domingo, 23 de junho de 2019

Lítio, a perigosa promessa do “ouro branco”


O escritor beirão Aquilino Ribeiro (1885-1963) publicou, durante a II Guerra Mundial, um notável romance intitulado Volfrâmio, inspirado na exploração do subsolo português pela Alemanha e pelos Ingleses, em busca do volfrâmio, importante matéria-
-prima utilizada, por exemplo, para fortalecer as cápsulas das granadas e para conferir ao “aço uma maior resistência ao calor”: indispensável, portanto, “em máquinas como em armas” (António Louçã – Hitler e Salazar. Comércio em tempos de guerra, 1940-
-1944
, ps. 8 e 43).  
No livro em causa ficam bem evidentes as consequências dramáticas da ávida busca pelo “ouro negro”: abandono e destruição dos campos agrícolas; desenvolvimento do contrabando e da especulação; perseguição do lucro (pequenas “fortunas”), sem olhar a meios, que logo depois se dissipava para dar a aparência de novo-rico. Cobiça a sobrepor-se a todos os valores humanistas. Numa palavra: morte. Consequências que, de resto, se estendem até aos dias de hoje, como bem sabem os habitantes das zonas circundantes das minas, agora tantas vezes confiadas ao abandono ou até mesmo convertidas em espaços museológicos. Isto para já não falar, por exemplo, na proveniência do ouro utilizado pelos alemães para pagar o volfrâmio português. Ouro esse tantas vezes espoliado aos judeus que acabariam por ser mortos nos campos de concentração nazis…   
Em 1958, o aludido romancista beirão editou outro notável romance intitulado Quando os lobos uivam, a respeito da apropriação dos baldios pelo Estado Novo, tendo em vista a sua florestação coerciva. Esta questão gerou vários confrontos entre as populações locais e os Serviços Florestais, incumbidos de aplicar as medidas previstas pelo governo.
Ora, os dois livros anteriormente referidos têm uma actualidade surpreendente, na medida em que o Governo português tem vindo a permitir que diversas multinacionais iniciem um conjunto de prospecções em território nacional, tendo em vista a possível exploração do lítio (v.g. Aviso n.º 6518/2019, publicado em Diário da República, datado de 9/4). A área abrangida pelas prospecções – ainda que neste momento mal conhecida – é extremamente significativa, integrando, por exemplo, as Terras do Barroso (a norte), mas também uma vasta região do centro do país.
Entre outros aspectos, parece evidente que o recente desenvolvimento dos carros eléctricos tem vindo a gerar uma maior necessidade de matéria-prima para a produção de baterias. Daí esta desenfreada corrida ao lítio, apresentada por alguns magnatas como uma oportunidade para o interior profundo de Portugal se desenvolver e enriquecer.
Não é esta, porém, a minha opinião e digo isto com toda a carga ideológica que implica este género de tomada de posições. Os potenciais riscos associados à exploração do subsolo em busca do lítio são demasiado elevados para justificar alguns dividendos que meia dúzia de poderosos e outros tantos mangas-de-alpaca poderão obter. A extracção de rochas provocará irreversíveis impactos paisagísticos: crateras enormes, contaminação dos recursos hídricos, ruído, poluição do ar (partículas em suspensão) e, consequentemente, doenças graves, desde logo, do foro respiratório. Isto significará comprometer o futuro das novas gerações e o desenvolvimento sustentável de áreas significativas do país.
É, por conseguinte, fundamental quebrar este silêncio político que estrategicamente tem vindo a enredar esta matéria. É fundamental perguntar onde estão os estudos de impacto ambiental que deveriam ter, obrigatoriamente, antecedido estas prospecções. É fundamental perguntar se as populações locais estão a ser ouvidas e, em caso afirmativo, se foram (e são) devidamente informadas a respeito do que verdadeiramente está em causa.
Os dramáticos incêndios que afectaram o país, em 2017, trouxeram um conjunto de novas promessas políticas, vindas dos mais diferentes quadrantes. A verdade dos factos, porém, é que, apesar da demagogia reinante, as populações do interior foram e continuam a ser votadas a um tremendo abandono por parte do poder central. O silêncio que envolve esta negociata (é isto que realmente está em causa) demonstra-o com todas as letras.
Escreveu Miguel Torga, em 1942, no volume II do seu Diário: “Devo à paisagem as poucas alegrias que tive no mundo” (1943, p. 140). A avidez das multinacionais em busca do novo “ouro branco” pode transformar o que ainda sobra do santuário em que vivemos num autêntico inferno. A apropriação dos baldios e a expropriação de territórios, em nome do suposto interesse nacional, será apenas o início desse dramático processo silenciosamente consumado.
É escusado, pouco ou nada aprendemos com a História. Ou os cidadãos se mobilizam ou estaremos condenados a destruir e deixar destruir quase tudo o que temos de melhor. Aos nossos filhos e netos deixaremos as cinzas de tudo o que permitimos destruir, que mais não seja com a cobardia do nosso silêncio.     
Renato Nunes (renato80rd8918@gmail.com)

