quinta-feira, 27 de agosto de 2020

Férias 2020

O mês de Agosto está quase a chegar ao fim, assim como as férias. Souberam tão bem estes dias descontraídos longe do rebuliço dos manuais e das leituras para a preparação das aulas. Viver um dia de cada vez e saborear o que de melhor esta altura do ano tem para nos oferecer. 

Após um ano letivo atípico, considerámos estas férias um prémio merecido para o  Duarte que em consequência do confinamento viu-se cingido aos poucos metros quadrados do apartamento, longe dos avós e de um local ao ar livre onde pudesse brincar.

Nas férias de verão a praia nunca pode faltar. Este ano tivemos muita sorte com o tempo, pois apanhámos ótimos dias de praia. Este ano pela primeira vez o Duarte percebeu a satisfação de passar uns dias em família longe da rotina de Oliveira do Hospital. Na praia o Duarte não gostou de molhar-se todo na água fria das praias da região centro, no entanto adorou fazer castelos e outras construções na areia, correr à beira mar e delirar com a água fria com a espuma das ondas a bater-lhe nos pés.



No início do mês de Agosto o Duarte adorou ir à casa dos avós paternos regar a horta enquanto estes estavam de férias. Esta era uma rotina que o Duarte já adorava fazer nas constantes visitas aos avós antes e depois do confinamento. Ele adora o contacto com a natureza e por ser o único neto e mais novo membro da família é o centro de todas as atenções.

Este ano notámos que o Duarte ao contrário dos anos anteriores já se apercebe de tudo o que se passa à sua volta.  Como pais ficamos muito felizes embora por vezes nos custe perceber que em consequência da nossa vida profissional não conseguimos acompanhar como queríamos o seu crescimento. Após uma breve visita aos avós paternos (praia) foram constantes as perguntas do Duarte "mãe quando é que voltamos à casa da praia". Ele adorou  as rotinas da casa da praia , brincar ao ar livre, o contacto com a água salgada do mar deram-lhe uma cor e uma alegria no olhar que nos deixaram enternecidos.





As deslocações ao Luso para passar uma semana já são tradição no final do mês de Agosto. Durante e após o confinamento o Duarte perguntou constantemente aos pais "quando vamos ao Luso ver os avós". Ele gosta daquele rebuliço e liberdade na casa dos avós do Luso. Os mergulhos na piscina, as idas à horta, dar de comer às galinhas e coelhos. Os avós adoram vê-lo correr para cima e para baixo ao sabor do som dos animais e do rádio que avô colocou no quintal para afugentar os pássaros. Uma infância ao ar livre em meios pequenos com tradições rurais que o Duarte teve a sorte de observar e experimentar na sua infância muito feliz.

quarta-feira, 26 de agosto de 2020

Tão felizes que nós éramos - Clara Ferreira Alves

Anda por aí gente com saudades da velha portugalidade. Saudades do nacionalismo, da fronteira, da ditadura, da guerra, da PIDE, de Caxias e do Tarrafal, das cheias do Tejo e do Douro, da tuberculose infantil, das mulheres mortas no parto, dos soldados com madrinhas de guerra, da guerra com padrinhos políticos, dos caramelos espanhóis, do telefone e da televisão como privilégio, do serviço militar obrigatório, do queres fiado toma, dos denunciantes e informadores e, claro, dessa relíquia estimada que é um aparelho de segurança.

Eu não ponho flores neste cemitério.

