quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

Há pedras que não se levantam- Artigo de Mia Couto (escritor Moçambicano)


Um texto maravilhoso de um grande escritor escritor moçambicano que nos dá a conhecer os motivos que levaram à ascensão do Estado Islâmico em Moçambique. Redigido em exclusivo no Newletter do  Fumaça. Um fantástico grupo de jovens jornalistas. Consultem o site. 

Deixo-vos o texto de Mia Couto:

 Olá. 

Os escritores alimentam uma relação equivocada com os outros. Talvez eles sejam escritores por essa mesma razão: a consciência de que estão equivocados quando representam o mundo. Os escritores, em geral, não resistem à tentação de ficarem calados quando lhes dirigem todo o tipo de perguntas. Vão a todas. Têm opinião sobre tudo: sobre a situação no Iraque, sobre as ameaças climáticas, sobre o destino do Trump, sobre os caminhos atribulados da COVID-19. Perguntas que não se fazem a um exímio dentista ou a um engenheiro espacial são dirigidas aos escritores como se eles fossem dotados de uma sabedoria particular. No meu caso, quando me fazem essas perguntas, a resposta mais honesta seria confessar: eu escrevo exatamente porque não sei. Sou um especialista em ignorâncias. E imagino que essa seja a mesma condição de todos os poetas e escritores: o gosto de reconhecer a sua mais profunda falta de erudição sobre o mundo. A única habilidade do escritor é enfrentar sem disfarce este desamparo. 

Toda esta palavrosa introdução vem a propósito do desafio que a Fumaça me lançou: escrever umas tantas linhas sobre a situação de guerra em Cabo Delgado. Quando me pedem explicação sobre o conflito no Norte de Moçambique, a primeira coisa que me ocorre é a admissão da minha incapacidade. Sei que esta declaração de não entendimento não resulta. O mais fácil e o mais lucrativo para um jornal seria apresentar certezas com a energia com que um jogador de cartas joga um trunfo sobre a mesa. 

Esta minha contribuição tem a pretensão de sugerir como a abordagem jornalística da situação em Cabo Delgado tem alertado para a existência de um drama de dimensão global. Mas nem sempre a abordagem redutora de um certo tipo de jornalismo nos ajuda ao entendimento das causas daquela violência. 

Quando surgiram os primeiros ataques na província nortenha de Cabo Delgado alguns sociólogos ligados a ONGs anunciaram que tinham uma explicação sobre o que estava a acontecer. A elucidação não variava: os revoltosos insurgiam-se contra a exclusão social, manifestam-se contra práticas injustas de representantes do Estado. Tratava-se, pois, de uma violência esperada e legitimada contra a violência do Estado moderno. Essa explicação tinha um “senão”: ela explicava muito pouco. Em todas as províncias de Maputo acontece a mesma exclusão e a injustiça. Porquê só ali, na costa de Cabo Delgado, ocorria esse fenómeno? Não existe Estado que não imponha a sua presença por vias que não tomam em conta as especificidades das práticas rurais e locais de governação que uns chamam de “tradicional”. 

Por um acaso, posso dizer que conheço aquela região. Desde 2004 que, no meu trabalho de biólogo, visito os distritos de Palma e Mocímboa da Praia, os mesmos distritos onde hoje sucedem os ataques terroristas. Perdi a conta às vezes em que, de tenda às costas, fiz estudos de ecologia naquelas zonas costeiras. Essas permanências duravam, por vezes, várias semanas. Nas primeiras visitas, eu vi aquilo que corresponde ao estereótipo que a Europa construiu da “África profunda”. Cruzávamos na estrada com elefantes, a aldeia onde eu acampava foi objeto de ataques de leões que, num espaço de três meses, devoraram 25 mulheres camponesas. A presença do Estado era uma coisa vaga, quase inexistente. Foi ali – e não podia ser em mais nenhum lugar de Moçambique – que escrevi o romance “A Confissão da Leoa”. Ao longo do tempo, fui-me apercebendo que entre os camponeses, pescadores e caçadores daqueles lugares era muito nebuloso o sentimento de pertença nacional. Quando queria saber do mundo, aquela gente olha para o oceano. É ali que mora o grande caminho, é por esse grande mar que se encontra o grande cordão que os mantém ligados a uma identidade antiga e coletiva. Até ao início do século XX, aquela região, apesar de estar dentro do mapa de Moçambique, funcionava como parte orgânica de um velho império Swahili que, durante séculos, respondeu perante o sultão de Zanzibar. 