domingo, 9 de junho de 2019

O sofrimento nos olhos deles (Reportagem Jornal Expresso)




Este fim de semana li no expresso uma reportagem que retrata a triste realidade do maior campo de refugiados do Mundo, no Bangladesh. Optei apesar da sua extensão por expor a reportagem na integra.

"A fuga de mais de 740 mil pessoas da minoria étnica muçulmana rohingya, de Myanmar, fez com que nascesse no sul do Bangladesh o maior campo de refugiados do mundo. Em apenas três meses. São hoje 1,2 milhões de pessoas dependentes de assistência humanitária

Há nos olhos raiados de Jamila uma tristeza profunda. “Quando me lembro da situação em Myanmar quase choro.” Pausa.
As frases chegam devagar e sem força. Saem dos seus olhos mais palavras do que as que a boca carrega. Não precisaria de falar para que se entendesse a dureza impregnada nos seus 50 anos. “Incêndios, pessoas chacinadas, casas queimadas, pessoas violadas.” Perdeu o marido. O irmão. A irmã. “Foram mortos pelos rakhines.”
Ela, as quatro filhas, os dois filhos e o neto conseguiram fugir. Embrenharam-se floresta dentro durante quatro dias até alcançarem a margem do rio Naf. “Sem comida. Sem água”, lembra sentada numa cadeira de plástico à entrada da casa de bambu que lhe serviu de teto no último ano e meio de vida. Para aqui chegar, ao Bangladesh, faltava-lhe ainda esperar cinco dias na margem do rio até que lhes fosse possível fazer a travessia de barco. Foram necessárias 12 horas para chegar, por fim, ao país. “Sofremos muito. Tínhamos fome. Tivemos de beber água salgada.”
Regressamos a agosto de 2017, quando uma vaga de violência explodiu no Estado de Rakhine, em Myanmar, entre militares birmaneses e a minoria muçulmana rohingya. Foi este conflito que fez com que nascesse na divisão de Chittagong, Bangladesh, o maior campo de refugiados do mundo. “Eram ondas e ondas de pessoas a chegar sem parar.” Um anos depois a memória de Sunee Singh, responsável pelo departamento político do Programa Alimentar Mundial (PAM), continua bem fresca. “Chovia e eles estavam completamente molhados. Todos choravam. Fiquei chocada e pensei que aquele era um momento que só vemos nos filmes. Não tínhamos comida para todos. Em 2016 tivemos um pequeno influxo de cerca de 75 mil pessoas. Estávamos à espera de algo semelhante ou um pouco mais.” Chegaram mais de 745 mil pessoas em três meses.
Terrível poderá não ser palavra suficiente para descrever as histórias vividas pelos rohingya. Fatama Begum, 33 anos, foi violada por cinco homens. “Primeiro mataram o meu irmão. Depois atiraram-me para o lado e um rasgou-me as vestes, agarrou-me pela boca e manteve-me quieta. Espetou-me uma faca e manteve-a ali enquanto os homens me violaram.” Sobreviveu. A filha de Hassina, com um ano, não. Foi retirada dos braços da mãe e atirada viva para uma fogueira onde os corpos dos homens que haviam sido mortos eram queimados. Hassina, de 20 anos, e outras mulheres foram levadas depois até uma casa onde foram violadas, esfaqueadas e pontapeadas. A casa foi depois incendiada, mas ela acordou a tempo de fugir. As outras não.
De acordo com os Médicos sem Fronteiras e a Human Rights Watch (HRW ) mais de metade das vítimas de violação em tratamento nos campos têm menos de 18 anos, algumas menos de 10 anos. Não se sabe o número total de vítimas. Referem-se milhares. Só ao Fundo de População das Nações Unidas, UNFPA, foram reportados mais de 10 mil casos. O acesso a elas está vedado aos jornalistas, seguindo o protocolo internacional para que o trauma não seja repetidamente revivido. Apesar do apoio psicológico, 20% da população do campo ainda apresenta problemas do foro mental, segundo dados do ACNUR.“O estado em que chegaram era gravíssimo.”, recorda Manuel Pereira, coordenador de emergências da OIM em Cox Bazar. “Em termos de resposta humanitária, a pressão das pessoas a chegar não tem muitos precedentes.” 52% eram mulheres. Mais de meio milhão crianças. Durante o denominado estado de emergência, organizações governamentais e não-governamentais trabalharam em conjunto para dar resposta ao monstruoso influxo de pessoas: providenciar cuidados de saúde básicos, abrigo, alimentação e água, preparar o terreno para as chuvas fortes. “Foi uma resposta muito em cima do joelho para garantir que as pessoas tinham os mínimos.”, explica Pereira.
O MAIOR CAMPO DE REFUGIADOS DO MUNDO
Os rohingyas foram acampando entre Teknaf e Palong Khlai, dois territórios do Bangladesh separados por mais de 50 quilómetros e embrenhados no santuário de vida selvagem de Teknaf. A vegetação teve de ser destruída para que dos montes se fizesse casa para o maior
influxo de refugiados que o mundo presenciou na sua História. Aí nasceram 33 campos, adicionados aos refugiados que já se haviam instalado no local anteriormente a 2017, perfazendo um total de 909 mil rohingyas.

