domingo, 30 de setembro de 2018

Cid Teles, a cigarra do Triste Fado (Notas conclusivas)


Notas conclusivas
            Quando Cid Teles faleceu, em 2009, tinha já completado a provecta idade de 98 anos. Apesar de ter nascido em Tábua, em 1911 (ano em que também nasceu o neo-realista Alves Redol), e de durante vários anos ter acompanhado os pais nas suas deambulações profissionais por várias regiões do país (Grândola, Santiago do Cacém, Montijo, Viseu, Lamego, Porto e Matosinhos), foi em Oliveira do Hospital que acabou por radicar-se, por volta dos anos 40 ou 50 do século passado. Nesta (actual) cidade passou cerca de seis décadas, fazendo parte do seu percurso diário, além da casa, junto ao Largo Ribeiro do Amaral (na rua que dá acesso à Caixa Geral de Depósitos), os cafés “Jardim” e “Portugal”, bem como a extinta pastelaria “Olipão”, onde gostava de reunir-se com os amigos para as recorrentes tertúlias.
            Cid Teles foi, sem qualquer dúvida, uma das figuras mais icónicas, pelo menos, da sede do concelho de Oliveira do Hospital. Os seus longos e precoces cabelos brancos, com um sereno porte de matusalém, dificilmente passariam despercebidos aos transeuntes. Ao longo da vida, teria desempenhado, sobretudo, funções relacionadas com as suas vocações artísticas: compôs letras musicais, peças de teatro, contracenou com vultos nacionais dos palcos (v.g., Manuel Lereno, 1909-1976), dinamizou vários programas radiofónicos, nomeadamente na Rádio Boa Nova e na Emissora Nacional.
            Estreou-se aos 21 anos, com a obra As minhas quadras, contando com o apadrinhamento literário de Fausto Guedes de Teixeira, poeta de Lamego que enviou a Cid Teles um soneto da sua autoria, para figurar na obra de estreia. Um soneto, cuja versão manuscrita, ainda hoje pode ser consultado na Fundação Maria Emília Vasconcelos, em Oliveira do Hospital (um local de paragem obrigatória para todos aqueles que se interessam pela cultura da região).
            Pianista, pintor autodidacta, ensaiador de grupos de teatro e de ranchos folclóricos de várias regiões do concelho oliveirense (caso do Rancho Folclórico Infantil da Casa do Povo de Midões, do Rancho Folclórico de Alvôco das Várzeas e do Rancho Folclórico de Santo António do Alva), Cid Teles, apesar de ter cultivado uma vida algo solitária, nem por isso deixou de consagrar a vida aos outros e, em particular, à cultura do concelho.
Várias das suas quadras e sonetos foram editados, pela primeira vez, em jornais locais, caso da Comarca de Arganil. Aprendeu a tocar piano com a mãe (Alzira de Matos Cid Teles), depois ele próprio ensinou, durante algum tempo, música no Colégio Brás Garcia de Mascarenhas e deu lições de canto coral. A fazer fé nas suas próprias palavras, costumava dizer aos alunos que quando “as coisas não são feitas com carinho e amor, não valem nada”.
            Vista no seu conjunto, a obra de Cid Teles é multifacetada, pese embora o facto de as áreas temáticas serem relativamente reduzidas e até mesmo atravessadas pela repetição de algumas ideias nucleares. Por detrás de uma aparente simplicidade (o difícil na vida é ser simples), esconde-se uma filosofia de vida ancorada num percurso solitário, instrospectivo e com certo pendor existencialista. Um conjunto de lições que bem reclamam um reencontro dos leitores, sobretudo dos jovens estudantes do concelho, com a obra telesiana.
            Como teve oportunidade de concluir o professor, maçon e oposicionista ao Estado Novo Manuel Monteiro, num artigo dado à estampa na Comarca de Arganil, em 9 de Maio de 1959, “o poeta do «Sou como Sou», com uma aparência física sólida, bem conformada, tranquilidade nos modos, nos gestos e nas feições, no espiritual dá estes binómios engraçados: inquietação-conformismo, angústia-
-serenidade, revolta-pacificação”.
            Enfim, um mundo de contradições, que reflectem o carácter inconstante, inconformado e rebelde do indivíduo e que também nos ajudam a compreender a aura de mistério que sempre pairou sobre a sua personalidade. Um homem que todos conheciam, mas com o qual poucos tiveram o privilégio de privar na intimidade. Atentem-se nestas palavras, que fazem parte da obra Chuva de estrelas:

Eu vivo comigo mesmo
Em louca contradição:
Se digo não… penso sim,
Se digo sim… penso não!

            Cid Teles preferiu desde muito cedo o contacto com os mais idosos. Durante a infância e grande parte da adolescência, as dificuldades em criar relacionamentos interpessoais com os seus pares, em virtude das constantes deambulações profissionais do pai, tê-lo-iam levado a passar muitas horas sozinho e, nessa sequência, a adquirir uma maturidade invulgar para a sua idade, bem como o gosto pela poesia. A sua facilidade em versejar era tal que o pai, autor do Livro do coração (ao qual António Nobre, o autor do “livro mais triste que há em Portugal”, teria dedicado a “Carta a Manuel”) teria mesmo afirmado: “Tu fazes versos com uma pá velha”. Uma curiosa expressão beirã, que apenas me lembro de ler nas obras do notável romancista e novelista beirão Aquilino Ribeiro. O contacto com a poetisa alentejana Florbela Espanca, em Matosinhos, bem como a leitura da sua obra, marcou-o profundamente.
            Acompanhou a doença e a velhice dos pais, do tio José Madeira Teles e da irmã Inácia, ela própria uma poetisa e professora no Colégio Brás Garcia de Mascarenhas. A perda da família biológica (os progenitores morreram em 1945, com um breve intervalo de tempo) marcou-o de modo profundo, reflectindo-se essa tristeza, pessimismo e inquietação na sua obra poética e nas suas pinturas (sobretudo nas paisagens pintadas a aguarela), que chegou a expor na Casa da Cultura César Oliveira, em Oliveira do Hospital. Isto para já não falar na terrível experiência do envelhecimento, da solidão e da proximidade da morte, a respeito das quais demonstrava, sobretudo na fase final da vida, uma profunda consciência e sentido pragmático.
            Na obra Farrapos da minha vida, confessou ter vivido em função dos outros:

            No fim da vida em que estou
                Só agora compreendi
                Que vivi mais para os outros
                Do que para mim vivi.

