quarta-feira, 30 de junho de 2021

Manuel da Fonseca: a voz do Alentejo- Autor Renato Nunes




Em 1943, o escritor neo-realista Manuel da Fonseca (1911-1993) apresentou o seu romance Cerromaior à censura prévia. A análise da obra ficou a cargo do capitão Silva Dias.

Cerromaior é um livro que colheu as suas raízes na realidade alentejana, das décadas de 30 e 40 do século XX. Como escreveu Mário Dionísio: “Manuel da Fonseca nasceu para revelar o Alentejo” (Fernando Rosas e J. M. Brandão de Brito, direcção — Dicionário de História do Estado Novo, p. 366). Importa, de resto, não esquecer que Manuel da Fonseca tem as suas origens em Santiago do Cacém, no distrito de Setúbal. 

Com um total de aproximadamente 250 páginas, Cerromaior narra o percurso de Adriano, que, apesar das suas origens burguesas, foi gradualmente tomando consciência da injusta divisão do mundo entre os que obedecem e os que mandam e acabou mesmo por decidir colocar-se ao lado dos mais pobres e oprimidos. Pobres e explorados camponeses, aos quais ouvira relatar pungentes histórias de vida: “Olhe… nós éramos seis irmãos e a minha mãe passava fome por mor da gente. E o meu pai, quando chegava do trabalho, começava a ralhar e acabava a bater-lhe. Encolhidos a um canto, a gente chorava. Mais tarde, o meu pai deu em beber e abandonou o trabalho. Um dia, desapareceu; nunca mais voltou. E a minha mãe, que era doente, passou a ir à monda, à ceifa e a tudo o que aparecia. Depois, a minha mãe morreu…” (Manuel da Fonseca — Cerromaior, p. 184).

A descrição da situação vivida pelos ceifeiros aquando dos intensos trabalhos nos campos alentejanos, na canícula de Verão, é igualmente dramática: “Autómatos, os homens lançavam a foice. Cabeças tombadas, bocas abertas, barbas crescidas, pingando suor. Suor amargo na boca e nos olhos, escorrendo entre a pele e a roupa, empapando tudo. Um formigueiro a borbulhar da testa e a foice ia e vinha. / O manajeiro olhava ainda o relógio” (Manuel da Fonseca — Cerromaior, p. 166). Ao longo do enredo, destaca-se também a história de Doninha, antigo carteiro local, que acabou por enlouquecer e que depois foi preso, tal como um criminoso. Um episódio que levou um homem do Povo a protestar: “Não está certo. Digo e repito: leve-se para o hospital, para o manicómio; para a cadeia, não. Bolas! Não matou, nem roubou (Manuel da Fonseca — Cerromaior, p. 195). Ora, esta contundente crítica, sintomaticamente colocada pelo narrador na boca de um dos anónimos do Povo, denunciava um dos dramas da saúde psiquiátrica, durante o Portugal salazarista: a falta de respostas clínicas levava ao encaminhamento destas complexas situações para a polícia e frequentemente para a mendicidade nas ruas (Susana Pereira Bastos — O Estado Novo e os seus vadios, ps. 263 e 266). E a descrição do narrador acompanha-nos, sempre que pensamos na imagem da noite cerrada, na vila de Cerromaior, a ser invadida pelo grito de desespero do encarcerado: “Era a espantosa imagem do Doninha, todo nu por detrás das grades da cadeia, uivando para a vila” (Manuel da Fonseca — Cerromaior, p. 206).  

