domingo, 18 de setembro de 2016

Os piores deuses? Nós.

        O historiador Yuval Noah Harari publicou em 2011 uma obra, intitulada Sapiens. De Animais a Deuses. História Breve da Humanidade. Numa época em que o conhecimento é cada vez mais compartimentado, é meritório o esforço do académico para nos apresentar uma síntese global da evolução da Humanidade (macro-
-História). Trata-se, portanto, de um livro estimulante, que abre com uma questão seminal: como foi possível que o Homem moderno – um ser “insignificante” há cerca de 70.000 anos atrás – tenha conseguido dominar o mundo?
            Eis, pois, uma viagem à noite mais escura da nossa existência, fundamental para compreender a diferença entre o que efectivamente somos e o que apenas imaginamos ser. Um percurso orientado por questões às quais nem sempre os historiadores dedicaram a devida atenção.
         De um modo geral, o professor de “História do Mundo” na Universidade Hebraica de Jerusalém sustenta que terá sido a nossa capacidade de cooperação em larga escala e de modo mais flexível a elevar-nos ao pedestal máximo dos seres, tornando-nos, assim, uma espécie de deuses na Terra. Uma vitória apenas garantida graças à nossa capacidade de linguagem e de imaginação, competências que nos levaram a criar abstracções como o dinheiro, empresas, ou seja, um conjunto de “ficções legais” às quais estaremos cada vez mais ligados. O nosso mundo e a nossa sobrevivência parecem depender, em grande medida, da confiança que continuamos a depositar nestas ilusões. Confiança é, pois, uma palavra-chave na actualidade.
             Ora, a crise económica global iniciada em 2008, um pouco à semelhança da Longa Depressão que rebentou em 1929, constituem dois possíveis exemplos do que pode suceder quando existem demasiadas ilusões, nomeadamente aquela que nos leva a acreditar que é possível fazer indefinidamente mais dinheiro apenas com dinheiro. Um problema cuja origem pode ser situada antes do século passado, pois Yuval Harari descreve-nos o caso da “Bolha do Mississípi”, uma crise de natureza especulativa do sistema financeiro, sublinhe-se, ainda em pleno século XVIII.
            Além das bolhas de natureza especulativa, o mundo contemporâneo vive imerso em muitas outras ilusões. Como “pessoas sensíveis” que somos – parafraseando Sophia de Mello Breyner Andresen – não matamos galinhas, mas comemo-las. Vamos buscá-las ao talho, já limpas e cheirosas, ignorando o percurso que, na maior parte dos casos, fizeram até chegar ali. As circunstâncias em que são criados os animais que nos servem de alimento são recuperadas pelo historiador israelita de um modo difícil de esquecer. Eis a legenda que acompanha uma imagem onde se vêem pintainhos em cima de um tapete rolante de uma incubadora comercial:
       “Pintainhos machos e fêmeas imperfeitas são excluídos do tapete rolante e asfixiados em câmaras de gás, colocados em destruidores automáticos ou, simplesmente, atirados no lixo, onde são esmagados até à morte. Centenas de milhões de pintainhos morrem todos os anos nestas incubadoras”.
            Como se comprova pelo excerto transcrito, o best-seller internacional que inspira este artigo foi escrito de um modo didáctico e límpido, algo difícil de encontrar na maioria dos historiadores portugueses. Trata-se, de resto, de uma obra que procura desconstruir várias ideias que julgamos como adquiridas, constituindo, por isso, um estímulo à reflexão e um desafio à nossa capacidade para “pensar fora da caixa”. Primeiro exemplo: “A Terra de há 100 milénios era pisada por, pelo menos, seis espécies diferentes de homens”, asserção que nos leva a problematizar a linha de progresso contínuo, segundo a qual a hominização é, vulgarmente, apresentada nos manuais de História (do Australopithecus até ao Homem moderno). Segundo exemplo: alguns animais ditos irracionais conseguem mentir – “já foi visto um macaco-de-
-Tarrafe a gritar «Cuidado! Um leão!», sem que houvesse um leão por perto. O sinal de alarme assustou, convenientemente, um outro macaco que tinha acabado de encontrar uma banana, deixando o mentiroso sozinho para poder ficar com o prémio para si”. Terceiro e último exemplo: a tragédia ecológica, pela qual somos responsáveis, iniciou-se muito antes da Revolução Industrial – “O Homo Sapiens levou à extinção perto de metade dos animais de grande porte do planeta, muito antes de os humanos terem inventado a roda, a escrita ou as ferramentas de ferro”.
            Importa, porém, dizer que Yuval Harari, doutorado em História pela Universidade de Oxford, parece obcecado pela “síndrome das descobertas” (expressão consagrada pelo historiador Luís Reis Torgal), o que o leva a colocar questões nem sempre muito objectivas, como a tentativa de comparar o grau de felicidade do Homem antes e depois da invenção da agricultura ou, ainda a título ilustrativo, saber se existe justiça na História.
            O perigo de idealizar o passado – a que o próprio investigador se refere – parece, por vezes, levá-lo a apresentar uma perspectiva cor-de-rosa dos tempos pré-
-históricos: “A economia de recolecção garantia à maior parte das pessoas vidas mais interessantes do que a agricultura ou a indústria”. Ademais, considerar a passagem do paleolítico ao neolítico como “a maior fraude da História” assemelha-se-me bastante redutor, pois todos os progressos (qual moeda com duas faces) são sempre acompanhados de desvantagens. Claro que inventar a agricultura significou “acelerar a passadeira da vida”, o que nos trouxe novos problemas (diminuição da altura média, inflamação das articulações, cáries dentárias, doenças infecciosas como a tuberculose – na sequência da domesticação dos animais…). É, porém, importante não perder de vista a necessidade de fazer um balanço dos aspectos positivos e negativos, reflexão que me leva a pensar no dramático período de luta pela sobrevivência que os nossos antepassados caçadores-recolectores viveram, encontrando-se completamente dependentes das misteriosas forças da natureza, desde logo, da grande instabilidade do clima, erupções vulcânicas, cheias, bem como das perigosas migrações a partir de África (continente que até hoje continua a ser considerado o berço da Humanidade)...
            O optimismo algo exacerbado que parece atravessar as 490 páginas da obra é refreado pelas palavras finais do autor no posfácio, intitulado “O animal que se tornou um deus”:
                                   Infelizmente, o domínio sapiens na Terra produziu, até agora, pouco de que possamos orgulhar-nos.
                                               […] Ainda pior: os humanos parecem mais irresponsáveis do que nunca. Deuses autoproclamados, com apenas as leis da física para nos fazerem companhia, não somos responsabilizados por ninguém. Estamos, assim, a espalhar o caos sobre os nossos companheiros animais e o ecossistema envolvente, em busca de pouco mais do que o nosso próprio conforto e divertimento, sem, no entanto, nos darmos por satisfeitos.
                                               Existirá algo mais perigoso do que deuses insatisfeitos e irresponsáveis, que não sabem o que querem?