Mas os cálculos incluem ainda as comunidades afetadas pelo influxo, levando a que o número ultrapasse o milhão — 1,2 milhões de pessoas dependente de assistência humanitária. Os números catapultaram o Bangladesh para o topo mundial das crises humanitárias, atribuindo a este território o título de maior campo de refugiados do mundo.

Do topo de um dos montes em Kutupalong, a cerca de uma hora de Cox Bazar, seria fácil imaginar que a vida se havia aqui instalado há anos. O pó amarelo levado pelo vento quente e forte cobriu os plásticos que formam paredes e tetos em conjunto com o bambu. Os olhos perdem-se na imensidão dos campos.

Há pontes e escadarias feitas em bambu, estradas de tijolo, placas de localização, campos de futebol improvisados, centros de saúde e de distribuição de comida, escolas, mercados, barbeiros, pequenos cafés, muita construção que prepara os campos para a época das monções. Chamar-lhe cidade seria desajustado, dizer organizado é “demasiado forte”. Manuel Pereira prefere a palavra “estruturado”, um terreno gigante onde a vegetação começa a surgir e uma ou outra árvore se manteve hirta.
É necessário descer o monte para se entender as muitas dificuldades. O risco de cólera e de outras doenças infetocontagiosas permanece. Faltam ainda estradas, pontes, centros de alimentação e saúde em lugares estratégicos. Falta reconstruir e reforçar os abrigos, melhorar a iluminação, preparar os terrenos para as cheias, reflorestar. E falta aumentar o número de postos de abastecimentos de água, melhorar o escoamento de efluentes, com consequências no ambiente, na qualidade da água e na saúde. É um leque de trabalhos que conta com a participação dos refugiados.

COMBATER O TRÁFICO HUMANO
Descendo o monte até ao campo 4 entramos no Centro de Mulheres. Escondem-se os rostos entre os lenços. Um sorriso tímido aqui e ali. A cabeça voltada para o chão. Aqui não há homens. Ouve-se o barulho das muitas máquinas de costura vindo de uma das salas do centro, um refúgio da vida, um espaço que pretende dotar as raparigas de qualificações e oportunidades. Sunee Singh, do PAM, criou o primeiro programa mundial de resiliência para mulheres em campos de refugiados, em parceria com outros programas das Nações Unidas e o Governo do Bangladesh. “As mulheres foram as mais afetadas e percebi que, além do apoio psicológico, era necessário providenciar um acompanhamento especializado.” Aqui ensina-se a costurar, a fazer pintura de panos e a arranjar telemóveis. “Estamos a dar-lhes algo que elas nunca tiveram, algo que vai para lá da sobrevivência. Estamos a dar-lhes dignidade, a contribuir para a economia local e do campo.”

