhe que a Coroa Portuguesa defendia a aldeia perante o Imperador o que não veio a acontecer. Os vátuas e outras forças rebeldes invadiram a aldeia queimaram as casas,colheitas agrícolas, violaram e mataram mulheres e homens sem que a coroa portuguesa não fizesse qualquer oposição.
Iami ficou muito desalentada e revoltada com Germano de Melo e com os portugueses por este não terem agido perante o ataque dos vátuas. Desorientada deslocou-se perante um amontoado de mortos à procura do seu irmão Dubula que veio posteriormente a confirmar a sua morte.
A mãe de Dubula em consequência do ocorrido ao filho e à sua aldeia decide suicidar-se enforcando-se numa árvore.
O 1º volume desta trilogia termina com a vingança dos locais perante o português Germano de Melo.
Germano de Melo numa situação de fragilidade e perante a revolta dos locais tenta suicidar-se. Iami percebendo o ato irrefletido do governador e sem querer disparou uma bala que ocasionalmente lhe acertou na mão ferindo-o gravemente.. Em consequência da falta de médicos Iami e Bianca uma viajante Italiana que estava a fazer companhia ao Governador e que veio a Moçambique à procura de Mouzinho de Albuquerque, foram de barco à procura do único médico que existia na aldeia que podia salvar Germano Melo.
As últimas páginas do primeiro volume retratam a chegada de Mouzinho de Albuquerque a Moçambique, e mais tarde veio a ter um papel importante no fim do Império de Gaza, factos que suponho vão ser narrados nos próximos dois livros


segunda-feira, 15 de julho de 2019

Livro de Poesia "Pedra após pedra"- Fernando Alva



Livro escrito por Renato Nunes que adquiriu como heterónimo Fernando Alva.
Comprem o livro e se puderem vão à sua apresentação no próximo dia 20 de Julho em Santa Iria da Azoia.
Fica o convite!!!

domingo, 23 de junho de 2019

Lítio, a perigosa promessa do “ouro branco”