Cerromaior denuncia também a situação vivida pelas mulheres, vítimas dos permanentes abusos por parte de uma sociedade profundamente machista, como bem o demonstra o exemplo da criada Antoninha, alvo de uma tentativa de estupro e imediatamente despedida... Uma sociedade na qual os homens derretiam na taberna quase todo o dinheiro que, dolorosamente, ganhavam, para depois, frequentemente, espancarem as esposas já em casa, onde reencontravam a nua realidade dos filhos com fome. Uma sociedade marcada pela palmatória na escola, pelos abusos dos poderosos patrões perante a fragilidade dos dependentes empregados sazonais, como bem evidencia o abate (a tiro) da cadela de João Codesso, após este se ter recusado a vender ou dar o pobre animal ao terratenente Carlos Runa, ou ainda os despedimentos de Maltês e de Toino Revel, motivados pelos meros rumores de que eles teriam publicamente denegrido a imagem do patrão. Uma sociedade, afinal, onde os mais pobres não podiam ter opiniões: “São como um rebanho: pedrada nos cornos, e boca calada” (Manuel da Fonseca — Cerromaior, p. 213). 

Ora, estas e outras matérias politicamente perigosas — o romance neo-realista encerrava mesmo com um acto de revolta de alguns camponeses — não poderiam ter passado despercebidas ao censor literário incumbido de analisar a obra. Eis as principais conclusões apresentadas pelo censor Silva Dias ao longo do seu relatório: “Este romance, tal como está concebido, não o julgo com possibilidade de ser autorizado”. E seguia-se a justificação: a obra em causa “apresenta ao leitor factos concretos que revelam profundas deficiências da estrutura social, entre nós. / A vida dura e miserável do trabalhador rural alentejano, a carência ao mesmo de assistência social, a indiferença do abastado pelo humilde que trabalha em seu proveito, cenas pornográficas e imorais efectuadas por pessoas de melhor condição, são neste romance postas em evidência, podendo concluir-se que o seu autor não mediu os perigos para a sociedade, de narrativas sobre pretensos preconceitos demolidores que levam os fracos ou os menos preparados a meditações condenáveis. / A descrição da desgraça a que chegou um antigo carteiro, que fora sempre zeloso e que enlouqueceu e foi levado para uma cadeia onde morreu, sem qualquer protecção das autoridades, dá-nos logo de começo uma má impressão do livro. / Depois espraia-se sobre a vida angustiosa do camponês, realçando-se as inúmeras agruras dos que vivem da terra, mais parecendo mendigos. As faltas de trabalho, a diferença, doentias, entre o patrão e o trabalhador e também exposições de atitudes indecorosas referentes aos amores clandestinos dum patrão, leva-nos à conclusão que inicialmente escrevi: o livro não deve ser autorizado, tal como é apresentado”. E, após mencionar que já tinha assinalado no original as passagens inconvenientes, acrescentou: “Um arranjo com o que fica, julgo tornar-se difícil, pelo sabor anti-social que pode ainda deixar transparecer” (EPHEMERA). No entanto, através de um posterior despacho superior (22/11/1943), o livro acabaria por ser autorizado, embora com cortes. Seria, de resto, interessante cotejar a versão inicialmente prevista por Manuel da Fonseca com os cortes solicitados pela censura, mas não se revelou, por enquanto, possível aceder a essas fontes (uma situação, de resto, muito comum quando se exploram os caóticos e dispersos arquivos da censura literária, durante o Estado Novo).

Seara do Vento foi outro dos romances escritos por Manuel da Fonseca que também foi analisado pela censura prévia. Em 1959, o censor literário coronel Fernando Salgado decidiu aprovar a sua publicação, mediante as seguintes conclusões: “ Retrata um meio rural, rude e de miséria, onde se sente formar o sentimento amargo e de revolta dos que se sentem escravos da terra e do patrão. […] / Parece-me, creio, que tudo isto tende a formar no juízo do leitor o sentimento de revolta contra a organização actual da sociedade. […] / É de deixar publicar, pois é do mesmo género explorado, há uns anos, pelos Fernandos [sic] Namora, Aquilino, etc., etc.” (EPHEMERA). Certo é que a reedição da mesma obra seria proibida em 1966, tendo como base, entre outros aspectos, os “novos elementos agora controlados sobre a tendência política do escritor e das suas possíveis ligações com o partido comunista” (Cândido de Azevedo — A censura de Salazar e Marcello Caetano, p. 608). A eventual ligação de Manuel da Fonseca ao Partido Comunista foi, por conseguinte, um dos motivos para justificar a interdição de um livro já anteriormente permitido, sublinhe-se, pelo mesmo censor (Cândido de Azevedo — Mutiladas e proibidas, p. 83)…