            Dito isto, também não poderemos ignorar os avanços já registados pelo Homo Sapiens, nomeadamente a partir do século XVIII. Como o próprio historiador faz questão de recordar, em 1958, um estudante negro chamado Clennon King candidatou-se ao ensino superior. Consequência: foi julgado e internado num asilo psiquiátrico, pois o juiz “considerou que uma pessoa de cor tinha, decerto, de ser louca para pensar que poderia ser admitida na Universidade do Mississípi”.
            Existem ao longo de toda a obra algumas afirmações que me parecem, no mínimo, discutíveis. Registo alguns exemplos, embora daí decorra o perigo de descontextualizar o pensamento do autor. Faço-o, sobretudo, em jeito de desafio ao leitor, para que estude a obra e chegue às suas próprias conclusões:
            “A vida de um camponês é menos segura do que a de um caçador-recolector. […]. A vida nas aldeias trouxe, certamente, alguns benefícios imediatos aos primeiros agricultores, como uma melhor protecção contra animais selvagens, a chuva e o frio. No entanto, para a pessoa comum, as desvantagens provavelmente suplantam os benefícios”;
            “À medida que o século XXI se vai desenrolando, o nacionalismo está a perder rapidamente terreno”.
            “Hoje, a humanidade quebrou a lei da selva. Existe, por fim, uma verdadeira paz e não apenas uma ausência de guerra. Para a maior parte dos regimes, não existe um cenário plausível que conduza a um conflito aberto dentro de um ano”.
            Ademais, datar o início da Revolução Industrial há “500 anos” afigura-se-me abusivo.
            Entre outros aspectos, teria sido importante, aquando da explicitação apresentada em torno dos ratings dos vários países, que o autor reflectisse um pouco sobre os negócios obscuros que envolvem as agências encarregues da atribuição destas classificações de referência mundial. O documentário Inside Job, realizado por Charles Ferguson, em 2011, daria um bom mote para o efeito...
            Outrossim, não poderemos também ignorar a crescente capacidade de adaptação demonstrada pelo Homem moderno em relação às suas circunstâncias e à necessidade de dominar a Natureza. A sua sobrevivência e domínio, desde logo sobre as restantes espécies humanas (que poderá ter inclusivamente destruído, caso dos Neandertais), também dependeram disso. 
            Em conclusão, é notável a capacidade de Yuval para interligar os conhecimentos e apresentar uma visão de síntese da globalidade. Considero, portanto, tratar-se de uma obra de referência, que merece a maior divulgação possível. Assim, se este breve artigo não foi suficiente para despertar o seu interesse, amigo leitor, saiba ainda que Yuval Harari – aludindo a vários investigadores – menciona a possibilidade de em 2050 o homem se tornar “amortal”…
            De resto, vale a pena visualizar esta intervenção do historiador e depois mergulhar na leitura da obra: https://www.ted.com/talks/yuval_noah_harari_what_explains_the_rise_of_humans?language=pt#t-24057
             Afinal, os admiráveis (mas também perigosos) “mundos novos” que se abrem diante de nós exigem cidadãos cada vez mais atentos e interventivos na sua pólis. A ética e a memória histórica são um imperativo de todos os tempos, mas sobretudo desta época em que os novos poderes do Homem, cada vez mais egoísta, parecem conduzir-nos ao nosso próprio fim – pelo menos como nos conhecemos – e igualmente à extinção de inúmeras espécies, a começar pelos anfíbios e passando, entre outros, pelos grandes primatas do planeta (Público, 10/9/2016).
            Seremos mesmo Sapiens, o tal “Homem Sábio”?