O escritor beirão Aquilino Ribeiro (1885-1963) publicou, durante a II Guerra Mundial, um notável romance intitulado Volfrâmio, inspirado na exploração do subsolo português pela Alemanha e pelos Ingleses, em busca do volfrâmio, importante matéria-
-prima utilizada, por exemplo, para fortalecer as cápsulas das granadas e para conferir ao “aço uma maior resistência ao calor”: indispensável, portanto, “em máquinas como em armas” (António Louçã – Hitler e Salazar. Comércio em tempos de guerra, 1940-
-1944
, ps. 8 e 43).  
No livro em causa ficam bem evidentes as consequências dramáticas da ávida busca pelo “ouro negro”: abandono e destruição dos campos agrícolas; desenvolvimento do contrabando e da especulação; perseguição do lucro (pequenas “fortunas”), sem olhar a meios, que logo depois se dissipava para dar a aparência de novo-rico. Cobiça a sobrepor-se a todos os valores humanistas. Numa palavra: morte. Consequências que, de resto, se estendem até aos dias de hoje, como bem sabem os habitantes das zonas circundantes das minas, agora tantas vezes confiadas ao abandono ou até mesmo convertidas em espaços museológicos. Isto para já não falar, por exemplo, na proveniência do ouro utilizado pelos alemães para pagar o volfrâmio português. Ouro esse tantas vezes espoliado aos judeus que acabariam por ser mortos nos campos de concentração nazis…   
Em 1958, o aludido romancista beirão editou outro notável romance intitulado Quando os lobos uivam, a respeito da apropriação dos baldios pelo Estado Novo, tendo em vista a sua florestação coerciva. Esta questão gerou vários confrontos entre as populações locais e os Serviços Florestais, incumbidos de aplicar as medidas previstas pelo governo.
Ora, os dois livros anteriormente referidos têm uma actualidade surpreendente, na medida em que o Governo português tem vindo a permitir que diversas multinacionais iniciem um conjunto de prospecções em território nacional, tendo em vista a possível exploração do lítio (v.g. Aviso n.º 6518/2019, publicado em Diário da República, datado de 9/4). A área abrangida pelas prospecções – ainda que neste momento mal conhecida – é extremamente significativa, integrando, por exemplo, as Terras do Barroso (a norte), mas também uma vasta região do centro do país.
Entre outros aspectos, parece evidente que o recente desenvolvimento dos carros eléctricos tem vindo a gerar uma maior necessidade de matéria-prima para a produção de baterias. Daí esta desenfreada corrida ao lítio, apresentada por alguns magnatas como uma oportunidade para o interior profundo de Portugal se desenvolver e enriquecer.
Não é esta, porém, a minha opinião e digo isto com toda a carga ideológica que implica este género de tomada de posições. Os potenciais riscos associados à exploração do subsolo em busca do lítio são demasiado elevados para justificar alguns dividendos que meia dúzia de poderosos e outros tantos mangas-de-alpaca poderão obter. A extracção de rochas provocará irreversíveis impactos paisagísticos: crateras enormes, contaminação dos recursos hídricos, ruído, poluição do ar (partículas em suspensão) e, consequentemente, doenças graves, desde logo, do foro respiratório. Isto significará comprometer o futuro das novas gerações e o desenvolvimento sustentável de áreas significativas do país.
É, por conseguinte, fundamental quebrar este silêncio político que estrategicamente tem vindo a enredar esta matéria. É fundamental perguntar onde estão os estudos de impacto ambiental que deveriam ter, obrigatoriamente, antecedido estas prospecções. É fundamental perguntar se as populações locais estão a ser ouvidas e, em caso afirmativo, se foram (e são) devidamente informadas a respeito do que verdadeiramente está em causa.
Os dramáticos incêndios que afectaram o país, em 2017, trouxeram um conjunto de novas promessas políticas, vindas dos mais diferentes quadrantes. A verdade dos factos, porém, é que, apesar da demagogia reinante, as populações do interior foram e continuam a ser votadas a um tremendo abandono por parte do poder central. O silêncio que envolve esta negociata (é isto que realmente está em causa) demonstra-o com todas as letras.
Escreveu Miguel Torga, em 1942, no volume II do seu Diário: “Devo à paisagem as poucas alegrias que tive no mundo” (1943, p. 140). A avidez das multinacionais em busca do novo “ouro branco” pode transformar o que ainda sobra do santuário em que vivemos num autêntico inferno. A apropriação dos baldios e a expropriação de territórios, em nome do suposto interesse nacional, será apenas o início desse dramático processo silenciosamente consumado.
É escusado, pouco ou nada aprendemos com a História. Ou os cidadãos se mobilizam ou estaremos condenados a destruir e deixar destruir quase tudo o que temos de melhor. Aos nossos filhos e netos deixaremos as cinzas de tudo o que permitimos destruir, que mais não seja com a cobardia do nosso silêncio.     
Renato Nunes (renato80rd8918@gmail.com)

domingo, 9 de junho de 2019

O sofrimento nos olhos deles (Reportagem Jornal Expresso)




Este fim de semana li no expresso uma reportagem que retrata a triste realidade do maior campo de refugiados do Mundo, no Bangladesh. Optei apesar da sua extensão por expor a reportagem na integra.

"A fuga de mais de 740 mil pessoas da minoria étnica muçulmana rohingya, de Myanmar, fez com que nascesse no sul do Bangladesh o maior campo de refugiados do mundo. Em apenas três meses. São hoje 1,2 milhões de pessoas dependentes de assistência humanitária

