Poucos conseguirão ficar indiferentes quando se fala
em cérebro. Aliás, os vários crânios “trepanados” ainda no período da Pré-História,
encontrados, por exemplo, em múltiplos locais da Europa, parecem constituir um
indício de que o interesse do Homem pela compreensão do cérebro (leia-se, pela
compreensão do “eu” mais profundo…) o acompanha desde as suas mais recônditas
origens.
Ao
longo das últimas décadas têm sido verdadeiramente surpreendentes os avanços
verificados neste domínio, destacando-se os trabalhos de vários neurologistas,
como sejam, apenas a título meramente exemplificativo, António Damásio ou a sua
esposa Hanna Damásio.
As
implicações dessas recém-descobertas começam agora a chegar, paulatinamente, ao
domínio da Educação. De um modo simplificado, imagine-
-se o alcance de conclusões deste género: a consciência começa por ser um
sentimento; as emoções desempenham um papel fundamental no processo de tomada
de decisões e na própria regulação homeostática; o “cérebro” não cristaliza e à
medida que aprendemos ele parece reajustar-se. Outras duas conclusões de um
estudo dinamizado pelo português Paulo Ventura, em articulação com investigadores
internacionais, seguem nesta mesma linha: “Aprender a ler, mesmo na idade
adulta, é uma experiência tão importante para o cérebro que este concentra
todas as suas forças neste acto e muda para conseguir realizar esta actividade.
[…] O que acontece é que quando se aprende a ler existe uma reciclagem
neuronal: o cérebro aproveita as áreas que realizam funções semelhantes à
leitura para poder ler” (Cf. http://brissoslino.wordpress.com/2010/11/12/aprender-a-ler-muda-o-cerebro/).
Consequentemente, um estímulo a valer e quase tudo pode acontecer…
É
na linha do que temos vindo a escrever que a neurociência, aqui entendida
enquanto estudo científico do cérebro e do sistema nervoso, pode desempenhar um
papel importante, sendo a este propósito inevitável falar da mais recente obra
do investigador Rafael Silva Pereira – Programa
de Neurociência: Intervenção em Leitura e Escrita. Se existem mesmo livros
que não temos o direito de guardar só para nós, este é, em nosso entender, um
deles. E é, afinal, este desejo de partilha que motiva este breve artigo.
A referida obra, que complementa o anterior Programa de Intervenção e Reeducação em Dislexia e Disortografia,
constitui, segundo a nossa perspectiva, uma das poderosas ferramentas de
auxílio para todos aqueles que, diariamente, têm a nobre, mas extenuante,
missão de ajudar a ler e escrever todas as crianças, mas, sobretudo, aquelas
que registam dificuldades de aprendizagem. O
trabalho dado à estampa em 2011 começa por apresentar, em traços gerais, uma
fundamentação teórica, que procura assim introduzir o leitor menos
familiarizado nestas temáticas. Depois, o professor/investigador propõe um
conjunto de exercícios lúdicos que “comprovadamente ajudam o aluno a melhorar a
sua capacidade de memória, atenção, linguagem, raciocínio lógico e visão
espacial” (Cf. Rafael Silva Pereira, 2011, p. 9). Por fim, são apresentados
exercícios que enformam um programa de desenvolvimento da consciência
fonológica (engloba todos os níveis de consciência da estrutura sonora das
palavras), através da exploração da “motricidade fina” e da estimulação multissensorial.
Pena é, na nossa opinião, que o autor não tenha optado por direccionar o seu
programa para um grupo etário específico, pois talvez assim conseguisse
maximizar os efeitos da intervenção. Como refere a neurocientista Sally
Shaywitz: “o que funciona melhor para uma criança de 6 anos de idade não irá
ser a abordagem mais útil para um sujeito de 16 anos” (Cf. Vencer a dislexia: Como dar resposta às
perturbações da leitura em qualquer fase da vida, 1.ª edição, 2008, Porto,
Porto Editora, p. 189).
Num
mundo em que os ponteiros do relógio parecem avançar a um ritmo alucinante, em
que quase tudo se decide à velocidade da luz, é verdadeiramente dramático ver o
sacrifício que uma criança disléxica, com uma inteligência (pelo menos) média,
sublinhe-se, faz para conseguir, quando consegue, alinhavar uma palavra ou
“simplesmente” lê-la. E, recorde-se, ao contrário do que durante muito tempo se
pensou, a dislexia (cujo diagnóstico é de natureza clínica) existe mesmo, tem na
sua raiz um factor neurobiológico, não se resolve com a simples passagem dos
anos e tem consequências em todo o processo de desenvolvimento (Cf.
a este propósito Sally Shaywitz, M. D., ob.
cit., pp. 13-82). Programas de
intervenção pedagógica como aquele que Rafael Silva Pereira nos confia podem
fazer toda a diferença no futuro da vida de muitos meninos, desde que, importa
reforçá-lo, sejam trabalhados em estreita articulação entre os vários agentes (família,
professores…). Programas deste género poderão, afinal, fazer toda a diferença
entre a inclusão efectiva e a exclusão.
Claro
está que a Educação Especial desempenha aqui um papel determinante, desde que,
também importa reforçá-lo, não seja apenas percepcionada como mais um apoio às
áreas académicas tradicionais, mas se assuma como um agente de intervenção face
às dificuldades específicas dos alunos e, naturalmente, tendo em consideração
os avanços científicos registados. Daí a necessidade de investigar
constantemente (uma tarefa difícil face à actual malha burocrática do sistema
educativo) e de, entre outras áreas prementes, existirem pontes mais regulares
entre as Universidades e as Escolas do Ensino Básico e Secundário ou mesmo
entre os docentes, sobretudo, de ciclos diferentes (a efectiva articulação
vertical ainda está a dar os primeiros passos…).
Portanto,
a metodologia correcta pode fazer toda a diferença, até porque “diferentes
formas de aprender implicam necessariamente diferentes formas de ensinar”.
Claro está que, se pretendemos efectivamente uma Escola inclusiva, promovendo
uma filosofia de trabalho em conjunto, onde todos os alunos, considerados (ou
não) como tendo Necessidades Educativas Especiais, podem ganhar, teremos de
perceber que, numa fase inicial, isso implicará forçosamente estar disponível
para investir mais. Trata-se, no entanto, de custos que serão recuperados a
médio e longo prazo; ao passo que as perdas, essas sim, serão dificilmente
recuperáveis.
A
este propósito, o Diário Insular de 7
de Novembro de 2012 trazia a seguinte notícia: “44 por cento dos jovens
açorianos entre os 18 e os 24 anos não ultrapassa o 9.º ano de escolaridade”
(p. 4). Poderíamos, ainda, fazer uso de outros números igualmente dramáticos,
como sejam a taxa de abandono escolar no Ensino Secundário ou de reprovações, a
percentagem de analfabetismo (já para não falar de iliteracia) ou os resultados
nos Exames Nacionais… Todos os números nos demonstram que é urgente intervir e…
precocemente, com equipas inter e multidisciplinares, científica e
pedagogicamente sustentadas. E é aqui, mais uma vez, que também os serviços
especializados das Escolas, nomeadamente no que diz respeito à Educação
Especial, poderão fazer toda a diferença, numa área onde, apesar das inegáveis
portas que se abriram depois da revolução de 25 de Abril de 1974, ainda existe
um longo caminho a percorrer… Daí a importância de conhecer e dar a conhecer,
para sensibilizar e intervir.
Renato Nunes