            Renato Nunes (renato80rd8918@gmail.com)

terça-feira, 17 de maio de 2016

Serra da Estrela um espaço que ambiciona chegar a Geoparque

Portugal é um território que apresenta uma enorme diversidade de paisagens, que de acordo com as suas especificidades, poderão usufruir de valências para as geociências que é necessário ter em conta. Em Portugal além dos 4 Geoparque já referenciados pela UNESCO existe na Serra da Estrela um projeto para a candidatura daquele espaço a Geoparque. O projeto foi intitulado por “Aspering Geopark Estrela”. Este Geoparque que alberga a área de 9 concelhos e caracteriza-se pela existência de uma grande diversidade geológica, sendo o granito a rocha predominante, subsistindo também xistos grauvaques. No que concerne à geomorfologia esta é uma área com uma enorme riqueza, estando essencialmente associada a vestígios de cariz glaciar.
As principais geoformas glaciares da Serra da Estrela têm várias designações: formas erosivas se nos estivermos a referir a circos ou vales glaciários e formas de acumulação, como por exemplo moreias e blocos erráticos.
Os vestígios glaciares da Serra da Estrela representam de forma muito clara os limites da área glaciar, as moreias, são detritos que estão na origem da passagem do glaciar, enquanto que os lagos se destacam  por serem locais, onde é possível visualizar através de estrias o percurso seguido pelo glaciar. Os glaciares têm uma grande importância, pois as diversas línguas através do enorme poder do gelo como agente erosivo, modelam a paisagem e permitem observar formas de relevo únicas e com um grande interesse estético e paisagístico.
O reconhecimento dos locais com interesse geomorfológico de cariz glaciar e periglaciar incidiu naqueles que pela sua dimensão e fácil interpretação mereceram ser distinguidos.
Dos 10 geossítios da Serra da Estrela, destaco 3 que pela sua importância para as geociências foram inventariados no âmbito, do património geológico de relevância nacional: O vale glaciar do rio Zêzere refere-se ao melhor exemplo de um vale em forma de U de Portugal, inclui ainda vários depósitos glaciários e fluvioglaciários, os covões (Ametade e Albergaria) e os vales suspensos (covões e candieira); a lagoa comprida corresponde a um dos mais importantes campos de blocos erráticos de toda a Serra da Estrela; assim como permite a visualização de estrias e polimentos que indicam o percurso seguido pelo glaciar; a pedrice corresponde a uma elevada concentração numa área coberta por macroclastos graníticos, sendo considerado o melhor exemplo de processos de gelifração.
A designação como geossítios de 10 locais da Serra da Estrela, será benéfico para as populações, pois promove-se uma estratégia baseada no geoturismo que proporciona o bem-estar mantendo o máximo respeito pelo meio ambiente. A futura criação de um geoparque na Serra da Estrela, assegura o desenvolvimento social, económico, cultural sustentável, assegura a realização de parcerias, estimula a investigação nos territórios e contribuir ativamente para a existência de iniciativas conjuntas (publicações, troca de informações, realização de conferências, projetos comuns, etc.).
Caso seja criado o geoparque na Serra da Estrela, ocorrem a criação de vários projetos ou iniciativas locais, tais como a realização de ações de formação para que as pessoas possam compreender melhor as mais valias do território onde habitam. O queijo Serra da Estrela, um símbolo da região, poderá ver na criação do geoparque um sinal de crescimento, ao qual se poderão juntar outras ideias inovadoras que promovam os produtos da região