Há nos olhos raiados de Jamila uma tristeza profunda. “Quando me lembro da situação em Myanmar quase choro.” Pausa.
As frases chegam devagar e sem força. Saem dos seus olhos mais palavras do que as que a boca carrega. Não precisaria de falar para que se entendesse a dureza impregnada nos seus 50 anos. “Incêndios, pessoas chacinadas, casas queimadas, pessoas violadas.” Perdeu o marido. O irmão. A irmã. “Foram mortos pelos rakhines.”
Ela, as quatro filhas, os dois filhos e o neto conseguiram fugir. Embrenharam-se floresta dentro durante quatro dias até alcançarem a margem do rio Naf. “Sem comida. Sem água”, lembra sentada numa cadeira de plástico à entrada da casa de bambu que lhe serviu de teto no último ano e meio de vida. Para aqui chegar, ao Bangladesh, faltava-lhe ainda esperar cinco dias na margem do rio até que lhes fosse possível fazer a travessia de barco. Foram necessárias 12 horas para chegar, por fim, ao país. “Sofremos muito. Tínhamos fome. Tivemos de beber água salgada.”
Regressamos a agosto de 2017, quando uma vaga de violência explodiu no Estado de Rakhine, em Myanmar, entre militares birmaneses e a minoria muçulmana rohingya. Foi este conflito que fez com que nascesse na divisão de Chittagong, Bangladesh, o maior campo de refugiados do mundo. “Eram ondas e ondas de pessoas a chegar sem parar.” Um anos depois a memória de Sunee Singh, responsável pelo departamento político do Programa Alimentar Mundial (PAM), continua bem fresca. “Chovia e eles estavam completamente molhados. Todos choravam. Fiquei chocada e pensei que aquele era um momento que só vemos nos filmes. Não tínhamos comida para todos. Em 2016 tivemos um pequeno influxo de cerca de 75 mil pessoas. Estávamos à espera de algo semelhante ou um pouco mais.” Chegaram mais de 745 mil pessoas em três meses.
Terrível poderá não ser palavra suficiente para descrever as histórias vividas pelos rohingya. Fatama Begum, 33 anos, foi violada por cinco homens. “Primeiro mataram o meu irmão. Depois atiraram-me para o lado e um rasgou-me as vestes, agarrou-me pela boca e manteve-me quieta. Espetou-me uma faca e manteve-a ali enquanto os homens me violaram.” Sobreviveu. A filha de Hassina, com um ano, não. Foi retirada dos braços da mãe e atirada viva para uma fogueira onde os corpos dos homens que haviam sido mortos eram queimados. Hassina, de 20 anos, e outras mulheres foram levadas depois até uma casa onde foram violadas, esfaqueadas e pontapeadas. A casa foi depois incendiada, mas ela acordou a tempo de fugir. As outras não.
De acordo com os Médicos sem Fronteiras e a Human Rights Watch (HRW ) mais de metade das vítimas de violação em tratamento nos campos têm menos de 18 anos, algumas menos de 10 anos. Não se sabe o número total de vítimas. Referem-se milhares. Só ao Fundo de População das Nações Unidas, UNFPA, foram reportados mais de 10 mil casos. O acesso a elas está vedado aos jornalistas, seguindo o protocolo internacional para que o trauma não seja repetidamente revivido. Apesar do apoio psicológico, 20% da população do campo ainda apresenta problemas do foro mental, segundo dados do ACNUR.“O estado em que chegaram era gravíssimo.”, recorda Manuel Pereira, coordenador de emergências da OIM em Cox Bazar. “Em termos de resposta humanitária, a pressão das pessoas a chegar não tem muitos precedentes.” 52% eram mulheres. Mais de meio milhão crianças. Durante o denominado estado de emergência, organizações governamentais e não-governamentais trabalharam em conjunto para dar resposta ao monstruoso influxo de pessoas: providenciar cuidados de saúde básicos, abrigo, alimentação e água, preparar o terreno para as chuvas fortes. “Foi uma resposta muito em cima do joelho para garantir que as pessoas tinham os mínimos.”, explica Pereira.
O MAIOR CAMPO DE REFUGIADOS DO MUNDO
Os rohingyas foram acampando entre Teknaf e Palong Khlai, dois territórios do Bangladesh separados por mais de 50 quilómetros e embrenhados no santuário de vida selvagem de Teknaf. A vegetação teve de ser destruída para que dos montes se fizesse casa para o maior
influxo de refugiados que o mundo presenciou na sua História. Aí nasceram 33 campos, adicionados aos refugiados que já se haviam instalado no local anteriormente a 2017, perfazendo um total de 909 mil rohingyas.