Nesse Portugal toda a gente era pobre com exceção de uma ínfima parte da população, os ricos. No meio havia meia dúzia de burgueses esclarecidos, exilados ou educados no estrangeiro, alguns com apelidos que os protegiam, e havia uma classe indistinta constituída por remediados. Uma pequena burguesia sem poder aquisitivo nem filiação ideológica a rasar o que hoje chamamos linha de pobreza. Neste filme a preto e branco, pintado de cinzento para dar cor, podia observar-se o mundo português continental a partir de uma rua. O resto do mundo não existia, estávamos orgulhosamente sós. Numa rua de cidade havia uma mercearia e uma taberna. Às vezes, uma carvoaria ou uma capelista. A mercearia vendia açúcar e farinha fiados. E o bacalhau. Os clientes pagavam os géneros a prestações e quando recebiam o ordenado. Bifes, peixe fino e fruta eram um luxo. A fruta vinha da província, onde camponeses de pouca terra praticavam uma agricultura de subsistência e matavam um porco uma vez por ano. Batatas, peras, maçãs, figos na estação, uvas na vindima, ameixas e de vez em quando uns preciosos pêssegos. As frutas tropicais só existiam nas mercearias de luxo da Baixa. O ananás vinha dos Açores no Natal e era partido em fatias fininhas para render e encharcado em açúcar e vinho do Porto para render mais. Como não havia educação alimentar e a maioria do povo era analfabeta ou semianalfabeta, comia-se açúcar por tudo e por nada e, nas aldeias, para sossegar as crianças que choravam, dava-se uma chucha embebida em açúcar e vinho. A criança crescia com uma bola de trapos por brinquedo, e com dentes cariados e meia anã por falta de proteínas e de vitaminas. Tinha grande probabilidade de morrer na infância, de uma doença sem vacina ou de um acidente por ignorância e falta de vigilância, como beber lixívia. As mães contavam os filhos vivos e os mortos, era normal. Tive dez e morreram-me cinco. A altura média do homem lusitano andava pelo metro e sessenta nos dias bons. Havia raquitismo e poliomielite e o povo morria cedo e sem assistência médica. Na aldeia, um João Semana fazia o favor de ver os doentes pobres sem cobrar, por bom coração.

Amortalhado a negro, o povo era bruto e brutal. Os homens embebedavam-se com facilidade e batiam nas mulheres, as mulheres não tinham direitos e vingavam-se com crimes que apareciam nos jornais com o título ‘Mulher Mata Marido com Veneno de Ratos’. A violação era comum, dentro e fora do casamento, o patrão tinha direito de pernada, e no campo, tão idealizado, pais e tios ou irmãos mais velhos violavam as filhas, sobrinhas e irmãs. Era assim como um direito constitucional. Havia filhos bastardos com pais anónimos e mães abandonadas que se convertiam em putas. As filhas excedentárias eram mandadas servir nas cidades. Os filhos estudiosos eram mandados para o seminário. Este sistema de escravatura implicava o apartheid. Os criados nunca dirigiam a palavra aos senhores e viviam pelas traseiras. O trabalho infantil era quase obrigatório porque não havia escolaridade obrigatória. As mulheres não frequentavam a universidade e eram entregues pelos pais aos novos proprietários, os maridos. Não podiam ter passaporte nem sair do país sem autorização do homem. A grande viagem do mancebo era para África, nos paquetes da guerra colonial. Aí combatiam por um império desconhecido. A grande viagem da família remediada ao estrangeiro era a Badajoz, a comprar caramelos e castanholas. A fronteira demorava horas a ser cruzada, era preciso desdobrar um milhão de autorizações, era-se maltratado pelos guardas e o suborno era prática comum. De vez em quando, um grande carro passava, de um potentado veloz que não parecia sujeitar-se à burocracia do regime que instituíra uma teoria da exceção para os seus acólitos. O suborno e a cunha dominavam o mercado laboral, onde não vigorava a concorrência e onde o corporativismo e o capitalismo rentista imperavam. Salazar dispensava favores a quem o servia. Não havia liberdade de expressão e o lápis da censura aplicava-se a riscar escritores, jornalistas, artistas e afins. Os devaneios políticos eram punidos com perseguição e prisão. Havia presos políticos, exilados e clandestinos. O serviço militar era obrigatório para todos os rapazes e se saíssem de Portugal depois dos quinze anos aqui teriam de voltar para apanhar o barco da soldadesca. A fé era a única coisa que o povo tinha e se lhe tirassem a religião tinha nada. Deus era a esperança numa vida melhor. Depois da morte, evidentemente.

Clara Ferreira Alves- Jornal Expresso 18/3/2017


sábado, 22 de agosto de 2020

Grândola 2020-21

Olho para a frente, o caminho é sinuoso. Sinto que hoje já conheço melhor o percurso a seguir embora esteja longe de saber o que farei para o resto da minha vida.  Hoje sei que faço aquilo que gosto, não sei se amanhã isso continuará a acontecer, no entanto sei que o que faço hoje me trará ferramentas para o futuro. 