            Mas Cid Teles, além do poeta do “Triste Fado”, também foi a cigarra, que levou alegria a tantos habitantes do concelho de Oliveira, durante anos a fio. Qual palhaço que sobe à cena e, nesses instantes, se esquece dos dramas da existência individual, Cid Teles foi um homem da cultura, do palco e do público. Quase todos o conheciam, mas uma auréola de mistério sempre pairou sobre a sua cabeça.
            Cid Teles, o poeta conselheiro, atravessado por uma amarga filosofia de vida que, por vezes, me recorda António Aleixo (1899-1949). Eis esta quadra do poeta oliveirense, eternizado nas suas Quadras Soltas:

Por uma estranha razão
Difícil de compreender,
São sempre os que mais sofrem
Que mais desejam viver.

            Palavras breves, que tantas vezes resumem décadas e décadas de amarga aprendizagem, como esta que inicialmente foi dada à estampa nos Farrapos da minha vida:

Numa quadra pequenina,
             Por magia feiticeira,
             Pode caber a razão
             Duma vida toda inteira.

            Cid Teles também foi, por vezes, o incisivo crítico social, como bem demonstra esta quadra inserta nos Farrapos da minha vida:

Há pessoas, sim, eu sei
Que há pessoas por aí
Que julgam saber dos outros
Mais do que sabem de si!

            Apesar de sempre ter afirmado que não gostava do que escrevia e de ter resumido a própria vida como o poeta do “Triste Fado”, importa, porém, reconhecer que Cid Teles viu, desde cedo, reconhecido o seu talento, pelo menos, no âmbito do concelho onde residiu a maior parte da vida, algo que nem sempre sucede(u) com grandes nomes da literatura nacional.
            Manuel Cid Teles teria perseguido uma certa independência política, evidenciando mesmo um certo alheamento em relação à mesma, pese embora o facto de ter vivido várias décadas sob o regime censório e repressivo do Estado Novo (1933-1974). Apesar de não ter assumido ao longo da vida uma intervenção política, desempenhou um inequívoco papel no domínio cultural do concelho de Oliveira do Hospital.
Cid Teles, um homem com uma inequívoca preocupação em relação à sua obra e à eternidade da sua mensagem. Através da sua correspondência pessoal, é possível comprovar que procurou oferecer os seus livros a personalidades consagradas da vida nacional, talvez também enquanto um meio de divulgar a sua mensagem e obter algum reconhecimento literário.
Aqui deixo, pois, algumas notas a respeito de um homem que conheci na fase final da vida. Não são mais do que alguns traços impressionistas a respeito dos percursos de um homem do palco, mas também de um indefectível solitário, que nunca casou e nunca teve filhos. Uma cigarra, que apesar de ter um “Triste Fado”, sempre procurou levar a cultura às gentes do concelho de Oliveira do Hospital.
Eis, por conseguinte, a homenagem possível a um poeta, que me marcou profundamente. Uma homenagem ao homem, com as suas virtudes e defeitos, as suas sombras e luzes, próprias, de resto, de todos os Homens. Esta é, por conseguinte, a minha homenagem a uma cigarra que, ao contrário do que é socialmente expectável e devido às circunstâncias favoráveis de que beneficiou do ponto de vista financeiro, não dedicou a vida, de um modo sistemático, a uma profissão propriamente dita (o seu feitio seria, de resto, pouco atreito a horários rígidos e a rotinas). Ainda assim, viveu em função de uma vocação artístico-
-literária e, malgré tout, conheceu a consagração local. Uma lição, com sabor a sátira, inserta na obra Canta cigarra, canta!:
Canta cigarra, canta, canta mais
E deixa lá falar essas formigas,
Que quando estás, te tratam como amigas,
Mas te censuram logo que te vais!...

A sua família, como tantas vezes me confessou, eram as suas gentes de Oliveira do Hospital, mas talvez a abertura da enigmática caixa confiada à guarda da Fundação Maria Emília Vasconcelos Cabral, que deverá conter elementos relativos à irmã de Manuel Cid Teles (Inácia), possa ajudar-nos a iluminar um pouco melhor esta matéria.




Capa da obra escrita por Inácia, irmã de Cid Teles

No momento em que escrevo, com a Serra da Estrela em pano de fundo e as obras do poeta em cima da secretária, o sentimento que me invade é de saudade e profunda admiração, perante uma cigarra que conseguiu cantar praticamente até aos momentos finais da vida (como se comprova pela grande qualidade da obra São restos, já editada a título póstumo, em grande parte graças ao trabalho notável de Maria Rosa Lobo Gonçalves). Despeço-me, invocando aquele que talvez represente um dos sonetos mais icónicos de toda a sua vida, dos percursos de um cidadão incontornável na História cultural do concelho onde passei a minha infância, grande parte da adolescência e ao qual regresso sempre que posso:

SOU COMO SOU
Sou como sou, e não me importo nada
Que este ou aquele não goste do que eu sou.
Sei o que quero, e aonde quero vou,
A passo firme e fronte levantada!