Mas os cálculos incluem ainda as comunidades afetadas pelo influxo, levando a que o número ultrapasse o milhão — 1,2 milhões de pessoas dependente de assistência humanitária. Os números catapultaram o Bangladesh para o topo mundial das crises humanitárias, atribuindo a este território o título de maior campo de refugiados do mundo.

Do topo de um dos montes em Kutupalong, a cerca de uma hora de Cox Bazar, seria fácil imaginar que a vida se havia aqui instalado há anos. O pó amarelo levado pelo vento quente e forte cobriu os plásticos que formam paredes e tetos em conjunto com o bambu. Os olhos perdem-se na imensidão dos campos.

Há pontes e escadarias feitas em bambu, estradas de tijolo, placas de localização, campos de futebol improvisados, centros de saúde e de distribuição de comida, escolas, mercados, barbeiros, pequenos cafés, muita construção que prepara os campos para a época das monções. Chamar-lhe cidade seria desajustado, dizer organizado é “demasiado forte”. Manuel Pereira prefere a palavra “estruturado”, um terreno gigante onde a vegetação começa a surgir e uma ou outra árvore se manteve hirta.
É necessário descer o monte para se entender as muitas dificuldades. O risco de cólera e de outras doenças infetocontagiosas permanece. Faltam ainda estradas, pontes, centros de alimentação e saúde em lugares estratégicos. Falta reconstruir e reforçar os abrigos, melhorar a iluminação, preparar os terrenos para as cheias, reflorestar. E falta aumentar o número de postos de abastecimentos de água, melhorar o escoamento de efluentes, com consequências no ambiente, na qualidade da água e na saúde. É um leque de trabalhos que conta com a participação dos refugiados.

COMBATER O TRÁFICO HUMANO
Descendo o monte até ao campo 4 entramos no Centro de Mulheres. Escondem-se os rostos entre os lenços. Um sorriso tímido aqui e ali. A cabeça voltada para o chão. Aqui não há homens. Ouve-se o barulho das muitas máquinas de costura vindo de uma das salas do centro, um refúgio da vida, um espaço que pretende dotar as raparigas de qualificações e oportunidades. Sunee Singh, do PAM, criou o primeiro programa mundial de resiliência para mulheres em campos de refugiados, em parceria com outros programas das Nações Unidas e o Governo do Bangladesh. “As mulheres foram as mais afetadas e percebi que, além do apoio psicológico, era necessário providenciar um acompanhamento especializado.” Aqui ensina-se a costurar, a fazer pintura de panos e a arranjar telemóveis. “Estamos a dar-lhes algo que elas nunca tiveram, algo que vai para lá da sobrevivência. Estamos a dar-lhes dignidade, a contribuir para a economia local e do campo.”