As sinergias espaciais devem ser frequentes devendo toda a população sentir parte de um projeto que é de todos. Além das atividades económicas locais, neste processo de divulgação e promoção é necessário incluir as escolas e as empresas de desporto aventura que poderão ver na melhor divulgação deste espaço o mote para que a população mais jovem se ligue aos ideais do desenvolvimento sustentável, transmitindo-o aos seus familiares e conhecidos.

sábado, 16 de abril de 2016

Geoparques e os conceitos que os influenciam

Quando falamos da temática dos Geoparque é muito importante percebermos vários conceitos que nos permitirão perceber melhor esta temática tão vasta e abrangente.
Os conceitos de Geodiversidade e Biodiversidade são conceitos complementares que diferem apenas no seu objecto de estudo. Geodiversidade refere-se aos elementos bióticos (vivos) enquanto Biodiversidade diz respeito aos elementos abióticos (não vivos).
O conceito de Geodiversidade é recente, tendo sido pela primeira vez abordado em 1993 aquando da Conferência de Malvern sobre Conservação Geológica e Paisagística que decorreu no Reino Unido. Segundo a Royal Society for Nature Conservation do Reino Unido “Geodiversidade consiste na variedade de ambientes geológicos, fenómenos e processos activos que dão origem a paisagens, rochas minerais, fósseis, solos e outros depósitos superficiais que são o suporte para a vida na terra”.
O Conceito de Biodiversidade e Geodiversidade estão ligados, pois determinados seres vivos só sobrevivem em condições abióticas específicas. Por exemplo há plantas que apenas subsistem com um determinado tipo de rocha, com ambiências climáticas muito específica. O património construído é um excelente espelho da Geodiversidade local. O Homem está dependente da natureza para sobreviver, pois precisa dos solos para a produção agrícola ou dos combustíveis fósseis para a produção de energia. Há uma intrínseca relação entre o Homem e a Natureza não só no que respeita às necessidades fisiológicas mas também às edificações, pois o Homem tem em conta a proximidade da matéria prima como por exemplo o tipo de rocha para a realização das suas construções.
Com a crescente preocupação ambiental tem-se observado, através de vários estudos científicos que a Biodiversidade se encontra severamente ameaçada, havendo a necessidade de realizar políticas de Geoconservação.
O conceito de Geonservação por si só não tem merecido um consenso entre os especialistas. Segundo Brilha a Geoconservação é fundamental para a manutenção da biodiversidade mas também porque a geodiversidade, só por si tem um valor intrínseco, mesmo que não se encontre associado a uma forma de vida.
A Geoconservação consiste numa gestão sustentável dos recursos bióticos (biodiversidade) e abióticos (geodiversidade). No entanto em sentido restrito é necessário entender a vastidão de recursos que existem no planeta e realizar uma inventariação rigorosa dos sítios mais relevantes para proceder à sua valorização, interpretação, divulgação e monitorização dos sítios.
A valorização dos recursos é fundamental para percebermos a importância e o interesse que lhe atribuímos. Quando falamos em locais sem interesse científico mas com interesse para a geodiversidade falamos de elementos de geodiversidade (ex situ) pois estão no local onde foram criados pela natureza, ou então elementos de geodiversidade (in situ) se forem transportados para outro local como por exemplo museus.
Quando os locais têm um inegável interesse científico, pedagógico, cultural, turísticos passam a designar-se por património geológico ou seja geossítio caso ainda se possam observar no local onde foram criados ou
elementos de património geológico se forem transportados para outro local para serem melhor estudados ou preservados.
A realização de políticas de Geoconservação tem-se debatido com diversos problemas associadas à atividade humana como por exemplo: exploração de recursos geológicos, desenvolvimento de obras e estruturas, gestão das bacias hidrográficas, desflorestação e agricultura; atividades recreativas e turísticas e outras.
Às ameaças de carácter antrópico associa-se ainda a falta de legislação sobre o tema, a inércia das autoridades para legislar sobre políticas de geoconservação e por outro lado há um desconhecimento das autoridades para a importância da geoconservação.