Manuel da Fonseca foi um dos mais destacados autores do neo-realismo português. Os dramas do mundo contemporâneo reclamam uma atitude mais interventiva, ainda que em novos moldes, de todos os cidadãos, nomeadamente dos intelectuais. Nesse sentido, o neo-realismo é uma lição que bem merece ser estudada, pelo que o reencontro com os seus autores revela-se uma necessidade premente…


Referências bibliográficas: Cândido de Azevedo — A censura de Salazar e Marcello Caetano. Imprensa, teatro, cinema, televisão, radiodifusão, livro, Lisboa, Caminho, 1999; Cândido de Azevedo — Mutiladas e proibidas. Para a história da censura literária em Portugal nos tempos do Estado Novo, Lisboa, Caminho, 1997; “Censura – despachos da direcção dos serviços da censura relativos a livros de Manuel da Fonseca”, EPHEMERA (26/6/2021); Fernando Rosas e J. M. Brandão de Brito (direcção) – Dicionário de História do Estado Novo, volumes I, 1.ª edição, Venda Nova, Bertrand Editora, 1996; Manuel da Fonseca — Cerromaior, 4.ª edição, Lisboa, Forja, 1976; Susana Pereira Bastos — O Estado Novo e os seus vadios. Contribuição para o estudo das identidades marginais e da sua repressão, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1997.

Renato Nunes (renato80rd8918@gmail.com)  


quarta-feira, 9 de junho de 2021

“Uma revolução há 46 anos”- Autor Luís Filipe Torgal

 No espaço de Opinião na Rádio Boa Nova, Luís Filipe Torgal apresenta um texto da sua autoria, alusivo ao 25 de abril. Luís Filipe Torgal é professor de História do Agrupamento de Escolas de Oliveira do Hospital, investigador e colaborador do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX da Universidade de Coimbra (CEIS20) e autor de vários livros e artigos científicos ou de intervenção cívica e conferencista.

“25 de abril de 1974 — «O dia inicial, inteiro e limpo / Onde emergimos da noite e do silêncio / E livres habitamos a substância do tempo» (Sophia de Mello Breyner). De madrugada, um grupo arrojado de capitães afetos ao Movimento das Forças Armadas (MFA) desencadeou uma ação militar que derrubou 48 anos de autoritarismos (Ditadura Militar, 1926-33, e Estado Novo, 1933-1974). Os revoltosos tomaram os locais estratégicos, em Lisboa (Terreiro do Paço, Quartel do Carmo, Casa da Moeda, Assembleia Nacional, ponte Salazar, Rádio Clube Português, Emissora Nacional, aeroporto da Portela, Quartel-General da PIDE/DGS…) e noutras capitais de distrito. O povo aplaudiu-os e, 6 dias depois, no «Dia do Trabalhador», um mar de gente saiu à rua para festejar e legitimar a revolução — só no cortejo de 1 de maio de 1974, em Lisboa, terão participado cerca de 1 milhão de pessoas que gritaram, em uníssono, «O povo unido jamais será vencido!».  

No dia 25 de abril, os militares sublevados quase não dispararam tiros (houve «apenas» 5 vítimas: 4 civis, assassinados por agentes da PIDE/DGS, e 1 agente desta polícia política morto por um militar quando fugia de uma multidão enfurecida). Preferiram exibir cravos vermelhos nos canos das suas armas.

O golpe militar do MFA convergiu numa revolução que depôs e exilou o presidente da República, Américo Tomás, e o presidente do Conselho, Marcello Caetano. Dissolveu a Assembleia Nacional. Destituiu os governadores civis do continente, os governadores dos distritos autónomos da Madeira e dos Açores e os governadores-gerais das províncias ultramarinas. Nomeou uma Junta de Salvação Nacional (JSN). Libertou e amnistiou os presos políticos e permitiu o regresso dos exilados. Originou a implosão dos organismos políticos do Estado Novo: PIDE/DGS, Legião Portuguesa, Mocidade Portuguesa, Ação Nacional Popular, censura/exame prévio e tribunais plenários.