No desempenho da minha profissão de professor gosto de conhecer o meio e as pessoas com quem trabalho. Ser professor hoje é uma tarefa complicada, pois ao contrário do passado, não podemos apenas debitar conteúdos, é necessário adequar os conteúdos aos alunos que temos à nossa frente de modo a cativá-los para os conteúdos lecionados e prepara-los para enfrentar o futuro enquanto cidadãos 

No final do ano letivo decidi mudar o rumo do meu concurso e alargar o leque de escolas para conseguir um horário completo anual. A dificuldade de conseguir um horário completo anual, e o cansaço dos constantes horários incompletos e temporários, para quem está no último terço da tabela e quer progredir obrigou-me a arriscar e concorrer para o Sul do Tejo. Foi uma decisão consciente embora me tenha custado muito por saber que iria deixar a família a centenas de quilómetros de distância.

O dia 14 de Agosto foi sem dúvida um dia fértil em emoções, pois soube que Grândola seria o local onde iria exercer a minha profissão no próximo ano letivo. Fiquei contente pois consegui um horário completo anual na contratação inicial que era o que pretendia, no entanto pensei nas inúmeras dificuldades que iria ter a minha esposa na gestão da casa sozinha, com a mesma profissão colocada a 1 hora e meias de casa, com um filho de três anos

Quando estamos mais longe sentimos a importância de ter amigos à distância de um telefonema e felizmente posso dizer que tenho alguns. No dia 14 de Agosto estávamos de férias e soube tão bem ter recebido a visita  da minha irmã e do meu cunhado, pois pudemos compartilhar com eles os nossos receios e medos. 

O Duarte vai ser sem dúvida aquele que vai sentir mais a falta do pai mas aos poucos já começa a estar habituado. Há uns dias no meio de umas brincadeiras disse-lhes que iria dentro de umas semanas recomeçar o trabalho na escola e não iria estar presente durante a semana, só viria ao fim de semana.  O Duarte perguntou de imediato "porquê pai". Eu disse-lhe que tenho de ganhar o tostão para te comprar brinquedos ao qual ele de forma imediata  disse "pai eu tenho aqui brinquedos não preciso de mais". O segundo argumento apresentado foi que lhe queria comprar uma bicicleta nova, pois a que ele tem já é demasiado pequena, ao que ele disse com naturalidade "pai eu tenho uma bike não preciso de mais nenhuma", depois e por fim disse-lhe que era para comprar comida e ele não resistiu e foi a correr para o colo da mãe com os olhos humedecidos e com vontade do conforto de um abraço. Estava longe de imaginar a reação do Duarte que já percebe e expressa muito bem aquilo que sente.

Neste ano letivo sentimos o conforto de saber que os avós estão por perto e vão ser um pilar essencial para que o Duarte continue a crescer feliz. A escolinha onde ele se encontra muito bem integrado  dá-nos um enorme conforto para desempenharmos de forma tranquila a nossa profissão. 

quarta-feira, 12 de agosto de 2020

Breve história do Santuário de Nossa Senhora das Preces. Autor: Luís Filipe Torgal



Frei Agostinho de Santa Maria publicou, entre 1707 e 1723, uma obra mística, monumental e incontornável sobre o culto mariano em Portugal, intitulada: Santuário Mariano, e história das imagens milagrosas de Nossa Senhora. No tomo II desta obra (1712, pp. 517-519) relatou que no cume do monte Colcurinho, «terra tão alta que parece querer competir com as estrelas […]. E assim dizem que dela se vê a cidade de Lisboa», apareceu uma «milagrosa imagem», «muito pequena, porque não tem mais de palmo e meio de estatura», da «Rainha dos Anjos», que «uns invocam como Nossa Senhora do Colcurinho e outros como Nossa Senhora das Preces». Não esclareceu como esta «Senhora» se manifestou, segundo a tradição, a uns pastorinhos, nem o ano em que apareceu. Contudo, adiantou que a inacessibilidade da serra levou o pároco de Aldeia das Dez a transferir a imagem descoberta para a igreja da sua paróquia. Mas a «Senhora» queria ser venerada no cimo do monte e por isso a sua imagem teria reaparecido duas vezes no sítio onde foi encontrada. Padre e paroquianos decidiram, então, respeitar a vontade da «Senhora» e edificar um pequeno oratório no local onde, aliás, já existiam vestígios de uma muralha castreja e foram encontradas moedas romanas; mais tarde, foi aí construída a ermida de Nossa Senhora das Necessidades. As dificuldades extremas para se deslocarem àquele local tão ermo e agreste levou os fiéis, algures, em meados do século XVII, a acomodarem a imagem num sítio mais baixo, acessível e amplo, localizado nas faldas da serra: o povoado de Vale de Maceira. A imagem ganhou fama de obrar milagres, atraiu romeiros e peregrinos, originando o nascimento do santuário de Nossa Senhora das Preces.