Era raro ver por ali uma autoridade que representasse o Estado, essa criatura abstrata e distante cuja cabeça está a três mil quilómetros, lá no Sul, onde se fala outra língua, se pratica outra religião e se constrói uma outra narrativa do que será o futuro. As pessoas raramente falavam português, não escutavam nem as rádios e muito menos as televisões de Moçambique. Sintonizavam as estações tanzanianas. Aos poucos, porém, aquela paisagem humana foi mudando. E o que eu não via era bem mais do que era visível. Negócios obscuros de drogas, de negócios de trânsito de imigrantes vindos dos Grandes Lagos, de venda de rubis fizeram enriquecer camponeses pobres que beneficiavam da ausência total do Estado. Não se pode ser ilegal quando a lei do Estado não prevalece. Não havia outra lei senão os mandamentos locais. Não era preciso ser informal. Porque faltava o formal. Camponeses viraram garimpeiros, pescadores viraram transportadores de mercadorias, caçadores viraram motoristas que transportavam cargas humanas. Enfim, uma terra completamente periférica passou a sentir que era o centro e que vivia bem sem a presença de outros. Mas a riqueza criada por esses pequenos e clandestinos negócios deixava de lado a grande maioria da população local. 

De repente chegou o Estado. E quis impor ordem. Quis controlar, quis ficar dono como é da sua própria natureza. Chegaram também as empresas estrangeiras. Que obrigou a que se pagasse impostos e exigiu dos camponeses ricos e pobres que passassem a ser cidadãos de um Estado moderno. Esse foi o grande primeiro embate. Essa modernidade que assim se estabelecia roubava espaço aos mecanismos locais legítimos (e sobretudo os ilegítimos) que se haviam estabelecido. 

Mas houve mais, houve uma invasão progressiva de profetas radicais que, em nome da religião, preparavam a violência que hoje se manifesta. Jovens que tinham sido enviados para “estudar” na Arábia Saudita e no Sudão regressavam como mensageiros de uma nova verdade. E que consideravam que o islamismo há séculos estabelecido na região era uma deturpação de uma leitura mais pura do Alcorão. Testemunhei encontros de violência verbal e física entre os muçulmanos já instalados em Cabo Delgado e os que chegavam vindo de outras madrassas, de outras geografias. Em 2004, fui obrigado a fugir do pátio de uma mesquita para onde eu tinha sido convidado para falar com a comunidade religiosa. Inesperadamente, a mesquita foi assaltada violentamente por jovens muçulmanos que defendiam “outro” Islão.

Vou deixar de lado outras dimensões daquelas sociedades da costa de Cabo Delgado (é importante entender que a violência atinge sobretudo os distritos litorais). Seria importante conhecer tensões étnicas que possuem raízes antigas, sobretudo naquela zona costeira. Recordo-me de que, enquanto preparava para escrever um outro livro, viajei por aquelas zonas em busca de memórias da escravatura. Ninguém se oferecia para depor, ninguém queria partilhar histórias antigas. Escravatura?, perguntavam, fingindo-se perplexos. Nunca aqui houve nada disso, respondiam. Até que um dia um velho deu-me o seguinte conselho: há pedras que não se levantam, debaixo delas moram fantasmas que nunca foram enterrados. 

Não quis neste breve artigo dar respostas. A intenção foi apenas sugerir que, como disse o velho pescador, há fantasmas antigos por debaixo de pedras. A violência em Cabo Delgado tem dimensões históricas, sociais, religiosas que escapam a uma resposta fácil e total. 


Mia Couto

Escritor e biólogo moçambicano

sábado, 13 de fevereiro de 2021

"Pai como é que metem a água na garrafa?"

Hoje eu e o Duarte fomos passear de manhã a Travanca de Lagos.

No final do passeio sentámo-nos no muro da escola primária e o Duarte perguntou enquanto bebia água de uma pequena garrafa de plástico "pai como é que metem a água na garrafa".

A minha imaginação percorreu um conjunto de caminhos para encontrar uma explicação simples que uma criança de 4 anos acabados de fazer percebesse. 