Amo essa mão estranha, ignorada,
Que do destino as linhas me traçou,
E dos outros diverso me tornou,
Dando-me esta alma inquieta de nortada!

Louco! Poeta! E que me importa a mim?
Tantos falando porque eu sou assim,
Tantos dizendo o que eu devia ser…


Sou como sou! E sinto até vaidade,
Quando posso gritar esta verdade:
Sou como sou, e assim hei-de morrer!

            Muitos outros aspectos ficaram ainda por iluminar a respeito de Cid Teles e, naturalmente, o estudo mais aprofundado da sua vida ajudará a encontrar as inevitáveis falhas de que enfermam os vários artigos que partilhei com o leitor ao longo das últimas semanas. Por isso, resta-me apenas pedir desculpa por essas falhas, agradecer a todas as pessoas que me facultaram informações e renovar os votos para que todos os leitores utilizem as incríveis potencialidades das Novas Tecnologias e partilhem também as suas memórias a respeito de Manuel Cid Teles. Afinal, todos os dados, depois de devidamente cruzados, poderão revelar-se importantes para figurar nesse roteiro histórico-literário concelhio que tanta falta nos faz e que talvez um dia possa ainda ser publicado. Manuel Cid Teles terá, por mérito próprio, de constar dele.
Renato Nunes (renato80rd8918@gmail.com)

quarta-feira, 19 de setembro de 2018

Cid Teles, a cigarra do Triste Fado (Na imprensa)


Na imprensa
Se compulsarmos o arquivo de A Comarca de Arganil, que já foi parcialmente disponibilizado em suporte digital numa plataforma informática (1.ª série, 1901-2009), iremos constatar a existência de 47 entradas, quando encetamos uma pesquisa com o nome “Manuel Cid Teles”; o número sobe para 61, quando apenas escrevemos “Cid Teles”). Nessa importante fonte histórica, conseguimos encontrar um artigo datado de 14 de Outubro de 1932 e que constitui uma espécie de crítica à estreia literária de Cid Teles, que, segundo penso, valerá a pena aqui parcialmente recordar: “Não conhecemos o autor deste livro [As minhas quadras] nem isto vem para o caso. Apenas lamentamos não podermos fazer uma apreciação segura sobre os méritos literários de Manuel Cid Teles, visto o género de poesia que escolheu ser, incontestavelmente, o mais simples. Parece-nos porém que, se quiser, poderá escrever poesia mais variada, que não deixa, por isso, de ser também interessante e talvez mais apreciada”.
            Curiosamente, na edição de 1 de Janeiro de 1935, portanto, já durante o Estado Novo, voltaremos a encontrar um texto do referido “crítico”, que assina com o nome Mário, mas agora a propósito do livro Sombras... Eis os dois parágrafos que nos pareceram mais significativos:

Trinta e dois sonetos! Trinta e duas delicadas flores arrancadas ao jardim da inspiração; trinta e duas finíssimas jóias, singelamente empacotadas numa modestíssima folha de papel de linho, com este simples endereço – Sombras
Não fazemos referência especial a nenhum dos seus sonetos, pois a todos achámos, senão impecáveis, pelo menos bem feitos. Aquela ténue nuvem, que nos encobria ainda o seu nome literário, desapareceu como por encanto e o sol brilhou de novo no firmamento azul do seu valor e da sua inspiração.

Cid Teles foi um assíduo colaborador da Comarca de Arganil, periódico onde deu à estampa vários inéditos, por vezes com uma roupagem diversa daquela que depois figurará nos livros.
Através da consulta das várias notícias respeitantes ao poeta, é possível identificar algumas datas/acontecimentos marcantes:
– em 1945, Cid Teles seria funcionário da Comissão Reguladora de Comércio (em Oliveira do Hospital?);
– em Setembro de 1950, Cid Teles fez parte da comissão executiva encarregue de organizar as festas em Oliveira do Hospital, em honra de Sant’Ana;
– nos anos 80, Cid Teles teria escrito e participado na representação de uma peça de teatro, intitulada “A ceia dos cardeais”, escrita por Júlio Dantas (1876-
-1962), em 1902. Do elenco fizeram também parte, entre outros, António Simões Saraiva e José Vieira;
– em Outubro de 1994, Cid Teles foi distinguido pela Câmara Municipal com a medalha de prata “mérito municipal”;
– em Junho de 1997, participou, enquanto declamador, no espectáculo de variedades promovido pela Liga Portuguesa contra o Cancro, na Casa da Cultura de Oliveira do Hospital;
– em Março de 1999, foi homenageado na Casa da Cultura de Oliveira do Hospital;
  – em Junho de 1999, participou na apresentação do mais recente romance (A toutinegra do moinho) da escritora Ermelinda da Silva (1922-), natural de Vila Franca da Beira;
– em Setembro de 2006, foi publicada a obra Tendo Embora um Triste Fado. Este volume reúne sete livros: As Minhas Quadras (1932), Sombras (1934), Sou Como Sou (1945), Chuva de Estrelas (1947), Canta Cigarra, Canta! (1999), Farrapos da Minha Vida (2002) e, por fim, Quadras Soltas (inéditas, escritas entre 2003 e 2004).
Atendendo aos múltiplos exemplos já mencionados, pode concluir-se que o periódico A Comarca de Arganil divulgou, com alguma regularidade, textos sobre Manuel Cid Teles, praticamente logo a partir do seu nascimento literário e, como constatei ao longo das minhas pesquisas, o mesmo sucedeu com outros periódicos locais e nacionais (por exemplo, A Voz, Diário de Notícias ou A Gazeta de Coimbra). Assim, apesar de um dia haver confessado ter “Um Triste Fado”, Cid Teles foi um poeta que viu reconhecido o seu valor literário por uma franja significativa dos Homens do seu tempo, ao contrário, importará ressalvá-lo, do que acontece(u) com muitos autores depois consagrados pela posteridade. E neste âmbito, terei de assinalar o meritório esforço desenvolvido pelas edilidades locais (Junta de Freguesia e Câmara Municipal de Oliveira do Hospital, entre outras) para divulgar o trabalho do autor.
            No próximo artigo, ensaiarei uma visão de conjunto a respeito de Cid Teles. Até lá, se ainda não fez, amigo leitor, não deixe de ler a obra do poeta e de (re)visitar alguns dos espaços oliveirenses que o poeta privilegiou nas suas deambulações diárias, ao longo de, aproximadamente, 60 anos.
Fotografias oferecidas pelo poeta ao Museu António Simões Saraiva, da Bobadela: à esquerda, com barba, Manuel Madeira Teles; ao centro, em cima, Maria Rita Teles Castelo Branco; ao centro, em baixo, tia “Nini” (como era carinhosamente tratada a herdeira da “Casa dos Espíritos”, também já designada “Casa do Pinheiro dos Abraços”); do lado direito, com bigode, José Madeira Teles, tio de Cid Teles (apenas foi possível identificar estas personalidades graças à inexcedível ajuda de Maria de Fátima Cid Teles, de Oliveira do Hospital, a quem deixo uma especial palavra de agradecimento).



