quarta-feira, 12 de agosto de 2020

Breve história do Santuário de Nossa Senhora das Preces. Autor: Luís Filipe Torgal



Frei Agostinho de Santa Maria publicou, entre 1707 e 1723, uma obra mística, monumental e incontornável sobre o culto mariano em Portugal, intitulada: Santuário Mariano, e história das imagens milagrosas de Nossa Senhora. No tomo II desta obra (1712, pp. 517-519) relatou que no cume do monte Colcurinho, «terra tão alta que parece querer competir com as estrelas […]. E assim dizem que dela se vê a cidade de Lisboa», apareceu uma «milagrosa imagem», «muito pequena, porque não tem mais de palmo e meio de estatura», da «Rainha dos Anjos», que «uns invocam como Nossa Senhora do Colcurinho e outros como Nossa Senhora das Preces». Não esclareceu como esta «Senhora» se manifestou, segundo a tradição, a uns pastorinhos, nem o ano em que apareceu. Contudo, adiantou que a inacessibilidade da serra levou o pároco de Aldeia das Dez a transferir a imagem descoberta para a igreja da sua paróquia. Mas a «Senhora» queria ser venerada no cimo do monte e por isso a sua imagem teria reaparecido duas vezes no sítio onde foi encontrada. Padre e paroquianos decidiram, então, respeitar a vontade da «Senhora» e edificar um pequeno oratório no local onde, aliás, já existiam vestígios de uma muralha castreja e foram encontradas moedas romanas; mais tarde, foi aí construída a ermida de Nossa Senhora das Necessidades. As dificuldades extremas para se deslocarem àquele local tão ermo e agreste levou os fiéis, algures, em meados do século XVII, a acomodarem a imagem num sítio mais baixo, acessível e amplo, localizado nas faldas da serra: o povoado de Vale de Maceira. A imagem ganhou fama de obrar milagres, atraiu romeiros e peregrinos, originando o nascimento do santuário de Nossa Senhora das Preces.

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Junto à ermida atrás citada existe um cruzeiro, erigido em 1925, que substituiu um monumento idêntico ao anterior, do qual resta uma pedra desgastada pelo tempo que contém o mais antigo documento escrito do santuário. Aí pode ler-se: «[NESTE LUG]AR APA[RE]CEU N. SRA. [D]AS PRE[S]SAS NO A[N]O D. 1371».


Quando os imperadores romanos se converteram ao cristianismo e o impuseram como a religião oficial e única do império romano (édito de Tessalónica, 380), muitos dos remotos santuários pagãos associados a cultos mágicos de fertilidade, situados em locais ermos e belos, foram sendo oportunamente transformados em santuários cristãos. O caso da conversão do local sagrado do Colcurinho terá ocorrido antes ou depois de 1371. O pretexto para essa conversão ao cristianismo poderá ter sido a notícia do avistamento de uma «Senhora» que determinou a criação de uma imagem e a edificação de uma ermida. Com o fluir do tempo, a vetusta ermida teria ficado esquecida e arruinada e a imagem entretanto perdida seria depois descoberta nos seus escombros (Augusto Nunes Pereira e Mário Oliveira de Brito, Nossa Senhora das Preces, 1945, p. 16). Certo é que histórias de aparições análogas foram reproduzidas em tempos posteriores, sobretudo em épocas de fomes, pestes e guerras, as quais tendem a exacerbar no espírito dos homens comportamentos místicos. Ora, 1371 abarcou uma conjuntura particularmente conturbada da História Europeia e de Portugal: Guerra dos Cem Anos, vagas de peste negra, crises de escassez agrária; reinado de D. Fernando (1367-1383), marcado por surtos pestíferos, penúria agrícola, fomes e revoltas sociais, mas também pelo envolvimento do rei português em guerras desastrosas com Castela, as quais originaram o risco da perda da independência nacional.


O santuário de Nossa Senhora da Preces começou a erguer-se pelo menos no século XVII, foi ampliado nas centúrias subsequentes e conquistou novas valências. Casa do Púlpito (século XVII), antiga capela (século XVII) depois acoplada à igreja de Nossa Senhora das Preces, várias vezes aumentada (séculos XVIII-XIX), repleta de ex-votos que representam alegados milagres e o agradecimento dos crentes que deles teriam beneficiado, 12 ermidas representativas da Paixão de Cristo (século XIX), capelinhas de Santa Maria Madalena e de Santa Eufémia (século XIX), monumental chafariz de pedra servido por aparatosas escadarias (século XIX), jardim botânico ou «Quintal da Senhora» (século XIX), coreto (1895), albergue (1915-16), vedação em granito e pórticos de entrada do santuário (segunda década do século XX), uma vasta área florestal em redor da capela de Santa Eufémia, concedida pelo Estado à Irmandade de Nossa Senhora das Preces, para ampliar o logradouro do santuário (1941), e o empedramento da estrada oriunda da Aldeia das Dez até Vale de Maceira (1947), que permitiu o acesso de veículos motorizados ligeiros e pesados.