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Junto à ermida atrás citada existe um cruzeiro, erigido em 1925, que substituiu um monumento idêntico ao anterior, do qual resta uma pedra desgastada pelo tempo que contém o mais antigo documento escrito do santuário. Aí pode ler-se: «[NESTE LUG]AR APA[RE]CEU N. SRA. [D]AS PRE[S]SAS NO A[N]O D. 1371».


Quando os imperadores romanos se converteram ao cristianismo e o impuseram como a religião oficial e única do império romano (édito de Tessalónica, 380), muitos dos remotos santuários pagãos associados a cultos mágicos de fertilidade, situados em locais ermos e belos, foram sendo oportunamente transformados em santuários cristãos. O caso da conversão do local sagrado do Colcurinho terá ocorrido antes ou depois de 1371. O pretexto para essa conversão ao cristianismo poderá ter sido a notícia do avistamento de uma «Senhora» que determinou a criação de uma imagem e a edificação de uma ermida. Com o fluir do tempo, a vetusta ermida teria ficado esquecida e arruinada e a imagem entretanto perdida seria depois descoberta nos seus escombros (Augusto Nunes Pereira e Mário Oliveira de Brito, Nossa Senhora das Preces, 1945, p. 16). Certo é que histórias de aparições análogas foram reproduzidas em tempos posteriores, sobretudo em épocas de fomes, pestes e guerras, as quais tendem a exacerbar no espírito dos homens comportamentos místicos. Ora, 1371 abarcou uma conjuntura particularmente conturbada da História Europeia e de Portugal: Guerra dos Cem Anos, vagas de peste negra, crises de escassez agrária; reinado de D. Fernando (1367-1383), marcado por surtos pestíferos, penúria agrícola, fomes e revoltas sociais, mas também pelo envolvimento do rei português em guerras desastrosas com Castela, as quais originaram o risco da perda da independência nacional.


O santuário de Nossa Senhora da Preces começou a erguer-se pelo menos no século XVII, foi ampliado nas centúrias subsequentes e conquistou novas valências. Casa do Púlpito (século XVII), antiga capela (século XVII) depois acoplada à igreja de Nossa Senhora das Preces, várias vezes aumentada (séculos XVIII-XIX), repleta de ex-votos que representam alegados milagres e o agradecimento dos crentes que deles teriam beneficiado, 12 ermidas representativas da Paixão de Cristo (século XIX), capelinhas de Santa Maria Madalena e de Santa Eufémia (século XIX), monumental chafariz de pedra servido por aparatosas escadarias (século XIX), jardim botânico ou «Quintal da Senhora» (século XIX), coreto (1895), albergue (1915-16), vedação em granito e pórticos de entrada do santuário (segunda década do século XX), uma vasta área florestal em redor da capela de Santa Eufémia, concedida pelo Estado à Irmandade de Nossa Senhora das Preces, para ampliar o logradouro do santuário (1941), e o empedramento da estrada oriunda da Aldeia das Dez até Vale de Maceira (1947), que permitiu o acesso de veículos motorizados ligeiros e pesados.


A Irmandade de Nossa Senhora das Preces, fundada em meados do século XVIII, orientada pelo capelão do santuário, assume várias responsabilidades definidas nos seus estatutos (os mais antigos conhecidos remontam a 1886): recolhe e administra as esmolas, preserva os bens móveis e imóveis do santuário, assim como organiza e promove o culto. Tal culto obrigava à celebração de três festas maiores: Pentecostes (50 dias após a ressurreição de Jesus), natividade de Maria (8 de setembro) e apresentação de Nossa Senhora (21 de novembro).