Num dos cantos, um pequeno grupo de mulheres junta-se em redor de uma mesa onde se acumulam peças de telemóveis antigos. Ummesalina, olhos presos ao chão, está a aprender a arranjar telemóveis. “Nós encarámos tantas adversidades até chegarmos à margem. Chovia e os montes foram tão difíceis. Aqui somos felizes.” A voz jovem treme por trás da burqa, mas não lhe falha. “Quando ouvi falar do serviço que estava a ser providenciado no Centro de Mulheres disse à minha mãe que era importante vir e ser uma mulher qualificada”, conta enquanto esconde o rosto e fala repetidamente do irmão e da irmã que ainda se encontram em Myanmar. “É muito importante ser educada, porque quando nos casarmos as nossas crianças serão também educadas”, acredita. Na sala ao lado, cheia de tecidos coloridos e antigas máquinas de costura pintadas com flores, as palavras de Khaleda demonstram já a transformação pessoal ocorrida nos últimos meses: “Ser educada permite-nos ser resilientes, ter autoconfiança, fazer parte das decisões da comunidade. Nós não sabíamos sequer escrever o nosso nome”, conta, escrevendo a sua assinatura num caderno, ar orgulhoso e letra vinda de mãos ainda pouco acostumadas ao peso da caneta.
É preciso mais meia hora de viagem para abandonar o grande complexo de Kutupalong-Balukhali onde vivem quase 750 mil pessoas, passar por campos de arroz e estradas em terra batida para chegar ao campo 22, onde o isolamento é visível e as condições de vida ainda mais precárias. As raparigas caminham uma hora para chegar ao Centro de Mulheres deste campo. Sentadas em fila, pedem mais, de olhar determinado. Mais centros, mais máquinas. Ao lado das instalações, Laila, viúva e mãe de três filhos, mostra-nos embevecida a sua horta, fruto das sementes dadas pelo programa. É um quadrado de terra que lhe alimenta a família e lhe gera dinheiro no bolso. Cerca de cinco euros que lhe transformam a vida.

Existem 226 mil mulheres no campo com mais de 18 anos. O programa do Centro de Mulheres iniciado em julho de 2018 chega, por agora, a seis mil mulheres, com um custo de 200 dólares por pessoa [cerca de 175 euros]. Até ao final de 2019 o objetivo é, combatendo a falta de terrenos e financiamento, aumentar o número de atividades, passar de 10 a 14 centros e envolver 15 mil pessoas, incluindo homens.

A questão cultural é, porém, ainda uma grande barreira. As mulheres não tiveram acesso a educação, sofrem um grande isolamento social, são vítimas de violência de género e discriminação étnica. O programa foi apresentado porta a porta. Inicialmente cerca de 5% das mulheres desistiram. Foram proibidas pelo pai ou pelo marido, engravidaram, mudaram de campo.

A par da aprendizagem cada mulher recebe cerca de 10 euros em forma de e-voucher, um incentivo que, pretende-se, funcione como motivador de participação e colmate alguns dos grandes problemas atuais que assolam os campos: tráfico humano, prostituição, trabalho forçado e casamento precoce. A responsável pelo programa explica: “Mulheres, homens e crianças viveram debaixo de uma monitorização muito restrita, de ação e mobilidade, o que os torna muito inocentes e ingénuos, especialmente as raparigas e mulheres que não tiveram muita exposição. Por isso, é fácil enganá-las, dar-lhes esperança. É fácil levá-las para uma teia de crimes.”
Diariamente, 60 mulheres e raparigas são paradas pelas agências de segurança do Bangladesh numa tentativa de abandonar o campo. Entre as raparigas que se encontram a receber assistência médica física e mental por parte da organização após serem resgatadas, dois terços foram vítimas de trabalho forçado e 10% de exploração sexual. “Estes são riscos muito reais vividos pelas crianças nos campos”, reconhece Karen Reldy, da UNICEF.

O Bangladesh tem um dos maiores índices mundiais de casamento precoce. 50% das raparigas casam-se com menos de 18 anos, 18% com menos de 15 anos. A fim de eliminar o problema, a UNICEF criou em parceria com o Governo do país um Plano de Ação Nacional, que pretende erradicar o casamento precoce até 2041, informa Reldy.

POBREZA E MÁ ALIMENTAÇÃO
O suor escorre da testa de Azizur Rahman. A camisa verde escureceu com a transpiração. Azizur e o filho acabam de caminhar vinte minutos desde o centro de distribuição de comida até à pequena casa no campo 3, subindo e descendo montes, com a ração dos próximos 15 dias carregada às costas: 30 quilos de arroz, alguns sacos de lentilhas e óleo de palma.

Há mais de um ano que é esta a alimentação dos cinco elementos da família. As filhas escondem-se nas pequenas separações da casa, enquanto a mulher, Arefa, posicionada atrás de Azizur, se queixa da qualidade do arroz. Estende-o num saco sobre o chão de terra e mostra os arrozeiros que não são consumíveis.