A JSN — constituída por três generais, um brigadeiro, um coronel, um capitão-de-mar-e-guerra e um capitão-de-fragata —, presidida pelo general António de Spínola, assegurou a transição do poder até à nomeação de um governo provisório, que viria a ocorrer no dia 16 de maio desse ano.

À 1h30 do dia 26 de abril, o general Spínola leu ao país, na RTP, o comunicado da JSN, onde assumiu os seguintes compromissos: garantir a sobrevivência da nação no seu todo pluricontinental (decisão que questionava a essência do programa do MFA, o qual reconhecia que a solução para as guerras do ultramar era política e não militar); permitir a criação de associações políticas e a liberdade de expressão do pensamento; preparar o caminho para a eleição, por sufrágio direto, de uma Assembleia Nacional Constituinte e de um presidente da República.

Os dois anos que se seguiram até à elaboração e aprovação da Constituição de 1976 e à sua entrada em vigor foram agitados. Iniciou-se um processo difícil de democratização, descolonização e desenvolvimento cívico, cultural e educativo. Eclodiram confrontos acesos entre partidos e fações político-ideológicas, os militares do MFA e o general Spínola. Registaram-se rebeliões a 28 de setembro de 1974, 11 de março e 25 de novembro de 1975. Cometeram-se erros, pois o rumo de uma revolução é sempre doloroso e imprevisível. Portugal esteve prestes a soçobrar numa guerra civil. Mas os portugueses conseguiram reerguer-se, conciliar-se e fundar a III República — um regime democrático pluripartidário e semipresidencialista, assente na liberdade de expressão e na divisão dos poderes, que aderiu à União Europeia, em janeiro de 1986.   

Entretanto, afastámo-nos do «dia inicial, inteiro e limpo» idealizado por Sophia de Mello Breyner. A democracia esmoreceu. Por isso, medrou no país uma «direita radical» (inspirada em Marine Le Pen, Salvini, Trump e Bolsonaro) que renega o regime democrático fundado pela Constituição de 1976 e ambiciona fundar um novo regime. O alegado federador desse movimento acusa, indiscriminadamente, os partidos políticos, os seus líderes e militantes de corrupção, clientelismo e nepotismo. Como se tudo isto não existisse em doses colossais e insuportáveis nos regimes autoritários ou nas atuais «democracias iliberais» (dirigidas por Trump, Bolsonaro ou outros chefes populistas nada recomendáveis). Como se muito mais do que isto não tivesse persistido durante o Estado Novo de Salazar e Caetano: o escândalo sexual do Ballet Rose (esquema de pedofilia, prostituição e abuso de menores que envolvia altas figuras do Estado Novo e que foi encoberto pelo regime, mas denunciado na imprensa britânica, em 1967); o assassinato do general Humberto Delgado (1965) e de outros oposicionistas por esbirros de Salazar; o tráfico de influências para obter cargos e benefícios no setor público; a promiscuidade entre o Estado e os grupos económicos; a ação aterrorizadora da PIDE; as arbitrariedades dos tribunais plenários, com os seus juízes corruptos e manipuláveis; a chantagem, as prisões e as exonerações por motivos políticos; as eleições fraudulentas; as mulheres submissas e amordaçadas; o desprezo pela democratização da educação e o desinvestimento na melhoria das condições de vida das populações; a eternização da guerra colonial, que destruiu as vidas de muitos jovens, isolou Portugal da Europa e do mundo e inviabilizou o seu crescimento, numa época em que as economias dos países da Europa ocidental cresciam a todo o gás (os «Trinta Gloriosos» anos); a imposição do pensamento único e da censura, que mistificava a realidade e inculcava nos portugueses a ilusão de viverem num oásis de paz e prosperidade.   