quinta-feira, 31 de março de 2016

Famílias especiais

Os pais de crianças com algum tipo de deficiência enfrentam uma das batalhas mais árduas que a vida pode confiar a qualquer ser humano. Ora, entre as problemáticas com as quais já trabalhei, as Perturbações do Espectro do Autismo (PEA) representam, sem margem para dúvida, uma das realidades mais complexas e extenuantes, quer do ponto de vista físico, quer do ponto de vista mental.
            Importa começar por dizer que estamos perante uma síndrome ainda insuficientemente estudada (como, de resto, quase todas as que se relacionam com o desenvolvimento do enigmático cérebro), tendo apenas sido referenciada, pela primeira vez, durante a II Guerra Mundial (Leo Kanner, 1943 / Hans Asperger, 1944), embora o conceito já tivesse sido introduzido por Bleuler em 1911 (Ana Saldanha – O jogo nas crianças autistas, Lisboa, Coisas de Ler, 2014, p. 45).
            Actualmente, as PEA continuam a não ter cura e em cerca de 75% dos casos estão associadas à deficiência mental, sendo que ainda não existe um levantamento estatístico rigoroso do número de casos existentes em Portugal. Os números já conhecidos revelam-se, porém, assustadores, para todos aqueles que vêem este nome ligado ao que mais desejaram na vida.
            De facto, aceitar que um filho nosso tem problemas não é um processo fácil. Trata-se, contudo, de uma etapa decisiva para que possa depois ser implementado um programa de intervenção eficaz, que vá ao encontro das reais necessidades da criança, tal como ela é e não como os pais um dia desejaram que fosse. Vários investigadores chegam, de resto, a equiparar este doloroso período de aceitação da realidade a um processo de luto: o filho imaginado, desde logo, quando ainda se encontrava no ventre da mãe, “morre”, para poder aparecer no seu lugar a criança que, de facto, temos nos braços. Uma etapa, pois, incontornável, que tem de ser ultrapassada de modo positivo, sob pena de deixar mazelas para o resto da vida, sobretudo no elo mais frágil: a criança. 
            Talvez o autismo seja ainda mais difícil de aceitar do que a maioria das “incapacidades”, porque, em muitos casos, a criança parece desenvolver-se de um modo perfeitamente “normal” até por volta dos 3 anos, momento a partir do qual começa, inesperadamente, a regredir, perdendo várias das faculdades/competências já adquiridas. A preocupação com o facto de a criança não conseguir falar é, regra geral, um dos sinais que mais preocupa os pais e os conduz à procura de respostas junto dos especialistas. Um caminho complexo que, depois de iniciado (com muita dor e receio…), apresenta sempre um desfecho imprevisível.
            Quase sempre, o diagnóstico – por volta dos 4 anos – cai que nem uma bomba sobre a cabeça das famílias. Com ele, inicia-se uma dramática luta de resistência, ao longo da qual – importará reconhecê-lo – nem todos os casais conseguem permanecer unidos (seria importante conhecer, de um modo fidedigno, o número de divórcios também associados a estas matérias). Não raramente, os pais sentem-se sós, desgastados, amargurados e ansiosos, o que pode originar episódios de revolta, incluindo contra os profissionais da educação. De resto, sejamos honestos, é ainda incipiente o trabalho de efectiva articulação que existe entre as escolas portuguesas e as famílias.
            De um ponto de vista prático, escolas e famílias permanecem ainda, em grande parte, de costas voltadas, atribuindo-se mutuamente culpas por tudo e mais alguma coisa. Ora, no caso das crianças consideradas como tendo Necessidades Educativas Especiais esta ruptura assume consequências ainda mais graves. Faltam-nos, por conseguinte, efectivos projectos de intervenção psico-pedagógica junto de famílias nucleares. Falta-nos construir uma Escola de pontes, onde pais, professores e todos os demais profissionais possam colaborar de um modo regular, pensando única e exclusivamente no desenvolvimento integral dos mais novos, procurando soluções em conjunto que permitam rentabilizar todos os momentos da vida da criança, partilhando humildemente dúvidas e inquietações. Faltam-nos pontes e, sobretudo, uma cultura de humildade, onde todos estejam predispostos a aprender...
            De um modo muito sintetizado, poderá dizer-se que a criança portadora de uma PEA apresenta problemas de interacção social, de imaginação e de comunicação (podendo mesmo nem sequer falar). Poderá preferir isolar-se a ter de conviver com os seus pares, apresenta comportamentos repetitivos (estereotipias), que podem, por exemplo, passar pelo obsessivo interesse em rodopiar todos os objectos que encontra pela frente ou alinhar os brinquedos sempre na mesma posição/repetir invariavelmente as mesmas rotinas ou abanar as mãos. Para além destes comportamentos auto-