A Irmandade de Nossa Senhora das Preces, fundada em meados do século XVIII, orientada pelo capelão do santuário, assume várias responsabilidades definidas nos seus estatutos (os mais antigos conhecidos remontam a 1886): recolhe e administra as esmolas, preserva os bens móveis e imóveis do santuário, assim como organiza e promove o culto. Tal culto obrigava à celebração de três festas maiores: Pentecostes (50 dias após a ressurreição de Jesus), natividade de Maria (8 de setembro) e apresentação de Nossa Senhora (21 de novembro).


Para instigar o culto, anunciar os seus milagres e publicitar a sua obra, a Irmandade e o capelão, Mário Oliveira de Brito, criaram, em 1950, o jornal oficial de propaganda Voz do Santuário, que também não deixou de apregoar o seu absoluto alinhamento com o Estado Novo de Salazar, «homem providencial que Deus pôs no leme da barca portuguesa» (Voz do Santuário, 3-06-1956). O posicionamento incondicional do jornal ao lado do Estado Novo pode ser confirmado em diversos outros textos. Nomeadamente, nestes trechos retirados de um pequeno artigo publicado no refluxo das eleições presidenciais fraudulentas que usurparam a vitória ao candidato das oposições, general Humberto Delgado: «Os inimigos da ordem e da Pátria não se dão por vencidos. Nas eleições foram de caixão à cova, mas ficou-lhes a língua de fora. Não puderam vencer, nem convencer, mas agora procuram semear o terror, servindo-se de boatos, no intuito de desorientar e assustar a opinião pública. […] Tudo aproveitam, os inimigos da paz e da ordem, para inventar histórias de revoluções que estão a rebentar, exércitos que estão para ocupar o País e derrubar o Governo. […] O povo ingénuo acredita nisto, tanto mais que é dito em muito segredo, e porque acredita vive desassossegado» (Idem, 6-07-1958).    


A consulta deste periódico dá-nos uma noção interessante da evolução do santuário e do culto da Senhora das Preces, desde os anos 50 do século XX. Por exemplo, é possível captar que, durante a década de 50, uma das principais preocupações da Irmandade e do capelão era a estrada de acesso ao povoado de Vale de Maceira proveniente da Ponte das Três Entradas, estreita, picada, mal sinalizada, demasiado sinuosa e perigosa, que por isso condicionava bastante a fluidez do trânsito e a afluência de romeiros e turistas. Outra inquietação era a circulação inadequada de veículos motorizados, ligeiros e pesados, dentro da propriedade do santuário e junto da igreja (apesar de uma variante externa ter sido aberta, em 1957, em redor da área do santuário), os quais causavam um ruído «ensurdecedor» que prejudicava a celebração dos atos religiosos. A falta de energia elétrica que tardava em chegar a Vale de Maceira, a ausência de espaços para os romeiros estacionarem e manobrarem carros e autocarros nos dias da grande romaria, a indiferença religiosa e os comportamentos mundanos e transgressores do espírito piedoso da festa assumidos por feirantes e romeiros eram outros problemas que preocupavam o capelão e a Irmandade. De resto, o confronto entre uma religião popular, mais alegre e relaxada, e uma religião oficial, mais diligente e penitencial, remontava a Oitocentos, século do liberalismo e da secularização de hábitos e costumes, ainda que, em Novecentos, nos anos do Estado Novo, as imposições austeras emanadas da hierarquia da Igreja tenham, geralmente, prevalecido sobre os comportamentos populares mais profanos.


Apesar dos condicionalismos supracitados, a romaria tradicional continuou a realizar-se com algum vigor, entre os anos 50 e 70 do século XX. No início, a grande festa celebrava-se no fim de semana do domingo de Pentecostes (vulgarmente designada por domingo do Espírito Santo). A partir dos inícios dos anos 70, por decisão do padre Mário Oliveira de Brito, quebrou-se a tradição e a romaria foi definitivamente transferida para o primeiro fim de semana de julho, que garantia dias mais quentes e secos, e por isso mais favoráveis à afluência de multidões. O programa religioso abria, no sábado, com uma missa na Igreja de Nossa Senhora das Preces. Incluía, depois, as confissões dos peregrinos, música religiosa, a oração do terço e a via-sacra noturna com pregação junto às capelinhas alumiadas por centenas de velas ostentadas pelos peregrinos. No domingo, realizavam-se missas rezadas e cantadas, uma missa campal, com sermão, preferencialmente, versando sobre a narrativa da Santa venerada, uma imponente procissão diurna — composta por irmandades, associações de várias freguesias e muitos peregrinos — que representava o clímax das celebrações. A parte profana da festa abarcava festivais de filarmónicas e ranchos no coreto do recinto, feira, comes e bebes, carrosséis e fogo-de-artifício.