Para instigar o culto, anunciar os seus milagres e publicitar a sua obra, a Irmandade e o capelão, Mário Oliveira de Brito, criaram, em 1950, o jornal oficial de propaganda Voz do Santuário, que também não deixou de apregoar o seu absoluto alinhamento com o Estado Novo de Salazar, «homem providencial que Deus pôs no leme da barca portuguesa» (Voz do Santuário, 3-06-1956). O posicionamento incondicional do jornal ao lado do Estado Novo pode ser confirmado em diversos outros textos. Nomeadamente, nestes trechos retirados de um pequeno artigo publicado no refluxo das eleições presidenciais fraudulentas que usurparam a vitória ao candidato das oposições, general Humberto Delgado: «Os inimigos da ordem e da Pátria não se dão por vencidos. Nas eleições foram de caixão à cova, mas ficou-lhes a língua de fora. Não puderam vencer, nem convencer, mas agora procuram semear o terror, servindo-se de boatos, no intuito de desorientar e assustar a opinião pública. […] Tudo aproveitam, os inimigos da paz e da ordem, para inventar histórias de revoluções que estão a rebentar, exércitos que estão para ocupar o País e derrubar o Governo. […] O povo ingénuo acredita nisto, tanto mais que é dito em muito segredo, e porque acredita vive desassossegado» (Idem, 6-07-1958).    


A consulta deste periódico dá-nos uma noção interessante da evolução do santuário e do culto da Senhora das Preces, desde os anos 50 do século XX. Por exemplo, é possível captar que, durante a década de 50, uma das principais preocupações da Irmandade e do capelão era a estrada de acesso ao povoado de Vale de Maceira proveniente da Ponte das Três Entradas, estreita, picada, mal sinalizada, demasiado sinuosa e perigosa, que por isso condicionava bastante a fluidez do trânsito e a afluência de romeiros e turistas. Outra inquietação era a circulação inadequada de veículos motorizados, ligeiros e pesados, dentro da propriedade do santuário e junto da igreja (apesar de uma variante externa ter sido aberta, em 1957, em redor da área do santuário), os quais causavam um ruído «ensurdecedor» que prejudicava a celebração dos atos religiosos. A falta de energia elétrica que tardava em chegar a Vale de Maceira, a ausência de espaços para os romeiros estacionarem e manobrarem carros e autocarros nos dias da grande romaria, a indiferença religiosa e os comportamentos mundanos e transgressores do espírito piedoso da festa assumidos por feirantes e romeiros eram outros problemas que preocupavam o capelão e a Irmandade. De resto, o confronto entre uma religião popular, mais alegre e relaxada, e uma religião oficial, mais diligente e penitencial, remontava a Oitocentos, século do liberalismo e da secularização de hábitos e costumes, ainda que, em Novecentos, nos anos do Estado Novo, as imposições austeras emanadas da hierarquia da Igreja tenham, geralmente, prevalecido sobre os comportamentos populares mais profanos.


Apesar dos condicionalismos supracitados, a romaria tradicional continuou a realizar-se com algum vigor, entre os anos 50 e 70 do século XX. No início, a grande festa celebrava-se no fim de semana do domingo de Pentecostes (vulgarmente designada por domingo do Espírito Santo). A partir dos inícios dos anos 70, por decisão do padre Mário Oliveira de Brito, quebrou-se a tradição e a romaria foi definitivamente transferida para o primeiro fim de semana de julho, que garantia dias mais quentes e secos, e por isso mais favoráveis à afluência de multidões. O programa religioso abria, no sábado, com uma missa na Igreja de Nossa Senhora das Preces. Incluía, depois, as confissões dos peregrinos, música religiosa, a oração do terço e a via-sacra noturna com pregação junto às capelinhas alumiadas por centenas de velas ostentadas pelos peregrinos. No domingo, realizavam-se missas rezadas e cantadas, uma missa campal, com sermão, preferencialmente, versando sobre a narrativa da Santa venerada, uma imponente procissão diurna — composta por irmandades, associações de várias freguesias e muitos peregrinos — que representava o clímax das celebrações. A parte profana da festa abarcava festivais de filarmónicas e ranchos no coreto do recinto, feira, comes e bebes, carrosséis e fogo-de-artifício.