Quem quer viver de novo na «noite» e no «silêncio»? O regresso a uma versão reciclada do populismo nacionalista e antieuropeísta significará sempre o retorno a um país autoritário, amordaçado, isolado, retrógrado e ainda mais corrupto e desigual. Creio que a Constituição de 1976 (que já foi revista sete vezes) reúne os instrumentos necessários aos ajustamentos do sistema político e à regeneração da democracia. Têm a palavra todos os portugueses e não apenas «os portugueses de bem» (seja lá o que isso signifique no discurso populista incendiário), os arrivistas e aqueles que prosperam exclusivamente à sombra dos partidos políticos que gravitam nas esferas do poder”.   


Luís Filipe Torgal  

“A revolução de 28 de maio de 1926 e o fim da Primeira República”- Autor Luís Filipe Torgal

No espaço de Opinião na Rádio Boa Nova, Luís Filipe Torgal apresenta um texto alusivo à revolução de 28 de maio de 1926. Luís Filipe Torgal é professor de História do Agrupamento de Escolas de Oliveira do Hospital, investigador e colaborador do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX da Universidade de Coimbra (CEIS20) e autor de vários livros e artigos científicos ou de intervenção cívica e conferencista.

"A Primeira República foi implantada a 5 de outubro de 1910, através de uma rebelião militar gerada pelo Partido Republicano Português, a Maçonaria e a Carbonária. Os seus protagonistas inspiraram-se nos ideais da Revolução Francesa de 1789, nas ideologias socialistas e nas conceções racionalistas e positivistas difundidas no século XIX.

Uma Assembleia Nacional Constituinte retintamente republicana aprovou a Constituição de 1911, que arquitetou um sistema parlamentarista, onde os poderes do Presidente da República e do Governo estavam cerceados pelo Congresso formado pela Câmara dos Deputados e o Senado.

Os republicanos encontravam-se empenhados em construir um regime demoliberal enquadrado por genuínas preocupações sociais. Daí a Constituição republicana suprimir os privilégios de nascimento e os foros de nobreza. Daí o governo provisório e os governos constitucionais, saídos da revolução, decretarem a lei da greve, leis da família e leis laborais progressistas, que tencionavam mitigar as desigualdades. Daí a obsessão dos republicanos combaterem o analfabetismo, através da escolaridade obrigatória e gratuita para todas as crianças dos 7 aos 14 anos, da abertura de mais escolas, da adoção de novos currículos e de pedagogias mais humanistas, do investimento na formação de professores e no aumento dos seus salários. Daí a publicação de arrojadas leis anticlericais que tinham o desiderato de criar cidadãos livres e emancipados dos dogmas e dos preconceitos impostos pela Igreja Católica. Uma Igreja Católica que, na perspetiva dos republicanos, estava dependente de um Papa que interferia de modo despótico na vida interna das nações e era constituída por um clero conivente com as velhas elites monárquicas.

Mas a Primeira República nunca conseguiu democratizar-se e socializar-se. E acabou sequestrada pelo hegemónico Partido Republicano Português(vulgo Partido Democrático)entrincheirado em torno do seu líder, Afonso Costa, até à revolução sidonista de dezembro de 1917. Depois do assassinato do ditador populista Sidónio Pais (14 de dezembro de 1918), do colapso do sidonismo e da derrota da Monarquia do Norte (janeiro de 1919), o partido atrás citado resistiu e manteve a sua preponderância, mas acabaria dividido e dirigido por personalidades bem menos prestigiosas.    

A obstinação do Partido Democrático e do seu líder carismático Afonso Costa por não suavizar a «intangível» Lei da Separação (do Estado das Igrejas) — que penalizava excessivamente a Igreja Católica e dificultava a liberdade religiosa — originou uma condenação do regime pelo Papa e uma consequente resistência da maioria do clero e dos crentes à República. Mais, a decisão de Afonso Costa de conduzir Portugal a uma intervenção total na Primeira Guerra Mundial, ao lado da Inglaterra e da França, na frente ocidental europeia e nas frentes africanas, garantiu a preservação das colónias portuguesas. Todavia, agravou as cisões entre os republicanos, acirrou as oposições monárquicas e católicas, mergulhou de novo o país na ameaça da bancarrota, inviabilizou a concretização do programa demoliberal e social republicano, originou uma intrusão dos políticos nas instituições militares e descredibilizou o regime perante as classes médias, o proletariado e os militares.