-reguladores, poderemos ainda falar de actos de auto e heteroagressão, que habitualmente podem interpretar-se enquanto manifestações da criança para obter rapidamente o que deseja (comportamentos funcionais) ou de episódios de riso incontrolado, que podem ser interpretados pelo adulto como atitudes desafiadoras, mas que, por vezes, mais não são do que comportamentos de auto-estimulação ou até de simples manifestações de ironia pela falta de expectativas em relação às suas potencialidades. Acrescentem-se ainda episódios de birra e choro frequentes, uma grande dificuldade em realizar novas aprendizagens, interpretar expressões faciais ou aceder a contextos diferentes do habitual (por exemplo, sair à rua ou frequentar um local desconhecido). O desvio sistemático do olhar e a necessidade de isolamento são talvez as duas características mais conhecidas, mas importa não esquecer que por trás deste conceito (PEA) se esconde uma panóplia extremamente diversificada de situações complexas, pois, de facto, cada caso é sempre um caso, daí que as generalizações sejam muito perigosas. Existem, de resto, um conjunto de representações amplamente divulgadas (nomeadamente pela literatura e pelo cinema), que, no meu entendimento, nem sempre correspondem à realidade subjacente a esta problemática. Assim, a título ilustrativo, nem sempre a criança autista sente desprazer no contacto com o outro – tem, isso sim, grande dificuldade em estabelecer relações afectivas, compreender gestos simbólicos ou sentidos metafóricos, pois o que é intuitivo para a maioria das crianças precisa, no caso do autista, de ser inicialmente explicado e racionalizado, para que possa depois ser interiorizado. Muitas vezes, a criança com autismo não brinca porque, pura e simplesmente, não sabe fazê-lo, não percebe como chegar ao outro, não possui ferramentas para compreendê-lo (empatia) e, por isso, assume comportamentos pouco apropriados, mas que são, frequentemente, a sua forma de dizer “olhem para mim… eu também quero brincar!”. Além disso, o desvio do olhar não significa, de todo, que a criança com autismo não observe o que se passa em seu redor. Bem pelo contrário! Por vezes, existe mesmo uma hipersensibilidade que leva estas crianças a “ler”, em poucos instantes, de um modo quase automatizado, os ambientes sensoriais/emocionais envolventes. E essa hipersensibilidade pode também estender-se ao modo como se percepcionam determinados cheiros, ruídos, luzes, texturas que se acumulam vertiginosamente nos seus cérebros e os conduzem a um momentâneo estádio de insuportável confusão e sofrimento. Um estado de sobreexcitação que os faz desejar ardentemente o refúgio do silêncio. A este propósito, registe-se que as estereotipias (v.g., bater as mãos) constituem, muitas vezes, uma forma que a criança encontrou para se ajudar a si mesma, tal como o condutor tem necessidade de fechar os olhos quando se vê surpreendido com os máximos de um veículo que circula em sentido oposto. Outrossim, a essa hipersensibilidade poderemos associar outras características, que – se correctamente exploradas pelos vários profissionais – poderão ser pontos fortes importantes da criança com autismo: memória visual claramente acima da média e necessidade de respeitar regras, logo menor predisposição para o erro (o ser humano dito “normal”, à medida que se sente confiante na realização das suas tarefas, tende a saltar etapas, o que aumenta exponencialmente a probabilidade de erro).
            Sendo uma problemática ainda sem cura, que afecta, sobretudo, o sexo masculino (numa proporção de, aproximadamente, 3 a 4 para 1), existem, contudo, um conjunto de programas de intervenção educativa que podem fazer toda a diferença, sendo que um dos mais conhecidos é o modelo estruturado TEACCH (Treatment and Education of Autistic and Related Communication Handicapped Children). O desenvolvimento e a implementação de programas de comunicação alternativa pode também constituir outra importante via para dotar a criança com autismo de uma maior autonomia e bem-estar, ao mesmo tempo, sublinhe-se, que estimula o desenvolvimento regular da fala (métodos complementares). De resto, as últimas pesquisas científicas têm trazido algumas esperanças, sendo que não posso deixar de destacar esta notícia que o Público divulgou recentemente: “Foi possível reverter sintomas do autismo em ratinhos adultos” (19/02/2016, p. 24). É mais uma luz num mar imenso de escuridão, mas importa não deixar de ter os pés assentes na terra, pois é pernicioso vender falsas expectativas a famílias particularmente fragilizadas por um combate extremamente desgastante. Um exemplo concreto: por vezes, em determinadas palestras que publicitam uma determinada metodologia de intervenção em detrimento de outras são apresentados um conjunto de casos de grande sucesso, silenciando – consciente e deliberadamente – os que não tiveram assim tanto êxito…     
            Pese embora todos os avanços já verificados (e, nestes casos, os pequenos passos são sempre grandes vitórias), para muitas famílias, a aproximação dos 18 anos e o fim da escolaridade obrigatória trazem consigo uma angústia ainda maior, pois, frequentemente, as instituições de acolhimento não conseguem dar resposta aos inúmeros pedidos que lhes chegam às mãos. Muitas vezes, não resta aos pais, já envelhecidos, ficarem em casa com os filhos, não raramente muito violentos e no auge das suas forças físicas. Uma situação verdadeiramente dramática e que deita por terra todo o trabalho e o investimento que o Estado dito “inclusivo” desenvolveu enquanto o jovem esteve na Escola. Depois, importará perceber até que ponto a institucionalização destas pessoas representa, de facto, a melhor opção para o seu bem-estar físico, mas, sobretudo, mental…

