terça-feira, 10 de janeiro de 2017

Mário Soares

          Mário Soares é, de facto, um «animal político». Não nasceu para a política depois do 25 de Abril. Ao invés, combateu o Estado Novo salazarista e marcelista, em tempos de servidão, quando era preciso ter coragem para vencer o medo e fazer política. No PCP, no MUD, na CEUD, no PS, nas candidaturas de Norton de Matos e de Humberto Delgado, na defesa da família do "general sem medo", barbaramente assassinado pela PIDE — a qual, hoje sabemo-lo, agiu a mando ou, no mínimo, com a aquiescência de Salazar —, na denúncia da guerra colonial. Para os mais esquecidos, importa recordar que nessa época Portugal vivia agrilhoado a um regime autoritário, com censura, polícia e prisões políticas, tribunais plenários, deportações, ostracismo e demissões sumárias por motivos políticos.

            Abandonado pelo mundo capitalista, pelo mundo comunista e pelo Movimento dos Países Não Alinhados, o país vivia «orgulhosamente só», dilacerado por um regime e uma guerra colonial anacrónicos que desgastaram a sua população, desbarataram a economia e as finanças do Estado e penhoraram o seu futuro. Excetuando algumas centenas de idealistas que arriscaram as suas vidas e condicionaram as vidas das suas famílias para se baterem pela queda de um regime que pelo menos a partir dos anos 60 entrou em estado de agonia, a maioria dos portugueses foi aceitando, de modo mais ou menos subserviente, o seu destino. Outros estavam mesmo convictos que o Estado Novo haveria de eternizar-se. Muitos dos oposicionistas idealistas acabaram presos, deportados ou exilados, tiveram uma vida trágica, adoeceram e morreram precocemente, em condições económicas difíceis. Era o tempo das ideologias, em que os oposicionistas não faziam política com a obsessão interesseira de ascenderem e enriquecerem nas hierarquias públicas e privadas, mas com a esperança de mudar o país e o mundo. «O tempora, o mores!» Depois da Revolução de Abril, Soares bateu-se contra a sovietização do país e foi um dos primeiros arautos e construtores da adesão de Portugal à Comunidade Económica Europeia 
Ultimamente, tornou-se um crítico intransigente do neoliberalismo e da globalização selvagens, que agudizaram as desigualdades e tornaram o mundo mais perigoso. Soares é, pois, uma das grandes personalidades da História portuguesa do século XX. A democratização e a modernização do país resultantes da revolução do 25 de Abril e da posterior adesão à União Europeia devem-lhe muito. Por exemplo, Cavaco Silva só existiu como político, graças à ação cívica de políticos como Soares. Cometeu erros políticos e por vezes aparentava uma altivez desconcertante? Certamente, mas a sua vida cívica longa e cheia e os bons serviços prestados ao país já redimiram os seus pecados veniais. Vem este arrazoado a propósito de textos inenarráveis, mais ou menos anónimos, que, ultimamente, circulam na net e invadem as nossas páginas do facebook. É demasiado fácil, à luz dos factos e dos documentos, desconstruir esses textos caceteiros e trauliteiros que julgam as pessoas com base em atoardas bafientas e falsificam grosseiramente a História. Esses textos que são engendrados por gente desprovida de memória histórica e possuída por um ódio sectário e um saudosismo neurasténico. Gente que não tem sequer a coragem de os assinar e cuja mentalidade estagnou num mundo anterior a 1974. Hitler foi exímio no engenho e arte de suscitar ódios e fabricar mitos malévolos para endrominar as massas populares. Todos sabemos para que vielas putrefactas conduziu ele a Alemanha e a Europa. Estando nós em época natalícia, melhor será dizermos: que Deus lhes perdoe, porque eles não sabem o que fazem.
 Luís  Filipe Reis Torgal