Renato Nunes (renato80rd8918@gmail.com)

segunda-feira, 17 de setembro de 2018

Cid Teles, a cigarra do Triste Fado (A obra poética)



A obra poética
A Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira (volume XXXI) registou as seguintes notas biográficas a respeito de Cid Teles: “Poeta, nascido em 1910 [na verdade, 1911], em Tábua. Residiu durante anos no Porto, onde publicou os seguintes livros de versos: As Minhas Quadras, 1932; Sombras, 1934; e Chuva de Estrelas, 1947. Tem colaborado em jornais e revistas literárias”.
Além das obras já anteriormente mencionadas, Cid Teles escreveu ainda Sou como sou (1945); Canta cigarra, canta! (1999) e Farrapos da Minha Vida (2002). As quadras e os sonetos do autor, que já tinham sido publicados, foram reunidos, em 2006, numa colectânea intitulada Tendo Embora Um Triste Fado…, que contou ainda com as “Quadras Soltas” (inéditas). Já a título póstumo, foi publicada a obra São Restos, 2011, que, importará realçá-lo, contém um notável prefácio de Francisco Correia das Neves (1929-2017). Segundo o próprio poeta, numa entrevista que concedeu aos alunos de uma escola, em data que não conseguimos precisar (pode ser consultada a partir da página digital da CM de Oliveira do Hospital), este teria escrito o primeiro poema por volta dos sete anos e tê-lo-ia dedicado ao pai:

Quando estou ao pé de ti
Passa o tempo de corrida
Tu és o dia mais lindo
Dos dias da minha vida.

            Manuel Cid Teles: poeta, pianista, ensaiador de grupos de teatro do concelho de Oliveira do Hospital e de vários ranchos folclóricos; professor de canto coral no antigo Colégio Brás Garcia de Mascarenhas; actor, com inegável voz de tenor, e autor de peças de teatro; amigo e colaborador de Manuel Lereno (1909-1976); declamador, por exemplo no programa de rádio “Poesia, Música e Sonho” da antiga Emissora Nacional ou na rubrica “Querida manhã” da Rádio Boa Nova; pintor autodidacta, especialmente de aguarelas; colaborador de vários jornais e revistas, como sejam Voz de Lamego, Comércio de Leixões ou A Comarca de Arganil.
            Apesar da grande quantidade de quadras e sonetos que Cid Teles nos legou, os temas privilegiados nas suas composições são relativamente fáceis de delimitar. De um modo geral, giram em torno do amor, da infância, da morte e da religião.
            Sigmund Freud (1856-1939), considerado o pai da psicanálise, teria escrito que o inconsciente não tem tempo. O estudo dos versos que nos legou Cid Teles permite-nos aceder à noite mais escura que o poeta carregava dentro de si e ao modo como este tentou conferir sentido à existência, nessa permanente tensão entre passado, presente e futuro.
O mundo literário de Cid Teles é atravessado por uma permanente saudade de um sujeito que se assume como um eterno insatisfeito. Um drama que o pai do poeta, Manuel Madeira Teles, parece ter adivinhado desde muito cedo:

Vejo-o tentar subir, com alvoroço,
Alturas onde, ao meio, o pai cansou;
Vai subindo… mas como começou
Eu acabar devia e não posso.

Deixam-lhe os versos só a pele e o osso,
E aos vinte anos já tanta dor cantou
Que alguém, de boa fé, o proclamou
“Venerando poeta”!... Pobre moço!

Enlaça-nos o nome e a poesia,
Mas levamos os dois trocado o trilho,
Ele atrás da Tristeza, eu da Alegria…

E assim a Natureza errada vai:
Eu sou um pai mais moço do que o filho,
Ele um filho mais velho do que o pai!...

            Debrucemo-nos agora, amigo leitor, perante aqueles que poderão ser considerados os temas aglutinadores da obra do poeta.
            I – Amor
            Trata-se de um dos temas mais recorrentes da obra poética de Cid Teles. Um dos separadores do seu livro Farrapos da minha vida intitula-se “Lembranças de amores passados”. O poeta deixou-nos alguns dos mais belos e ternos sonetos de amor, como seja este que tem o título “Primavera”, inicialmente dado à estampa na obra Sou como sou:
[…]
                Na doce suavidade das tardinhas
                Gemem rolas nas moitas de jasmim,
                Antigamente, quando tu não vinhas,
                Nem primaveras havia para mim.