O Voz do Santuário noticiava a presença nestas festas de milhares de pessoas oriundas de «todos os lados de Portugal»: dos distritos das Beiras — Coimbra, Viseu, Guarda, Castelo Branco, Aveiro e Leiria —, mas também dos distritos de Lisboa, e até de Évora e de Portalegre (Idem, 3-06-1956). Um cronista anónimo mais arrebatado, embora, em certo sentido, mais clarividente (presumo tratar-se do padre Mário Oliveira de Brito, que era o capelão do santuário e também diretor e editor da publicação Voz do Santuário), arriscou escrever: «Se nos dessem licença e perdoassem o atrevimento, dizíamos que Fátima é que é uma segunda Senhora das Preces, porque Fátima é de há poucos anos e a Senhora das Preces é de alguns séculos. Simplesmente, Fátima, depois que Roma falou, foi desde os primeiros tempos amparada pela igreja e servida por muitos sacerdotes. A Senhora das Preces, porém, foi desde há muito tempo espoliada por leigos, desprezada e abandonada aos seus próprios destinos. Se a Senhora das Preces fosse sempre governada como nos seus tempos áureos de 1700 e 1800, seria hoje o que é Fátima, o que é o Bom Jesus, o que é o Sameiro – seria, sem dúvida alguma, o melhor e o mais espiritual santuário de Portugal» (Idem, 7-06-1959).


Pelo menos até 1974, a romaria da Senhora das Preces continuou a ser apresentada pelo Voz do Santuário como a «Fátima das Beiras», a «maior romaria das Beiras» ou mesmo o «mais antigo santuário mariano das Beiras». A afluência de romeiros e peregrinos a esta romaria manteve-se muito elevada, como comprovam as fotografias publicadas no jornal, que revelam muitas dezenas de autocarros amontoados ao longo da estrada e dos estacionamentos acanhados que envolvem o santuário (Idem, novembro-dezembro de 1974), ou a cifra de cerca de «16 mil pessoas» que teriam comparecido na romaria de julho de 1972 (Idem, julho de 1972).


De acordo com fontes orais consultadas, as relações entre o capelão, Mário Oliveira de Brito, a Irmandade e uma parte da população local estavam já bastante deterioradas, antes do 25 de abril de 1974. Esta última acusava o capelão de tratar os assuntos da paróquia e do santuário com vileza e prepotência. E chegou a denunciar a situação ao bispo de Coimbra, que, todavia, acabava sempre por proteger o seu sacerdote. Escassos meses depois da revolução que depôs o regime Marcelista, as relações incendiaram-se. Dessa vez, o motivo crucial que instigou o confronto foi a decisão ordenada pela mesa administrativa da Irmandade de cortar e vender pinheiros numa área baldia de 2 hectares. O capelão e o mencionado órgão administrativo da Irmandade alegavam que essa área tinha sido cedida pelo Estado à sua agremiação religiosa, em 1941; porém, alguns populares não reconheciam tal cedência, argumentando que esse terreno devia pertencer à junta de freguesia da Aldeia das Dez (Idem, novembro-dezembro de 1974). Decerto que este episódio deverá ser enquadrado nos conflitos pós-revolucionários emergentes entre uma população subitamente emancipada, mais politizada e menos devota, e a igreja oficial, os seus padres e militantes católicos mais conservadores, que apoiaram e justificaram, incondicionalmente, as políticas autoritárias e repressivas do Estado Novo. Porventura, este caso pode representar um indício de que as romarias ao santuário começavam a perder o fôlego de outros tempos. Por outro lado, é ainda plausível considerar que a magnitude crescente atribuída à Cova da Iria, à sua narrativa mística permanentemente recriada e ao culto nacional e internacional de Nossa Senhora de Fátima tenham contribuído para um paulatino esvaziamento dos santuários mais regionais de romaria e arraial como o de Nossa Senhora das Preces, na aldeia de Vale de Maceira.


Porém, como notou Célia Lourenço num artigo recente publicado na Comarca de Arganil (30-07-2020), há, hoje, sinais de uma revitalização da ancestral e outrora popular romaria da Senhora das Preces e, sobretudo, o desejo de colocar este local provido de especial beleza cultural e ambiental no centro dos roteiros turísticos alusivos ao concelho de Oliveira do Hospital e à Região Centro de Portugal.

Autor: Luís Filipe Torgal

sexta-feira, 7 de agosto de 2020

"A nova década: Uma era de longevidade" -Notícia audio Caderno de Economia do Jornal Expresso

O jornal expresso inaugurou este fim de semana uma nova forma de ler notícias ou seja colocar em audio as noticias que são transcritas no caderno de economia..

Ouvi esta notícia ,"Uma década: Uma era de longevidade", que me suscitou particular atenção pois é da área da Geografia, mais particularmente da demografia.Ouçam,não se vão arrepender. Pode haver opiniões contraditórias mas é sempre bom ouvir várias ideias sobre o mesmo assunto, ajuda-nos a crescer no nosso conhecimento sobre um tema.