O contexto económico e social caótico onde naufragaram as nações no rescaldo da guerra impediu os republicanos de redimir e consolidar a Primeira República. Na Itália, nasceu, em 1921, o Partido Nacional Fascista, de Mussolini, que tomou o poder, no ano seguinte. Na Alemanha, o Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores (Partido Nazi) formou-se, em 1920, e tentou conquistar o poder através de um golpe de estado ocorrido em novembro de 1923. Hitler e o nazismo teriam de esperar pela nova derrocada económica e social europeia ditada pelo Crash da Bolsa de Nova Iorque (1929) e a Grande Depressão, para capturarem o Estado Alemão, em 1933. Noutros países da Europa vivia-se um combate não menos implacável entre fações socialistas internacionalistas e fações ultranacionalistas e autoritárias de teor «fascista».

Em Portugal, os governos republicanos continuaram a tomar posse e a desabar a uma velocidade estonteante, sem disporem de qualquer margem política e social para concretizarem projetos reformistas coerentes de salvação nacional. Verdadeiramente, ninguém respeitava a Constituição de 1911. O Partido Democrático, cada vez mais debilitado, continuava a manipular e a ganhar as eleições, e os restantes partidos conspiravam para o derrubar pela força. Por estas razões, a Primeira República foi agonizando num pântano de instabilidade crónica, até ser definitivamente derrubada por um pronunciamento militar ocorrido a 28 de maio de 1926.

O pronunciamento teve três chefes militares: o general Sinel de Cordes, simpatizante monárquico integralista, líder oculto do golpe e próximo do discreto mas hábil general republicano conservador Óscar Carmona; o general Gomes da Costa, veterano das campanhas de «pacificação» de África e da Primeira Guerra Mundial, crítico recalcitrante dos políticos e conhecido por um temperamento imprevisível; e o almirante Mendes Cabeçadas, herói do 5 de outubro e republicano moderado.

Os revoltosos dividiam-se em duas fações antagónicas: uma revolucionária de direita, que desejava instaurar um governo militar oposto aos partidos; a outra reformista, que acreditava ser possível reabilitar a República, extirpar as suas enfermidades e retornar à pureza inicial dos seus ideais. Ambas pretendiam acabar com a supremacia política do Partido Democrático.

A primeira fação, chefiada por Gomes da Costa, anunciou duas proclamações que declaravam a necessidade de o Exército implantar um «governo forte», com a «missão [de] salvar a Pátria» de uma «minoria devassa e tirânica» de políticos «irresponsáveis». A segunda fação, liderada por Mendes Cabeçadas, anunciou um programa que defendia um regime republicano regenerado, que reduzisse as despesas e regularizasse as contas públicas, organizasse uma justiça independente e célere e reorganizasse e modernizasse as forças militares.

Mendes Cabeçadas presidiu a um primeiro Governo, que incluía Salazar como ministro das finanças, Gomes da Costa na pasta da Guerra e Óscar Carmona na pasta dos Negócios Estrangeiros. Porém, Gomes da Costa discordou da atribuição de algumas pastas ministeriais, rejeitou as alegadas fidelidades republicanas e maçónicas mantidas por Cabeçadas, exonerou-o e assumiu ele próprio o cargo de presidente de um novo ministério, bem como as regalias de chefe de Estado interino. Esses dois governos duraram poucos dias. As decisões erráticas e extemporâneas de Gomes da Costa de exonerar os seus ministros António Claro, Óscar Carmona e Gama Ochoa, de acumular funções ministeriais e personalizar o poder deixaram-no isolado. Representantes das Forças Armadas encabeçadas por Sinel de Cordes ordenaram a sua demissão, prisão e exílio nos Açores. A 9 de julho de 1926, Óscar Carmona assumiu os cargos de presidente de um novo ministério e de ministro da Guerra. Em novembro do mesmo ano, assumiu também a presidência de República, caucionou e consolidou a nova solução ditatorial e viria a tornar-se o principal sustentáculo de Salazar.