Há um simultâneo sentimento de agradecimento e saturação. “Não temos dinheiro para comprar nada. Temos apenas a ração. Precisamos de mais para nos alimentarmos”, lamenta Azizur. A frustração é generalizada. Desde a sua chegada que os rohingyas vivem, quase na totalidade, sem qualquer fonte de rendimento e um terço da população continua a aceder apenas ao sistema de distribuição geral de comida do PAM. Sacos e sacos seguem sobre os corpos curvados de homens. Um camião de comida circula a cada 15 minutos dos armazéns para os campos. São quase 400 mil quilos de comida distribuída diariamente só para este sistema do PAM. Mas esta é uma realidade em metamorfose.
No campo 5 nasceu o que o PAM apelida de megaloja, um armazém gigante com três vendedores locais. Nas paredes encontram-se cartazes com os 18 ingredientes disponíveis e o preço de cada um. Há filas e filas de sacos de arroz e lentilhas empilhados, vegetais, ovos, especiarias, peixe seco e ainda sabonete. A entrada e saída de pessoas é constante e fora das grades do armazém a curiosidade é evidente. O medo de que os alimentos escasseiem faz com que a meio da tarde as prateleiras estejam quase vazias. Só a partir deste centro são alimentadas 40 mil pessoas. Ao membro feminino mais velho da família foi entregue um e-voucher que funciona por impressão digital, com 750 taka, cerca de 7,5 euros, atribuído a cada membro da família mensalmente. “Estou feliz. Aqui tenho o que a minha família necessita”, diz uma das mulheres. 324 mil pessoas têm já acesso a este sistema através das 21 lojas existentes. O PAM pretende que até ao final do ano todos tenham acesso ao programa alimentar e-voucher a uma distância máxima de 1,5 quilómetros de cada casa.
Nem só de comida vive o homem. Da colina mais elevada do campo 12, Massud escava a terra onde foram colocados seis tanques de água, quase 600 mil litros, o suficiente para providenciar água a 30 mil refugiados Rohingya. São números referentes à primeira fase do sistema de água potável movido a energia solar. É o maior sistema do campo de refugiados do Bangladesh. Será o maior do mundo em campos de refugiados quando o sistema funcionar para o mais de um milhão de pessoas.

O parque com 180 painéis solares está quase concluído. É um plano preparado ao pormenor e com vantagens assinaladas em todas as áreas. Mohan Mishra e Watsan, da equipa WASH (Água, Saneamento e Higiene) da OIM, sublinham a qualidade da água. “Cerca de 70% da água obtida estava contaminada”. As consequências na saúde são previsíveis. Para este projeto, perfurou-se até 400 metros, reduzindo o risco de contaminação e escassez de água e a necessidade de manutenção do sistema. Simplifica-se a operação, diminuem-se as consequências ambientais e cria-se uma rede preparada para a época forte das chuvas, salienta Mohan Mishra.
Os parâmetros humanitários indicam que cada pessoa deverá ter acesso a água até 500 metros. A equipa WASH quer reduzir o número para 100 metros e permitir que cada pessoa usufrua de 17 litros de água diários, ao invés dos 15 indicados. Com estas mudanças, as mulheres, habitualmente responsáveis por carregar a água necessária para a casa, não só precisarão de menos tempo como estarão menos sujeitas à insegurança provocada pelas longas caminhadas noturnas.

"TODOS OS DIAS SÃO DIAS DE PONTA"
Cheira ainda a novo. Se esquecêssemos a realidade para lá das portas deste centro de saúde poderíamos acreditar que estávamos numa vila. No espaço recentemente aberto no campo 3, onde o bambu deu lugar ao tijolo, há uma farmácia, uma sala de emergência, uma sala de partos, espaço para consultas e vacinação e apoio psicológico [nos campos, 4% dos jovens reportaram comportamentos suicidas]. É a imagem que as organizações querem futuramente transportar para as mais de 190 instalações médicas existentes. Os quatro médicos e três assistentes deste centro não têm tempo para parar. “Todos os dias são dias de ponta”, desabafa o clínico, enquanto assiste uma criança vítima de afogamento. Todos os dias, são aqui atendidas 250 pessoas.