O Voz do Santuário noticiava a presença nestas festas de milhares de pessoas oriundas de «todos os lados de Portugal»: dos distritos das Beiras — Coimbra, Viseu, Guarda, Castelo Branco, Aveiro e Leiria —, mas também dos distritos de Lisboa, e até de Évora e de Portalegre (Idem, 3-06-1956). Um cronista anónimo mais arrebatado, embora, em certo sentido, mais clarividente (presumo tratar-se do padre Mário Oliveira de Brito, que era o capelão do santuário e também diretor e editor da publicação Voz do Santuário), arriscou escrever: «Se nos dessem licença e perdoassem o atrevimento, dizíamos que Fátima é que é uma segunda Senhora das Preces, porque Fátima é de há poucos anos e a Senhora das Preces é de alguns séculos. Simplesmente, Fátima, depois que Roma falou, foi desde os primeiros tempos amparada pela igreja e servida por muitos sacerdotes. A Senhora das Preces, porém, foi desde há muito tempo espoliada por leigos, desprezada e abandonada aos seus próprios destinos. Se a Senhora das Preces fosse sempre governada como nos seus tempos áureos de 1700 e 1800, seria hoje o que é Fátima, o que é o Bom Jesus, o que é o Sameiro – seria, sem dúvida alguma, o melhor e o mais espiritual santuário de Portugal» (Idem, 7-06-1959).


Pelo menos até 1974, a romaria da Senhora das Preces continuou a ser apresentada pelo Voz do Santuário como a «Fátima das Beiras», a «maior romaria das Beiras» ou mesmo o «mais antigo santuário mariano das Beiras». A afluência de romeiros e peregrinos a esta romaria manteve-se muito elevada, como comprovam as fotografias publicadas no jornal, que revelam muitas dezenas de autocarros amontoados ao longo da estrada e dos estacionamentos acanhados que envolvem o santuário (Idem, novembro-dezembro de 1974), ou a cifra de cerca de «16 mil pessoas» que teriam comparecido na romaria de julho de 1972 (Idem, julho de 1972).


De acordo com fontes orais consultadas, as relações entre o capelão, Mário Oliveira de Brito, a Irmandade e uma parte da população local estavam já bastante deterioradas, antes do 25 de abril de 1974. Esta última acusava o capelão de tratar os assuntos da paróquia e do santuário com vileza e prepotência. E chegou a denunciar a situação ao bispo de Coimbra, que, todavia, acabava sempre por proteger o seu sacerdote. Escassos meses depois da revolução que depôs o regime Marcelista, as relações incendiaram-se. Dessa vez, o motivo crucial que instigou o confronto foi a decisão ordenada pela mesa administrativa da Irmandade de cortar e vender pinheiros numa área baldia de 2 hectares. O capelão e o mencionado órgão administrativo da Irmandade alegavam que essa área tinha sido cedida pelo Estado à sua agremiação religiosa, em 1941; porém, alguns populares não reconheciam tal cedência, argumentando que esse terreno devia pertencer à junta de freguesia da Aldeia das Dez (Idem, novembro-dezembro de 1974). Decerto que este episódio deverá ser enquadrado nos conflitos pós-revolucionários emergentes entre uma população subitamente emancipada, mais politizada e menos devota, e a igreja oficial, os seus padres e militantes católicos mais conservadores, que apoiaram e justificaram, incondicionalmente, as políticas autoritárias e repressivas do Estado Novo. Porventura, este caso pode representar um indício de que as romarias ao santuário começavam a perder o fôlego de outros tempos. Por outro lado, é ainda plausível considerar que a magnitude crescente atribuída à Cova da Iria, à sua narrativa mística permanentemente recriada e ao culto nacional e internacional de Nossa Senhora de Fátima tenham contribuído para um paulatino esvaziamento dos santuários mais regionais de romaria e arraial como o de Nossa Senhora das Preces, na aldeia de Vale de Maceira.


Porém, como notou Célia Lourenço num artigo recente publicado na Comarca de Arganil (30-07-2020), há, hoje, sinais de uma revitalização da ancestral e outrora popular romaria da Senhora das Preces e, sobretudo, o desejo de colocar este local provido de especial beleza cultural e ambiental no centro dos roteiros turísticos alusivos ao concelho de Oliveira do Hospital e à Região Centro de Portugal.

Autor: Luís Filipe Torgal

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