Entretanto, perante a adesão alegadamente maciça e nacional à insurreição militar de 28 de maio, que eclodira em Braga e se estendera a outras cidades do país, o último governo do Partido Democrático, presidido por António Maria da Silva, demitiu‑se, as Câmaras foram dissolvidas, o Parlamento fechou e o presidente da República, Bernardino Machado, resignou. O historiador, António José Telo, escreveu que «nem o famoso bom povo republicano, nem as milícias, nem os comités de sargentos, nem os sindicatos, nem os partidos, nem sequer os responsáveis políticos lutaram por ela [República]» (Primeira República II. Como Cai Um Regime, 2011). Assim, a Primeira República morria, aparentemente, esgotada e enjeitada por todos.

Depois de um momento de indefinição sobre o destino da revolução, começou um novo ciclo na vida política do país. Primeiro moldado pela Ditadura Militar (1926-1933), onde foram instauradas as bases embrionárias da censura e repressão e o défice das contas públicas atingiu cifras inauditas. Perante a incompetência administrativa demonstrada pelas governanças militares, Salazar foi nomeado ministro das finanças, em 1928, com o poder de disciplinar os gastos de todos os ministérios e a missão de alcançar rapidamente a estabilidade financeira. Assim, iniciava-se o processo de transição para o Estado Novo (1933-1974), o qual, como afirmou Salazar — entretanto promovido a «salvador da pátria» —, numa entrevista concedida, em 1933, ao seu mestre da propaganda, António Ferro, era uma «ditadura que se aproximou, evidentemente, da ditadura fascista, no reforço da autoridade, na guerra declarada a certos princípios da democracia, no seu caráter acentuadamente nacionalista, nas suas preocupações de ordem social». Importa referir que os dois regimes autoritários que sucederam à Primeira República acabaram ainda por sofrer, entre 1927 e 1938, uma resistência vigorosa das oposições republicanas democráticas, socialistas, comunistas e anarquistas – resistência que, contudo, acabaram por esmagar.


O primevo regime republicano português caiu sem cumprir as suas promessas idealistas e voluntaristas de modernizar, democratizar e socializar o país e desse modo refundar e redimir a pátria. Não obstante, pelo que atrás ficou dito, impõe-se esclarecer que a Primeira República esteve muito longe das representações redutoras divulgadas por ideólogos da propaganda do Estado Novo, como João Ameal, que a caricaturaram como uma «balbúrdia sanguinolenta», ou propagadas por historiadores recentes, que viram nela uma aberração ideológica impulsionada por alguns intelectuais maçónicos, urbanos, ambiciosos e irresponsáveis. A função da História não é construir representações maniqueístas (e panfletárias) do passado, nem julgar de modo anacrónico os seus protagonistas, mas tentar compreendê-lo e representá-lo de forma objetiva, sustentada e problematizadora”.   


Luís Filipe Torgal

sábado, 5 de junho de 2021

O Nosso Henrique - Autora do texto Lucinda Maria

Após ver a foto do Henrique na sua página do facebook da professora Lucinda Maria, imediatamente me cativou ler o texto. O Henrique era conhecido por todos em Oliveira do Hospital, mas infelizmente não teve a sorte de nascer numa família que o fizesse crescer  como merecia.  Ler o o texto trouxe-me súbitas saudades do Henrique.

Passo a citar:

" Era assim o Henrique, eterno menino de fala cantante… franzino…olhar vivo. Nascido no seio de uma família humilde e marcada pelo álcool, que ia sobrevivendo com algumas dificuldades financeiras. Lembro bem a casa rasteirinha onde viviam, lá para os lados da fonte do Rebolo. Vários rapazes e uma irmã, a mais nova. 