Refleti um pouco e apercebi-me que só há pouco mais de uma década entendi porque é que a água brotava das nascentes dos rios. Na minha mente permaneceu durante muito tempo a ideia da minha avó Prazeres, muito religiosa, que dizia que a água brotava debaixo da terra devido a um milagre divino.

Bem continuando a minha exposição à pergunta do Duarte:

"Duarte a água vem das nuvens e quando chove a água cai no solo e vai para debaixo da terra"

"A água permanece debaixo da terra criando rios"

O Duarte não percebeu muito bem essa parte (rios de baixo da terra) e tive que lhe dizer explicar melhor: "imagina um copo gigante que está debaixo na terra que apanha a água que cai da chuva". "Lembra-te naquela água que está naquele copo gigante debaixo da terra, nunca há sol e a água fica lá muito tempo".

"Porque é que o sol não entra pai" perguntou o Duarte ao que eu respondi "Não entra porque como te disse a água do copo gigante está debaixo da terra e o sol não consegue lá chegar" Para não estar a introduzir a palavra infiltrar que dava azo a outro diálogo e mais perguntas avancei com a explicação.

 "Há duas maneiras que o Homem tem de tirar a água do copo gigante que está debaixo da terra" 

"Quais são as duas maneiras" perguntou o Duarte 

"Sabes Duarte a primeira maneira é furar a terra com uma broca gigante para chegar à água que está no copo gigante"

"Pai como é que conseguimos tirar a água do copo gigante?"

"Bem quem tira a água é um motor" "pai como é que o motor tira a água" Bem inverti a exposição e falei-lhe do aspirador. "Sabes Duarte imagina que o motor é um aspirador que aspira o lixo qua anda no chão da nossa  casa" "O motor aspira a água que está no copo e vai para as torneiras e daí para a garrafa de água".

Queres saber qual a segunda maneira. Ele estava confuso mas aceitou que eu continuasse a explicação. A segunda maneira foi mais difícil de explicar. Foi a minha dúvida que permaneceu na minha cabeça durante mais de duas décadas.




"A  segunda maneira acontece quando o copo gigante fica cheio e a água entorna e forma rios de baixo da terra. Os rios percorrem distâncias muito grandes debaixo da terra até que encontram um local mais fraco e conseguem aparecer à superfície dando origem às nascentes dos rios e ribeiros" 

Esta segunda ideia definitivamente o Duarte não percebeu bem ou talvez eu não tenha conseguido ter a capacidade de a explicar de um modo mais simples. Ficou a tentativa.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2021

A minha família

Saudade é uma palavra não tem sinónimo em mais nenhuma língua.No ano 2020 essa palavra fez-se sentir de forma muito cruel. Não poder abraçar quem mais amamos por medo de lhe passar o maldito vírus, é duro.

Não tem sido fácil para mim perceber qual a decisão certa a tomar num determinado momento. Sem dúvida é o coração a falar de uma maneira diferente da razão.

Desde o tão polémico natal de 2020 que não estou à mesa com ninguém da minha família. Antes do Natal evitava ao máximo estar em casa dos meus pais por momentos que seja sem máscara. É uma mistura de sentimentos que me tornou aqueles momentos em famílias diferentes e sem a descontração habitual. 

A última vez que consegui estar descontraído em família foi nas férias de verão naquela semana na praia da Tocha, onde nos reunimos em pequenos grupos naquela casa da praia com um terraço onde ainda hoje sinto o palato daquele peixe grelhado e o sol quente daquela semana de agosto. 

A derradeira vez que chorei de alegria foi na primeira semana de agosto  após ter recebido a  notícia que ia ser tio, estávamos então na Figueira da Foz com os meus pais, avó, irmã, cunhado, Cecília e com o meu filho.

Tenho saudades das conversas com a minha irmã e o meu cunhado sem máscara, de discutir política com o meu tio ao domingo ou História com o meu pai.

Os meus pais têm sido incansáveis e admito que por vezes tenho  agido de forma demasiado apreensiva quando lhes faço uma visita, daí evitar lá ir. As deslocações para Grândola contribuíram para aliviar esses contactos e obrigado a focar-me apenas no trabalho.