                Agora sinto-a em tudo, basta ver-te.
                Trago-a na alma! É primavera querer-te
                Assim como eu te quero, imensamente…

                O inverno é sempre triste de passar,
                Meu amor, meu amor, deixa-te estar
                E será primavera eternamente!

            Trata-se de um amor quase sempre não correspondido, que provoca sofrimento no sujeito poético. Um sofrimento que atravessa toda a obra de Cid Teles e, implicitamente, parece ter atravessado toda a sua vida.
            O amor telesiano é, fundamentalmente, um amor platónico, de um indivíduo que idealiza alguém que não existe e que, por esse motivo, se transforma num inferno, quando concretizado. Atente-se no seguinte excerto retirado dos Farrapos da minha vida:

Persegui-te anos a fio
             Na fé de te possuir.
             Hoje acordei a teu lado
             E apetece-me fugir…

            II – Infância
            Eis a idade mítica do poeta, ao qual este regressa ciclicamente para reconstruir, de modo idealizado, o que nunca teve. Recorde-se que a infância de Cid Teles foi marcada por constantes deslocações, motivadas pela situação profissional do pai, o que teria dificultado a criação de amigos. A perda dos pais e a posterior morte da irmã implicou a perda da sua família biológica, levando o poeta a recordar sistematicamente o passado, quando, supostamente, ainda estaria completo. Daí essa saudade permanente, não só por aquilo que existiu, mas por tudo o que o poeta (um profundo fingidor, como diria Fernando Pessoa: 1888-
-1935) procurou permanentemente reconstruir, nesse esforço para conferir sentido à existência.

            III – Religião
            Na fase final da vida, Cid Teles confessava ser um profundo crente. Encontramos com alguma frequência a palavra Deus nos versos que nos legou. O poeta, sublinhe-se, acompanhou musicalmente, durante vários anos, as celebrações litúrgicas católicas, permitindo, assim, de acordo com as palavras de António Simões Saraiva (1927-), “que a sua música imprimisse mais intimismo, numa ligação mais espiritual com os Mistérios do altar”.
            Um dos separadores da obra Farrapos da minha vida, dada à estampa em 2002, intitula-se “Lições de Deus, do Mundo e da vida”. Atente-se nas seguintes quadras:

Só procura Deus no Céu
O que não sabe nem sente
Que Deus anda neste mundo,
Em tudo e em toda a gente!
[…]
Só na justiça de Deus
Tenho inteira confiança,
Pois na dos homens não vejo
Que esteja certa a balança...  
           
IV – Morte
            Cid Teles confessou que a morte o assustava, quando ainda tinha a família biológica viva. Ouçam-se os Farrapos da minha vida:

Não foi nunca a minha morte
Que temi ou temerei.
O triste, p’ra mim, da morte,
Foi ver morrer os que amei.

Habituado, desde muito cedo, a conviver com os mais velhos, a cuidar dos mais idosos (foi ele que tratou dos pais e da irmã, na fase final da vida). Nas entrevistas que concedeu, o poeta reconheceu que o seu posicionamento perante a morte evoluiu para a aceitação da necessidade de um fim. Ainda assim, logo na sua obra de estreia (As minhas quadras), aos 21 anos, escreveu:

Dizem ser a morte triste
Mas é engano, afinal,
Pois nos lábios de alguns mortos
Há um sorriso sem igual.

            A recta final da vida de Cid Teles foi marcada pela permanente consciência da decadência física e da irreversível proximidade do fim, constituindo mesmo um dos temas mais recorrentes da sua produção poética. Eis alguns versos retirados dos Farrapos da minha vida:

          Das saudades a saudade
             A mais cruel e atroz
É a saudade que a gente
Um dia sente de nós!...

            Dito isto, falta apenas marcar o próximo encontro, agora em torno de algumas das representações (narrativas ou imagens) divulgadas, ao longo do tempo, pela imprensa a respeito de Cid Teles. Até lá, insisto, vale a pena regressar à obra do poeta e à geografia literária dos seus percursos por Oliveira do Hospital.
 
Casa onde morou o poeta, em Oliveira do Hospital: Largo Ribeiro do Amaral, na rua que dá acesso à Caixa Geral de Depósitos

Renato Nunes (renato80rd8918@gmail.com)

segunda-feira, 10 de setembro de 2018

Cid Teles, a cigarra do Triste Fado (Possíveis influências)


Possíveis influências
            Não é fácil identificar as influências de um indivíduo. Ainda assim, o estudo dos seus percursos, da sua época, das relações interpessoais travadas, da biblioteca pessoal e dos próprios vestígios que foi deixando, quer nas obras, quer nas entrevistas concedidas, constituem importantes fontes onde os investigadores podem beber inspiração. Através do seu cruzamento será possível traçar uma imagem mais objectiva a respeito dos locais e das pessoas onde o autor foi colher algumas das influências, que o ajudaram depois a forjar o seu pensamento e o estilo.
            Nos artigos anteriores, ficou evidente o quão trágico foi para Cid Teles a perda dos pais, em 1945, bem como a morte da irmã, Inácia, já nos anos 90, do século passado. As constantes deambulações a que foi sujeito durante a infância, devido à situação profissional do pai, o contacto precoce com pessoas mais idosas, bem como o interesse pela poesia ajudam-nos a compreender um certo carácter introspectivo do indivíduo, bem como a sua permanente nostalgia em relação à idade mítica de uma infância, que adivinhamos bastante solitária.
            A poesia telesiana é atravessada por um inequívoco pendor existencialista e saudosista. Isto para já não falar nas contradições próprias do poeta, um ser que se busca, mas que sabe estar condenado a nunca se encontrar. Ora, entre as possíveis influências literárias do poeta é forçoso destacar os casos de Fausto Guedes de Teixeira (1871-1940), poeta de Lamego que, em 1932, teria apadrinhado com um soneto a obra de estreita de Cid Teles, mas, sobretudo, Florbela Espanca (1894-1930), poetisa que Cid Teles teve oportunidade de conhecer.
            Na entrevista que concedeu à Rádio Boa Nova, em 22 de Setembro de 2006, perante a insistência da jornalista Ângela Cunha, o poeta radicado há várias décadas no concelho deixou a seguinte mensagem aos jovens:

                               Aos jovens, a mensagem que lhe deixo é que aproveitem a sua vida, que realmente vivam a sua mocidade e sintam a graça que têm que dar a Deus de estarem jovens, de poderem ir aqui, de poderem falar, poderem escrever, poderem viver. […] A morte para mim sempre me horrorizou era enquanto tinha o meu pai vivo, a minha mãe viva, a minha irmã, as pessoas que eu amava realmente, verdadeiramente… agora depois de uma certa idade encaro realmente as coisas, a minha idade e realmente até acho que a morte para mim agora é benfazeja: “Fecha-me os olhos que já viram tudo, prende-me as asas que voaram tanto” – dizia a Florbela Espanca, que era a minha vizinha em Matosinhos, casada com o Dr. Mário Lage e que fui eu até talvez um dos primeiros admiradores de Florbela… Florbela de Alma da Conceição Espanca Lage, era até o nome dela, que era casada com o Dr. Mário Lage e tudo e isso… agora “Morte, minha senhor Dona Morte, que bom que deve ser o teu abraço” – eu agora já digo isso. “Lânguido e doce como um doce laço e como uma raiz, serena e forte. Não há mágoa nem dor que não conforte tua mão que nos guia passo a passo. Em ti, dentro de ti, no teu regaço não há triste destino, nem má sorte. Dona Morte dos dedos de veludo, fecha-me os olhos que já viram tudo, prende-me as asas que voaram tanto. Vim de agoirama, sou filha de rei, má fada me encantou e aqui fiquei à tua espera. Quebra-me o encanto” – estes versos e sonetos são da Florbela Espanca. E que hoje sinto e repito muitas vezes para mim…
           
            As alusões de Cid Teles à poetisa alentejana Florbela Espanca eram recorrentes, quer durante os diálogos, quer nos versos que foi libertando. Da biblioteca pessoal telesiana, à guarda da Fundação Maria Emília Vasconcelos, em Oliveira do Hospital, faz parte, por exemplo, o livro de sonetos Charneca em Flor (edição póstuma, 1931), onde o poeta eternizou, em 13 de Julho de 1932, o seguinte desabafo: “Que dia!...”
Florbela Espanca nasceu, em Vila Viçosa (distrito de Évora), no dia 8 de Dezembro de 1894 e faleceu no dia 7 de Dezembro de 1930, em Matosinhos, sendo sepultada no dia seguinte, quando completaria 36 anos.

Florbela Espanca
            Em 1913, casou-se com Alberto de Jesus Silva Coutinho, acabando por divorciar-se (30 de Abril de 1921). Foi viver para o Porto, onde, uma vez mais, manteve um relacionamento pouco venturoso. Novo casamento, novo divórcio, seguido, em 1925, de um terceiro casamento, agora com o médico Mário Pereira Lage (?-1967). Teria sido durante este período em que que a malograda poetisa viveu em Matosinhos, que Cid Teles a teria conhecido. Florbela faleceu em Matosinhos (algumas teses apontam mesmo para a possibilidade de suicídio), sendo que, em 1949, portanto, já durante o Estado Novo, os seus restos mortais foram transladados para Évora.
            No seu Livro de Mágoas, editado em 1919, Florbela Espanca escreveu, logo no soneto introdutório:

Este livro é de mágoas. Desgraçados
Que no mundo passais, chorai ao lê-lo!
Somente a vossa dor de Torturados
Pode, talvez, senti-lo… e compreendê-lo.
[…] Livro de Mágoas… Dores… Ansiedades!
Livro de Sombras…
           
Ora, o poeta que agora inspira este artigo, Manuel Cid Teles, privou de perto, em Matosinhos, com a malograda poetisa e publicou, em 1934, um conjunto de sonetos, precisamente com o título Sombras
            De acordo com M. da Graça Orge Martins, Florbela Espanca:
            Refugiava-se nos seus versos narcísicos e sedentos de um futuro que se recusava a nascer e na mágoa de um passado que nem sempre lhe fora sorridente, mas em cuja recordação saudosista procurava o bálsamo que suavizasse a sua mágoa de não pertencer a qualquer tempo, de ser uma mulher que vivia fora de uma época, exterior a todos os tempos.

                Já em relação a Fausto Guedes Teixeira, importa dizer que este poeta de Lamego nasceu, em 1871, e morreu em 1940. Publicou Náufragos (1892), Carta a um Poeta (1899), Sonetos de Amor (1922) e, a título póstumo, O Meu Livro (1941), que reúne todas as suas obras. Aquilino Ribeiro (1885-1963), o célebre romancista beirão do pícaro Malhadinhas, também se interessou pelas obras de Fausto Guedes Teixeira.
            Na biblioteca pessoal de Cid Teles, em Oliveira do Hospital, encontrei obras de Gustave Flaubert, Georges Ohnet, Jack London, Fernando Pessoa, Jean-
-Paul Sartre, José Régio, Honoré de Balzac, Stefan Zweig, Manuel da Fonseca, Guy Breton, Jaime Cortesão ou, entre outros possíveis exemplos, Florbela Espanca.
            Aqui ficam, por conseguinte, algumas das sementes que o indivíduo colheu ao longo da vida. É através delas que, afinal, também poderemos compreender a obra telesiana, matéria a respeito da qual me debruçarei no próximo artigo. Até lá, amigo leitor, perca-se na geografia literária de Cid Teles, vasculhando os mais recônditos lugares da cidade de Oliveira do Hospital. São, afinal, estes locais que também nos ajudam a compreender as palavras do poeta.