“Falamos de pessoas que não tinham qualquer tipo de ajuda médica, mulheres que não sabem que cuidados ter durante a gravidez.”, diz o médico. 30 mil mulheres chegaram ao Bangladesh grávidas (várias em consequência de violações). Mais de 80% continuam a realizar os partos em casa. “Não basta dar assistência médica. É necessário educar sobre os cuidados de saúde mais primários”, refere. Nurbaar concorda. A acompanhar a mãe com um carcinoma, a mulher de 32 anos reconhece que nunca foi a um médico e que os cuidados aqui providenciados são cruciais. Na sala, a maioria dos casos são de varicela, um espelho da realidade atual dos campos: só este ano foram reportados quase 10 mil casos; mais de 340 mil crianças com menos de cinco anos sofrem de subnutrição.

HOW ARE YOU?
As ruas estão cheias de crianças. Algumas descalças, outras desnudas. A pele e a roupa sujas. Um laço rosa a servir de enfeite na cabeça das meninas. Varicela no corpo de alguns. Riem-se muito. Acenam muito. Gritam “Hello! How are you?”. Nunca pedem. Nem comida. Nem dinheiro. Brincam com rodas de ferro empurradas pela terra por um outro cabo de ferro, carros em bambu com tampas de garrafa a servir de rodas. Se tiverem sorte de estar em determinadas localizações nos campos há escorregas e cavalinhos de brincar. São mais de 500 mil crianças, ou seja, 55% da população refugiada no campo.
São mais de meio milhão. Para eles foram criados 3700 espaços de aprendizagem, outros tantos onde lhes tentam apagar os traumas vividos. “Quando chegaram, as crianças desenhavam helicópteros a disparar balas sobre as pessoas, pessoas a fugir de casas e vilas incendiadas, pessoas enforcadas nas árvores”, descreve Karen Reldy, da UNICEF. Hoje essas mesmas crianças já desenham as suas casas rodeadas de rios, campos verdes e animais. Nos centros de aprendizagem ensina-se inglês e birmanês, matemática, ciências e competências básicas. O bengalês não está permitido por parte do Governo do Bangladesh.

A UNICEF, em conjunto com organizações parceiras, indica que até ao ano passado 216 mil crianças rohingya estavam envolvidas em algum tipo de educação. As sondagens do último relatório da OIM mostram que entre os 5 e os 11 anos, cerca de 10% não frequentam os centros educativos. O valor cresce quando olhamos para os adolescentes entre os 12 e os 17 anos. Sobretudo no sector feminino. Mais de 80% das raparigas não frequentam a escola.
Do campo Nayapara, em Teknaf, avista-se facilmente o Estado de Rakhine e as suas montanhas Arakan disfarçadas pela neblina da manhã. Nas águas onde hoje se passeiam cruzeiros, há mais de um ano singravam barcos e barcos carregados de rohingyas, cruzando os três mil metros desde Myanmar até alcançar as margens do Bangladesh. Nadar seria ousado. Perigoso, na realidade. O rio chega a alcançar os 120 metros de profundidade. Ainda assim, muitos tentaram.
“Vimos os refugiados chegar. Eram tantos. Víamos o fumo desde o outro lado das montanhas das vilas a arder. Que mal fizeram estas crianças? Que mal fizeram as mulheres para serem violadas?” As palavras em inglês chegam de Mohammed Sadek, 21 anos. A mãe chegou grávida ao Bangladesh nos anos 90, fugindo da antiga Birmânia exatamente pelas mesmas razões que as mais de 740 mil pessoas em 2017.
O estatuto de refugiado é também atribuído a Mohammed e, por isso, não lhe é permitido, à semelhança dos restantes refugiados rohingya, trabalhar fora do campo. Nayapara é possivelmente o maior palco onde se cruzam antigos e novos refugiados, onde a presença de militares é mais visível.
920 milhões de dólares [mais de 800 milhões de euros] são necessários para continuar a dar resposta à crise humanitária dos rohingyas em 2019. O denominado Plano de Resposta Conjunta é o apelo de mais de 130 organizações — agências das Nações Unidas e organizações não-governamentais — que trabalham no maior campo de refugiados do mundo. A maior parte dos fundos servirá para a “ajuda crítica” no que diz respeito a comida, água, saneamento e abrigos. “É um plano altamente priorizado. É só mesmo, mesmo, para o essencial. É um pedido, como uma carta ao Pai Natal”, reconhece o coordenador de emergências da OIM em Cox Bazar.