Os meus pais desde o nascimento do Duarte, nunca nos negaram  o auxílio e foram essenciais na definição da nossa vida profissional. A minha mãe várias vezes acordou às 6h para estar às 6h30 em nossa casa, esperar que o Duarte acordasse para o levar à creche com mais horas de sono. Por várias noites o Duarte ficou a dormir em casa dos meus pais com pouco mais de um ano de vida.

 A minha mãe foi bafejada com uma reforma longa mas merecida em consequência de um  trabalho que começou aos 18 anos como professora em Chãs de Égua. Que história bonita que ela me contou sobre  a sua primeira escola em Chãs de Égua. Quando fui carteiro passava junto da antiga escola primária de Chãs de Égua, atualmente um centro de interpretação da arte rupestre e lembrava-me do ano longínquo de 1973 quando quando a minha mãe se foi apresentar como professora naquela localidade, localizada numa encosta da Serra do Açor no concelho de Arganil.

Em 1973 a minha mãe, ainda há muito pouco tempo tinha feito 18 anos, quando foi com o tio Renato que eu nunca tive a sorte de conhecer, com a sua esposa a minha tia Graça (irmã da minha avó), com o meu tio Vasco (irmão da minha mãe) então com 7 anos e a minha avó na época uma jovem com 38 anos . Os 5  foram no carro do meu tio Renato em direção a Chãs de Égua com o intuito de a minha mãe se apresentar na escola onde iria começar a exercer a profissão de professora do primeiro ciclo. 

 A estrada era de terra batida e as constantes dúvidas na direção a tomar levaram à necessidade de parar várias vezes para perguntar qual o melhor caminho a seguir. Em 1973 as aldeias serranas do concelho de Arganil eram habitadas por muita gente e não foi difícil encontrar quem os ajudasse. Após longos quilómetros a viagem terminou finalmente após uma descida muito íngreme num caminho de  terra batida. Após aquela viagem atribulada a minha avó comentou "filha vamos embora, não te quero a trabalhar neste lugar".

Aquando da chegada daqueles 5 estranhos, os locais perceberam que era a professora que por tanto ansiavam e foram de imediato tocar o sino para avisar da boa nova. Perguntaram se a professora seria a tia Graça  dada a juventude da minha mãe.

A minha avó, a minha mãe e o meu tio instalaram-se na "casa do professor" e preparam-se para uma fase muito difícil, ainda em ditadura sem água, nem luz e longe de casa. Foi em Chãs de Égua que o meu tio Vasco e irmão da minha mãe aprendeu a ler.

Ao domingo a minha avó acordava muito cedo (ainda de noite) e levava um tronco quente da lareira e usava-o para lhe alumiar o caminho que fazia todas as semanas para assistir à missa no Piódão, a localidade mais próxima.

Avançando pouco mais de uma década, recordo-me através das fotografias da minha primeira casa em Andorinha, local onde os meus pais estavam a lecionar na altura. Revejo a casa através das fotos, ficava perto da escola primária.  Andorinha pertence à freguesia de Travanca de Lagos (Oliveira do Hospital). Travanca de Lagos foi o local onde eu em meados da década de oitenta  e o meu filho Duarte em 2017 se batizaram na igreja matriz que jaz naquela localidade. Revejo as memórias do batizado do Duarte com saudade. O Duarte nessa altura tinha pouco mais de sete meses e começava a descobrir o mundo e o seu olhar de explorador já latejava naquele tempo. Observou a igreja e toda aquela ambiência preparada minuciosamente por Isilda, pertencente ao grupo de jovens, que afinou as vozes e os acordes das guitarras numa linda cerimónia plena de harmonia. Para mim foi bonito pela primeira vez ver a minha família e a da Cecília juntas, foi pena a minha madrinha não ter vindo mas foi maravilhoso rever os meus primos e tios da Costa da Caparica que vejo tão ténues vezes.

Em meados da década de oitenta a minha mãe já tinha alguns anos de experiência mas o meu pai mais novo três anos e com um ingresso na carreira mais tardio ainda estava a dar os primeiros passos na profissão docente. Desses tempos recordo-me da vivacidade dos meus pais que dinamizavam inúmeras atividades num terreiro que ficava na parte de trás da escola primária de Andorinha. Recordo-me que na altura eles organizaram uma feira medieval com um grande impacto na comunidade escolar. Posso estar enganado mas senti que nesse tempo havia mais tempo para conhecer o espaço e as gentes, valorizavam mais o professor e os   encontros entre colegas tinham uma alegria muito diferente de hoje. 