Num dos cantos, um pequeno grupo de mulheres junta-se em redor de uma mesa onde se acumulam peças de telemóveis antigos. Ummesalina, olhos presos ao chão, está a aprender a arranjar telemóveis. “Nós encarámos tantas adversidades até chegarmos à margem. Chovia e os montes foram tão difíceis. Aqui somos felizes.” A voz jovem treme por trás da burqa, mas não lhe falha. “Quando ouvi falar do serviço que estava a ser providenciado no Centro de Mulheres disse à minha mãe que era importante vir e ser uma mulher qualificada”, conta enquanto esconde o rosto e fala repetidamente do irmão e da irmã que ainda se encontram em Myanmar. “É muito importante ser educada, porque quando nos casarmos as nossas crianças serão também educadas”, acredita. Na sala ao lado, cheia de tecidos coloridos e antigas máquinas de costura pintadas com flores, as palavras de Khaleda demonstram já a transformação pessoal ocorrida nos últimos meses: “Ser educada permite-nos ser resilientes, ter autoconfiança, fazer parte das decisões da comunidade. Nós não sabíamos sequer escrever o nosso nome”, conta, escrevendo a sua assinatura num caderno, ar orgulhoso e letra vinda de mãos ainda pouco acostumadas ao peso da caneta.
É preciso mais meia hora de viagem para abandonar o grande complexo de Kutupalong-Balukhali onde vivem quase 750 mil pessoas, passar por campos de arroz e estradas em terra batida para chegar ao campo 22, onde o isolamento é visível e as condições de vida ainda mais precárias. As raparigas caminham uma hora para chegar ao Centro de Mulheres deste campo. Sentadas em fila, pedem mais, de olhar determinado. Mais centros, mais máquinas. Ao lado das instalações, Laila, viúva e mãe de três filhos, mostra-nos embevecida a sua horta, fruto das sementes dadas pelo programa. É um quadrado de terra que lhe alimenta a família e lhe gera dinheiro no bolso. Cerca de cinco euros que lhe transformam a vida.

Existem 226 mil mulheres no campo com mais de 18 anos. O programa do Centro de Mulheres iniciado em julho de 2018 chega, por agora, a seis mil mulheres, com um custo de 200 dólares por pessoa [cerca de 175 euros]. Até ao final de 2019 o objetivo é, combatendo a falta de terrenos e financiamento, aumentar o número de atividades, passar de 10 a 14 centros e envolver 15 mil pessoas, incluindo homens.

A questão cultural é, porém, ainda uma grande barreira. As mulheres não tiveram acesso a educação, sofrem um grande isolamento social, são vítimas de violência de género e discriminação étnica. O programa foi apresentado porta a porta. Inicialmente cerca de 5% das mulheres desistiram. Foram proibidas pelo pai ou pelo marido, engravidaram, mudaram de campo.

A par da aprendizagem cada mulher recebe cerca de 10 euros em forma de e-voucher, um incentivo que, pretende-se, funcione como motivador de participação e colmate alguns dos grandes problemas atuais que assolam os campos: tráfico humano, prostituição, trabalho forçado e casamento precoce. A responsável pelo programa explica: “Mulheres, homens e crianças viveram debaixo de uma monitorização muito restrita, de ação e mobilidade, o que os torna muito inocentes e ingénuos, especialmente as raparigas e mulheres que não tiveram muita exposição. Por isso, é fácil enganá-las, dar-lhes esperança. É fácil levá-las para uma teia de crimes.”
Diariamente, 60 mulheres e raparigas são paradas pelas agências de segurança do Bangladesh numa tentativa de abandonar o campo. Entre as raparigas que se encontram a receber assistência médica física e mental por parte da organização após serem resgatadas, dois terços foram vítimas de trabalho forçado e 10% de exploração sexual. “Estes são riscos muito reais vividos pelas crianças nos campos”, reconhece Karen Reldy, da UNICEF.