O Henrique não foi à escola… Tinha algumas dificuldades cognitivas, assim como outro dos irmãos, precisamente o que viveu com ele até ao fim. Penso que os outros ainda são todos vivos… casaram e têm a sua vida normal.



Ele calcorreava as ruas da nossa terra… e ajudava uns e outros… fazia vários trabalhos. Sempre prestativo… sempre simpático… sempre humilde. Uma altura, ajudou numa peixaria. Com uma caixa de peixe à cabeça, apregoava:

- Peixe fêco! Peixe fêco!

E a sua voz fazia-se ouvir como uma canção infantil…ingénua e genuína, como ele próprio. Havia quem pretendesse “gozar” à custa dele. Penso que esses intentos não eram bem sucedidos. A sua perspicácia segredava-lhe sempre uma resposta pronta que desarmava os “espertinhos”. Podia contar muitos episódios que atestam bem esta sua característica. Vou contar apenas um.

Recordo-me do Henrique. Lembro-me de na década de 90 o ver a vender cautelas nas ruas de Oliveira do Hospital. Via-o como uma pessoa pobre com uma deficiência mas humilde e sempre pronto a ajudar.

Vou citar um texto que Lucinda Maria, professora aposentada do 1ºciclo, mora no concelho de Oliveira do Hospital. A professora Lucinda dignou.se a escrever um texto sobre o Henrique que me ajudou a conhece-lo e provocou em mim subitas saudades do Henrique.  

Passo a citar o texto de Lucinda Maria

"Certa manhã, saía o Henrique da casa comercial Júlio dos Santos, todo contente e sempre de ar afável. À porta, cruzou-se com um senhor engenheiro cá da cidade, pessoa bem conceituada, que entrava no mesmo estabelecimento. Ao vê-lo, o nosso amigo estendeu a mão para cumprimentá-lo. Ele correspondeu, mas resolveu dizer:

- Estou cheio de sorte! 

Meio admirado, o Henrique perguntou:

- Então poquê, senhole engenheilo?

- Porque ainda é cedo e é a primeira mão de porco que aperto hoje!

Prontamente, sem pensar duas vezes, ajeitando o seu boné de pala quase a tapar-lhe os olhitos vivos, o nosso Henrique respondeu:

- Então, eu ainda estou com mais sote, poque já é a segunda!

Perante isto, o que dizer? O que pensar? Como terá ficado o senhor engenheiro? Desconcertado, certamente. 

Era assim o eterno menino. A mim, chamava-me “senhola pofessola” e, muitas vezes, tentou vender-me cautelas, com aquela sua lógica de que “Há horas felizes!”. É verdade, mas, infelizmente, não gosto de jogo. Penso que nunca lhe comprei nenhuma, mas também nunca fui sarcástica com ele… sempre o estimei… como merecia, de resto.

Um dia, partiu… sem que déssemos por isso… sem ele próprio dar por isso. A sua voz cantante deixou de ecoar nas ruas da nossa terra. Ou será que não? No fundo, ele ainda está aqui. 

Lucinda Maria"

quinta-feira, 3 de junho de 2021

Família (música escola do Duarte)


O conforto do fim de semana em família. Foi delicioso ouvir o meu filho cantar esta música. 

Letra completa:

Sei que sou pequenino

Nem sempre me porto bem 

Mas o pai gosta de mim

E a mãe também


Quando estou longe de casa 

Penso que se tivesse uma asa

Voava, voava, voava....

Para os braços dos meus pais


Família

É o melhor do mundo

Não há tesouro 

Lá no fundo do mar

Que valha mais 

Que o abraço dos meus pais...




Uma magnífica homenagem à família e aos pais. Amei a música.
Obrigado Márcio (Professor de Música do Jardim de Infância de Travanca de Lagos), professores e auxiliares que tornam os momentos na escolas momentos de enorme felicidade.