Renato Nunes (renato80rd8918@gmail.com)

sexta-feira, 7 de setembro de 2018

Cid Teles, a cigarra do Triste Fado (As Origens)


As origens
            O poeta que inspira estas palavras nasceu em 8 de Março de 1911, em Tábua, concelho que já durante a I República se encontrava integrado no distrito de Coimbra. Faleceu em Oliveira do Hospital, em 25 de Abril de 2009, com 98 anos.
Cid Teles era filho do poeta Manuel Madeira Teles (1872?-1945), funcionário das finanças que teria privado com o poeta António Nobre (1867-1900), e da pianista Alzira de Matos Cid Teles (1872?-1945). As notas biográficas referem habitualmente a existência de uma irmã, Inácia, mas Maria Heloísa Santos, da Bobadela (em entrevista gravada), menciona quatro irmãos, que teriam falecido primeiro: Inácia, Heloísa, Maria Rita e Luís (trata-se, porém, de uma informação que não conseguimos comprovar). Sublinhe-se que Maria Heloísa Santos teria ido para a Quinta da Coitena, por volta dos três anos, aí permanecendo a trabalhar até aos 27. Foi nesta quinta que, após a morte dos pais, em 1945, Cid Teles teria passado a viver, em conjunto com um tio.
           Quinta da Coitena(Oliveira do Hospital)

Manuel Cid Teles teria sido um fruto extemporâneo, não sendo um nascimento previsto pelos pais. Ele próprio escreveu, na obra Farrapos da minha vida:


Por um engano fatal
Na verdade ao mundo vim.
Nem minha Mãe nem meu Pai
Esperavam já por mim.

            A respeito do seu mês de nascimento, escreveu, por exemplo, o soneto “Março”, que integrou na obra Canta cigarra, canta! A primeira quadra pode ajudar-nos a compreender um pouco melhor o modo como o próprio poeta se vislumbrava:

Eu gosto do meu mês, vário, inconstante,
Que ri agora e logo se entristece,
Que tanto nos enregela como aquece,
Que é desabrido e meigo num instante.

            Manuel Teles Cid (nome de baptismo) adoptou o pseudónimo de Manuel Cid Teles na obra As minhas quadras, editada em 1932, quando tinha 21 anos. Este facto pode ajudar-nos a compreender as palavras do poeta, quando redigiu os seguintes versos, datados de 31 de Maio de 2006, e integrados nos Farrapos da minha vida: “Nem a morte há-de vencer / Dois que apenas um só são. Pode morrer o Teles Cid, / O Cid Teles é que não!”
Quando Cid Teles nasceu (1911), a I República levava apenas cerca de cinco meses de existência. De acordo com o censo geral da população portuguesa realizado em 1 de Dezembro de 1911 e divulgado em 1913, no ano em que Manuel Cid Teles nasceu, o concelho de Tábua possuía um total de 17.533 pessoas, sendo 7.503 do sexo masculino e 10.030 do sexo feminino. Nesse mesmo ano, o concelho de Oliveira do Hospital possuía um total de 27.242 habitantes, sendo 12.258 homens e 14.984 mulheres. Nesse ano, o censo contou 5.960.056 “habitantes de facto” em Portugal, o que representava um aumento absoluto de 36.972 habitantes, em relação ao último censo (1864). A taxa de analfabetismo em todo o país rondaria os 75%.
            Tábua era à época uma região periférica do país, afastada dos grandes centros de decisão, um pouco à semelhança da restante região das Beiras, que parece ter marcado, de modo decisivo, a identidade de Cid Teles. O poeta escreverá mesmo um soneto, intitulado “Canta”, onde convida o leitor a visitar aquela região situada, grosso modo, entre o Douro e o Mondego. Estes excertos fazem parte da obra Farrapos da minha vida:

Não conheces a Beira? Pois então
Faz as malas e vem por aí fora,
Que tens ao teu dispor o casarão
Da velha quinta onde vivo agora.

                                      Não hesites e vem, que a ocasião
                                      Não pode ser melhor, mesmo que embora
                                      A Beira Alta tem, quem o ignora?
                                      Um novo encanto em cada estação.

                                      É Primavera: os prados e os pinhais
                                      Estão em flor, há urzes e tojais,
                                      Giestas, rosmaninhos e afinal
Seria um crime até, se não viesses,
                                      Tu que amas a beleza e desconheces
                                      A mais bela região de Portugal!

Apesar de ter nascido em Tábua, devido à situação profissional do pai (funcionário das Finanças), a família Teles foi obrigada a deambular por várias regiões do país: Grândola, Santiago do Cacém, Montijo, Viseu… Ora, este nomadismo irá marcar profundamente o poeta, na medida em que dificultará a criação de laços de amizade com outros jovens da sua idade e motivará o seu contacto precoce com os adultos. Circunstâncias que também nos permitem compreender a sua precoce maturidade e, em certo sentido, o seu prematuro interesse pela poesia.
Nas conversas que travei com Cid Teles, já nos últimos anos da sua vida, quando ele residia no lar da Fundação Aurélio Amaro Diniz, em Oliveira do Hospital, era evidente a importância que o poeta concedia à família biológica, em especial aos pais e à irmã Inácia Cid Teles, também ela uma poetisa. A título póstumo, foi publicada a obra de versos Nada torna a voltar, na portada da qual o poeta escreveu as seguintes palavras: “Eu sempre [fui] para Ela como um filho muito querido e a Morte ao levar-ma deixou em mim e na Vida que me resta para viver, um vazio que jamais nada nem ninguém poderá preencher!”
À época das nossas conversas (2007-2009), já tinham falecido todos os familiares directos de Cid Teles, mas este convocava-os amiúde para o meio de nós, um pouco à semelhança da saudade que parecia alimentar em relação à infância. Ou pelo menos a uma certa infância, à qual regressava ciclicamente, num permanente exercício de recordação e reconstrução da suposta “idade do ouro”.
No soneto “Sonata ao luar”, dedicado à sua prima Heloísa Cid e integrado na obra Canta cigarra, canta!, Manuel Cid Teles recordou a sua mãe:

                             Da “Sonata ao Luar” o piano exala
                                      Doce lamento, e logo na lembrança
                                      Eu retorno aos meus tempos de criança,
                                      E em nossa casa corro até à sala.

                                      Ao piano, a minha Mãe. Poder pintá-la!
                                      Jovem e bela, artista por herança,
                                      Com sentimento, arte e segurança
                                      Ao piano dá o choro, o riso e a fala.
                                      No meu quartito estreito e já deitado,
                                      Eu escutava esse murmúrio alado
                                      E nunca o esqueci p’la vida além…

                                      Que da “Sonata ao Luar” a suavidade
                                      Sempre lembrar me faz – com que saudade!
                                      A nossa sala, o piano e a minha Mãe…

            E ainda sobre os pais, dirá, na obra Farrapos da minha vida:

Tendo embora um triste fado,
Nascer p’ra mim foi um bem,
Por ter tido o Pai que tive
E por mãe a minha Mãe.

            De acordo com as informações que me foram transmitidas por Maria Heloísa Santos, da Bobadela, após a morte dos progenitores, em 1945, Cid Teles teria enfrentado várias dificuldades, chegando mesmo a passar fome. Depois, teria ido viver para junto do seu tio, na Quinta da Coitena, na Bobadela, freguesia de Oliveira do Hospital. Tratava-se do terratenente José Madeira Teles (1873-1956), um fervoroso adepto da Monarquia e um posterior defensor do salazarismo.
A Quinta da Coitena parece ter exercido um papel nevrálgico na Bobadela, sendo que, na notável obra Enquadramento Histórico e Toponímia. Concelho de Oliveira do Hospital, Francisco Correia das Neves associa este topónimo “Coitena” a um “local privilegiado ou defesa ou coutada”. Maria Heloísa Santos confirma esta asserção, dizendo que na memória popular sempre circulara o rumor segundo o qual, na época da Monarquia Constitucional, quem pretendesse ficar “livre” do serviço militar deveria pedir protecção ao senhor da Coitena.
Importante terratenente, José Madeira Teles era irmão do pai de Cid Teles, Manuel Madeira Teles. Apesar de nunca ter contraído matrimónio, José Madeira Teles viria a ter um filho, ao qual acabaria por deixar os bens. À morte do tio, Cid Teles ficou, porém, com o usufruto da casa e de duas fazendas, com a obrigação de zelar pela sua manutenção. No entanto, segundo alguns testemunhos, as relações entre Cid Teles e o tio nem sempre terão sido pacíficas.
Outra das personalidades marcantes da vida de Cid Teles foi a sua irmã, Inácia, constituindo a sua morte um dos acontecimentos dramáticos da vida do poeta, que lhe dedicou o soneto “Alguém”, inicialmente integrado na obra Sou como sou:

De faces brancas como as açucenas,
   Olhos azuis do fluido azul dos céus,
   As mãos esguias, leves como véus,
   Se afagam chagas, aliviam penas.

   De cílios magoados quais verbenas,
   De barbas loiras como os Galileus,
   Dirão os crentes: tu descreves Deus!
   E num sorriso lhes respondo apenas:

   Se o homem foi à Sua imagem feito,
   O que na semelhança é mais perfeito
   Dentre os outros perfeito sobressai.

   E assim um Deus num outro Deus confundo,
   Vejo um no Céu e o outro neste mundo,
Na figura sublime de meu Pai!

Já no seu livro Canta cigarra, canta!, Cid Teles consagrou outro soneto à memória da irmã. Tem o sugestivo e dramático título “Ela partiu”:

          Ela partiu para não mais voltar,
             No mais frio e cinzento amanhecer,
             E já sem voz p’ra me poder dizer
             A mágoa que sentia em me deixar.

             Ela partiu deixando-me a penar
             A mágoa sem remédio de a perder,
             E já sem forças para procurar
             Outra qualquer razão para viver.

             Ela partiu para o distante Além
             Onde Deus encontrou, e onde também
             De novo se juntou aos nossos Pais.

             Gotas d’água deste beiral da vida,
             Uma cai, outra cai, e outra em seguida
A cair não demora muito mais!

            Como um dia escreveu Ortega Y Gasset, o Homem é o Homem e as suas circunstâncias. Dentre estas, destaca-se a terra em que se nasce/cresce, a época histórica em que se vive, a família (educação e genética), a formação cultural (escola, leituras, relações interpessoais…), para já não falar na sorte ou no azar, que também fazem parte da vida. Das influências que o poeta recebeu procurarei ocupar-me no próximo artigo. Até lá, amigo leitor, se ainda não o fez – permita-se-me a ousadia de um conselho –, vá até à Biblioteca Municipal de Oliveira do Hospital e requisite uma das obras do nosso poeta. Será, porventura, uma das formas de dar outro significado aos (cada vez mais raros) períodos de descanso…
  
Renato Nunes (renato80rd8918@gmail.com)