O Bangladesh tem um dos maiores índices mundiais de casamento precoce. 50% das raparigas casam-se com menos de 18 anos, 18% com menos de 15 anos. A fim de eliminar o problema, a UNICEF criou em parceria com o Governo do país um Plano de Ação Nacional, que pretende erradicar o casamento precoce até 2041, informa Reldy.

POBREZA E MÁ ALIMENTAÇÃO
O suor escorre da testa de Azizur Rahman. A camisa verde escureceu com a transpiração. Azizur e o filho acabam de caminhar vinte minutos desde o centro de distribuição de comida até à pequena casa no campo 3, subindo e descendo montes, com a ração dos próximos 15 dias carregada às costas: 30 quilos de arroz, alguns sacos de lentilhas e óleo de palma.

Há mais de um ano que é esta a alimentação dos cinco elementos da família. As filhas escondem-se nas pequenas separações da casa, enquanto a mulher, Arefa, posicionada atrás de Azizur, se queixa da qualidade do arroz. Estende-o num saco sobre o chão de terra e mostra os arrozeiros que não são consumíveis.

Há um simultâneo sentimento de agradecimento e saturação. “Não temos dinheiro para comprar nada. Temos apenas a ração. Precisamos de mais para nos alimentarmos”, lamenta Azizur. A frustração é generalizada. Desde a sua chegada que os rohingyas vivem, quase na totalidade, sem qualquer fonte de rendimento e um terço da população continua a aceder apenas ao sistema de distribuição geral de comida do PAM. Sacos e sacos seguem sobre os corpos curvados de homens. Um camião de comida circula a cada 15 minutos dos armazéns para os campos. São quase 400 mil quilos de comida distribuída diariamente só para este sistema do PAM. Mas esta é uma realidade em metamorfose.
No campo 5 nasceu o que o PAM apelida de megaloja, um armazém gigante com três vendedores locais. Nas paredes encontram-se cartazes com os 18 ingredientes disponíveis e o preço de cada um. Há filas e filas de sacos de arroz e lentilhas empilhados, vegetais, ovos, especiarias, peixe seco e ainda sabonete. A entrada e saída de pessoas é constante e fora das grades do armazém a curiosidade é evidente. O medo de que os alimentos escasseiem faz com que a meio da tarde as prateleiras estejam quase vazias. Só a partir deste centro são alimentadas 40 mil pessoas. Ao membro feminino mais velho da família foi entregue um e-voucher que funciona por impressão digital, com 750 taka, cerca de 7,5 euros, atribuído a cada membro da família mensalmente. “Estou feliz. Aqui tenho o que a minha família necessita”, diz uma das mulheres. 324 mil pessoas têm já acesso a este sistema através das 21 lojas existentes. O PAM pretende que até ao final do ano todos tenham acesso ao programa alimentar e-voucher a uma distância máxima de 1,5 quilómetros de cada casa.
Nem só de comida vive o homem. Da colina mais elevada do campo 12, Massud escava a terra onde foram colocados seis tanques de água, quase 600 mil litros, o suficiente para providenciar água a 30 mil refugiados Rohingya. São números referentes à primeira fase do sistema de água potável movido a energia solar. É o maior sistema do campo de refugiados do Bangladesh. Será o maior do mundo em campos de refugiados quando o sistema funcionar para o mais de um milhão de pessoas.

O parque com 180 painéis solares está quase concluído. É um plano preparado ao pormenor e com vantagens assinaladas em todas as áreas. Mohan Mishra e Watsan, da equipa WASH (Água, Saneamento e Higiene) da OIM, sublinham a qualidade da água. “Cerca de 70% da água obtida estava contaminada”. As consequências na saúde são previsíveis. Para este projeto, perfurou-se até 400 metros, reduzindo o risco de contaminação e escassez de água e a necessidade de manutenção do sistema. Simplifica-se a operação, diminuem-se as consequências ambientais e cria-se uma rede preparada para a época forte das chuvas, salienta Mohan Mishra.
Os parâmetros humanitários indicam que cada pessoa deverá ter acesso a água até 500 metros. A equipa WASH quer reduzir o número para 100 metros e permitir que cada pessoa usufrua de 17 litros de água diários, ao invés dos 15 indicados. Com estas mudanças, as mulheres, habitualmente responsáveis por carregar a água necessária para a casa, não só precisarão de menos tempo como estarão menos sujeitas à insegurança provocada pelas longas caminhadas noturnas.