Dificilmente as organizações recebem 100% do valor pedido, por isso Manuel Pereira gostaria de ver chegar pelo menos 50% e faz uso de uma comparação para que se entenda a realidade em que vivem os rohingyas: “É como se estivéssemos todos deitados numa cama com uma manta muito pequenina. Puxa de um lado, falha no outro. E não há dinheiro suficiente para comprar uma manta maior.”
909 mil rohingyas encontraram no Bangladesh a segurança que procuravam. Das bocas dos refugiados reconhecem-se muitas incertezas no futuro, mas de todas elas sai uma certeza: a de que não regressam sem que os direitos humanos e de cidadãos de Myanmar lhes sejam reconhecidos e garantidos. “O Governo do Bangladesh quer que as pessoas regressem o mais cedo possível, as pessoas querem regressar o mais cedo possível e nós queremos apoiar o regresso, mas todos concordamos que se as condições não forem seguras, se não forem dignificadas, não pode haver regresso. Estamos a tentar encontrar formas de mobilizar apoio no mundo com diversos parceiros para promover a resolução política em Myanmar”, declara Manuel Pereira, que indica ainda que é objetivo das organizações que muita da gestão dos campos vá sendo passada para o Governo do Bangladesh.

Dialogamos e assinamos acordos com Myanmar para a repatriação dos rohingyas. Mas o Governo de Myanmar não está a atuar nesse sentido”, afirmou Sheikh Hasina, primeira-ministra do Bangladesh. A viver em Myanmar desde o século XIX, os rohingyas tentam obter o cartão de cidadão desde a independência da ex-Birmânia. Até hoje, o Governo de Myanmar recusou-se a reconhecer a minoria étnica — que perfazia mais de um terço da população do Estado de Rakhine — como cidadãos de pleno direito do país e nega a crise existente relativa à etnia.

A Human Rights Watch acusa o país de ter realizado uma limpeza étnica, incriminando Myanmar de crimes contra a humanidade. Na mais recente missão das Nações Unidas à antiga Birmânia a ONU afirmou ao que os militares do país deveriam ser investigados por genocídio e que tinham sido ignorados os sinais alarmantes verificados anteriormente ao alegado genocídio.

Azizur Rahman está cansado. Jamila quebrada. Sanuara tem saudades. Ummesalina anseia pelos irmãos e por um Myanmar livre. Manuel Pereira acredita que um dia os Rohingya vão olhar para o mundo e ver-se “como iguais, dignos”. Khaleda sonha com o dia em que possa regressar. No interior da sua casa, com vista sobre o enorme descampado amarelo, com o braço sobre uma trave de bambu que lhe segura a cabeça, Azizur diz, resiliente, o que todas as bocas querem dizer: “Não há lugar mais feliz do que a nossa pátria”.

Lá fora ouve-se o vento e as crianças a brincar.

Jornal Expresso

REPORTAGEM MULTIMÉDIA:PAULA ALVES SILVA
INFOGRAFIA:CARLOS ESTEVES
WEB DESIGN: JOÃO MELANCIA E TIAGO PEREIRA SANTOS
WEB DEVELOPER: MARIA ROMERO
COORDENAÇÃO EDITORIAL: JOANA BELEZA E GERMANO OLIVEIRA