            Assim, no momento em que se celebra o “Dia Mundial da Consciencialização do Autismo” (2 de Abril), gostaria de dedicar este breve texto a todas as famílias que enfrentam, no seu dia-a-dia, esta complexa realidade. De uma delas, anónima, ouvi ainda recentemente um desabafo, no decurso de uma palestra dinamizada em Lisboa: “O nosso menino tem autismo. Foi diagnosticado há 3 anos. E o autismo foi a melhor coisa que aconteceu na nossa vida. O autismo foi a melhor coisa que aconteceu na nossa vida”. É uma lição de amor – incondicional –, que dificilmente poderei esquecer.  
            São, de facto, famílias especiais, que ainda no passado recente, sublinhe-se, chegaram a ser apontadas como as principais responsáveis pela desordem neurológica dos filhos (teorias psicogenéticas, das quais parece ter sobrado a infeliz expressão “mãe-
-frigorífico”). Na verdade, trata-se de famílias que ainda hoje mereciam outro tratamento por parte de quem nos governa, mas também de todos nós, enquanto simples cidadãos, nos momentos mais banais do quotidiano (basta estar atento…).
            Em Abril, mês da conquista da liberdade, vale a pena reflectir nas ditaduras (pessoais e sociais) que ainda não derrubámos. É, afinal, para as identificar, compreender e tentar combater que ainda continuo a escrever.
Renato Nunes

PS – agradeço à professora Ana Teixeira a produção e cedência da magnífica ilustração que acompanha este texto.