"TODOS OS DIAS SÃO DIAS DE PONTA"
Cheira ainda a novo. Se esquecêssemos a realidade para lá das portas deste centro de saúde poderíamos acreditar que estávamos numa vila. No espaço recentemente aberto no campo 3, onde o bambu deu lugar ao tijolo, há uma farmácia, uma sala de emergência, uma sala de partos, espaço para consultas e vacinação e apoio psicológico [nos campos, 4% dos jovens reportaram comportamentos suicidas]. É a imagem que as organizações querem futuramente transportar para as mais de 190 instalações médicas existentes. Os quatro médicos e três assistentes deste centro não têm tempo para parar. “Todos os dias são dias de ponta”, desabafa o clínico, enquanto assiste uma criança vítima de afogamento. Todos os dias, são aqui atendidas 250 pessoas.

“Falamos de pessoas que não tinham qualquer tipo de ajuda médica, mulheres que não sabem que cuidados ter durante a gravidez.”, diz o médico. 30 mil mulheres chegaram ao Bangladesh grávidas (várias em consequência de violações). Mais de 80% continuam a realizar os partos em casa. “Não basta dar assistência médica. É necessário educar sobre os cuidados de saúde mais primários”, refere. Nurbaar concorda. A acompanhar a mãe com um carcinoma, a mulher de 32 anos reconhece que nunca foi a um médico e que os cuidados aqui providenciados são cruciais. Na sala, a maioria dos casos são de varicela, um espelho da realidade atual dos campos: só este ano foram reportados quase 10 mil casos; mais de 340 mil crianças com menos de cinco anos sofrem de subnutrição.

HOW ARE YOU?
As ruas estão cheias de crianças. Algumas descalças, outras desnudas. A pele e a roupa sujas. Um laço rosa a servir de enfeite na cabeça das meninas. Varicela no corpo de alguns. Riem-se muito. Acenam muito. Gritam “Hello! How are you?”. Nunca pedem. Nem comida. Nem dinheiro. Brincam com rodas de ferro empurradas pela terra por um outro cabo de ferro, carros em bambu com tampas de garrafa a servir de rodas. Se tiverem sorte de estar em determinadas localizações nos campos há escorregas e cavalinhos de brincar. São mais de 500 mil crianças, ou seja, 55% da população refugiada no campo.
São mais de meio milhão. Para eles foram criados 3700 espaços de aprendizagem, outros tantos onde lhes tentam apagar os traumas vividos. “Quando chegaram, as crianças desenhavam helicópteros a disparar balas sobre as pessoas, pessoas a fugir de casas e vilas incendiadas, pessoas enforcadas nas árvores”, descreve Karen Reldy, da UNICEF. Hoje essas mesmas crianças já desenham as suas casas rodeadas de rios, campos verdes e animais. Nos centros de aprendizagem ensina-se inglês e birmanês, matemática, ciências e competências básicas. O bengalês não está permitido por parte do Governo do Bangladesh.

A UNICEF, em conjunto com organizações parceiras, indica que até ao ano passado 216 mil crianças rohingya estavam envolvidas em algum tipo de educação. As sondagens do último relatório da OIM mostram que entre os 5 e os 11 anos, cerca de 10% não frequentam os centros educativos. O valor cresce quando olhamos para os adolescentes entre os 12 e os 17 anos. Sobretudo no sector feminino. Mais de 80% das raparigas não frequentam a escola.
Do campo Nayapara, em Teknaf, avista-se facilmente o Estado de Rakhine e as suas montanhas Arakan disfarçadas pela neblina da manhã. Nas águas onde hoje se passeiam cruzeiros, há mais de um ano singravam barcos e barcos carregados de rohingyas, cruzando os três mil metros desde Myanmar até alcançar as margens do Bangladesh. Nadar seria ousado. Perigoso, na realidade. O rio chega a alcançar os 120 metros de profundidade. Ainda assim, muitos tentaram.
“Vimos os refugiados chegar. Eram tantos. Víamos o fumo desde o outro lado das montanhas das vilas a arder. Que mal fizeram estas crianças? Que mal fizeram as mulheres para serem violadas?” As palavras em inglês chegam de Mohammed Sadek, 21 anos. A mãe chegou grávida ao Bangladesh nos anos 90, fugindo da antiga Birmânia exatamente pelas mesmas razões que as mais de 740 mil pessoas em 2017.
O estatuto de refugiado é também atribuído a Mohammed e, por isso, não lhe é permitido, à semelhança dos restantes refugiados rohingya, trabalhar fora do campo. Nayapara é possivelmente o maior palco onde se cruzam antigos e novos refugiados, onde a presença de militares é mais visível.
920 milhões de dólares [mais de 800 milhões de euros] são necessários para continuar a dar resposta à crise humanitária dos rohingyas em 2019. O denominado Plano de Resposta Conjunta é o apelo de mais de 130 organizações — agências das Nações Unidas e organizações não-governamentais — que trabalham no maior campo de refugiados do mundo. A maior parte dos fundos servirá para a “ajuda crítica” no que diz respeito a comida, água, saneamento e abrigos. “É um plano altamente priorizado. É só mesmo, mesmo, para o essencial. É um pedido, como uma carta ao Pai Natal”, reconhece o coordenador de emergências da OIM em Cox Bazar.

Dificilmente as organizações recebem 100% do valor pedido, por isso Manuel Pereira gostaria de ver chegar pelo menos 50% e faz uso de uma comparação para que se entenda a realidade em que vivem os rohingyas: “É como se estivéssemos todos deitados numa cama com uma manta muito pequenina. Puxa de um lado, falha no outro. E não há dinheiro suficiente para comprar uma manta maior.”
909 mil rohingyas encontraram no Bangladesh a segurança que procuravam. Das bocas dos refugiados reconhecem-se muitas incertezas no futuro, mas de todas elas sai uma certeza: a de que não regressam sem que os direitos humanos e de cidadãos de Myanmar lhes sejam reconhecidos e garantidos. “O Governo do Bangladesh quer que as pessoas regressem o mais cedo possível, as pessoas querem regressar o mais cedo possível e nós queremos apoiar o regresso, mas todos concordamos que se as condições não forem seguras, se não forem dignificadas, não pode haver regresso. Estamos a tentar encontrar formas de mobilizar apoio no mundo com diversos parceiros para promover a resolução política em Myanmar”, declara Manuel Pereira, que indica ainda que é objetivo das organizações que muita da gestão dos campos vá sendo passada para o Governo do Bangladesh.

Dialogamos e assinamos acordos com Myanmar para a repatriação dos rohingyas. Mas o Governo de Myanmar não está a atuar nesse sentido”, afirmou Sheikh Hasina, primeira-ministra do Bangladesh. A viver em Myanmar desde o século XIX, os rohingyas tentam obter o cartão de cidadão desde a independência da ex-Birmânia. Até hoje, o Governo de Myanmar recusou-se a reconhecer a minoria étnica — que perfazia mais de um terço da população do Estado de Rakhine — como cidadãos de pleno direito do país e nega a crise existente relativa à etnia.

A Human Rights Watch acusa o país de ter realizado uma limpeza étnica, incriminando Myanmar de crimes contra a humanidade. Na mais recente missão das Nações Unidas à antiga Birmânia a ONU afirmou ao que os militares do país deveriam ser investigados por genocídio e que tinham sido ignorados os sinais alarmantes verificados anteriormente ao alegado genocídio.

Azizur Rahman está cansado. Jamila quebrada. Sanuara tem saudades. Ummesalina anseia pelos irmãos e por um Myanmar livre. Manuel Pereira acredita que um dia os Rohingya vão olhar para o mundo e ver-se “como iguais, dignos”. Khaleda sonha com o dia em que possa regressar. No interior da sua casa, com vista sobre o enorme descampado amarelo, com o braço sobre uma trave de bambu que lhe segura a cabeça, Azizur diz, resiliente, o que todas as bocas querem dizer: “Não há lugar mais feliz do que a nossa pátria”.

Lá fora ouve-se o vento e as crianças a brincar.

Jornal Expresso

REPORTAGEM MULTIMÉDIA:PAULA ALVES SILVA
INFOGRAFIA:CARLOS ESTEVES
WEB DESIGN: JOÃO MELANCIA E TIAGO PEREIRA SANTOS
WEB DEVELOPER: MARIA ROMERO
COORDENAÇÃO EDITORIAL: JOANA BELEZA E GERMANO OLIVEIRA