Os meus pais são uns lutadores e pilares essenciais no meu crescimento e agora do Duarte. A minha mãe apresenta sempre  um sorriso no seu semblante não expressando por vezes a dor em consequência do trabalho que a minha avós lhe tem dado nos últimos anos. Admiro-a muito por isso. A minha avó, hoje com 86 anos, perdeu a sua autonomia e ganhou medos após uma queda que a obrigou a ser operada à bacia. A partir desse dia nunca mais foi a mesma, pois além da confiança perdeu a vivacidade e a vontade de habitar a sua casa, dar  o almoço todos os dias úteis da semana ao meu tio Vasco (meu  primo) e ao seu filho Diogo.

O  meu pai com o seu enorme jeito para brincar e ensinar crianças sempre deu ao neto um carinho imenso que através das inúmeras e sempre muito cúmplices brincadeiras que os tornaram inseparáveis. As saudades que o Duarte tem dos avós Pedro e Paulita evidenciam o enorme amor que eles têm por ele. O  imenso jeito que o meu pai tem para contar histórias  "hipnotizaram-no" desde muito cedo o Duarte que as ouve atentamente e transmitiram-lhe um imenso gosto pela leitura que eu tento dar continuidade. A minha mãe  com imenso jeito para a pintura que aprimorou durante a reforma transportou para o Duarte outros ensinamentos como a capacidade de concentração. Sem dúvida são duas pessoas que tornaram o Duarte uma pessoa cheia de sorte.

Espero sinceramente que muito em breve tudo volte à normalidade e possamos novamente conviver  abraçar e beijar sem medo. Muita saúde para todos.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2021

Recordações em confinamento. Autor: Antenor Santos

Nós, os homens, temos formas curiosas de dizer às pessoas que amamos. (Renato Nunes)

              A Catarina, a minha filha mais nova, agora com 46 anos, foi uma criança adorável. Sempre muito curiosa e esperta, nas brincadeiras infantis sabia lidar com acontecimentos menos favoráveis e sair airosamente de situações complicadas.

 Já passaram várias décadas desde as inúmeras viagens de férias que fazíamos juntos, por essa Europa fora. O nosso Mercedes amarelo tinha a dimensão ideal para cabermos todos, a Catarina, os seus três irmãos, a minha mulher e eu. O porta-bagagens, que tinha grande capacidade, era pequeno para caberem todos os pertences de seis viajantes: equipamento de cozinha, uma pequena tenda de montagem rápida e as malas, que, por ser verão, carregavam poucas roupas e muitos sonhos.

Depois de atravessarmos as grandes planícies de Espanha e as belas paisagens pirenaicas, penetrávamos em território francês, pernoitando em pequenos e funcionais parques de campismo municipais, quase desertos e sem qualquer pessoa a vigiá-los, onde, até com água quente, podíamos limpar os corpos e, no meio de tanta liberdade, purificar as almas.

Visitar Paris era o objetivo principal, que atingíamos com relativa facilidade. Subir à Torre Eiffel era para todos um grande desejo e uma tarefa bem simples, exceto para o Fabrício! Quando chegou a nossa vez de entrarmos no elevador de acesso ao monumento, o miúdo fez finca-pé e não queria entrar. Tinha medo, que vergonha, o único rapaz dos quatro irmãos, que foi obrigado a entrar, puxado pelo ascensorista e empurrado pelo resto do grupo, com a Suzana, a Mariana e a Catarina à cabeça!

Um pouco mais tarde, depois da visita ao Museu do Louvre, passeávamos nas ruas ao lado daquele monumento histórico, dedicado à arte, onde, para se circular, era necessário romper, já naqueles tempos, entre mares de gente. As instruções que tínhamos dado era que os miúdos se mantivessem unidos e a Catarina de mãos dadas connosco. Porém, depois de alguns minutos, demos conta que ela não estava connosco. Pensávamos que se tivesse juntado aos irmãos que vinham alguns passos atrás, mas ela não estava com eles. Que sufoco, a Catarina tinha-se perdido. Rompendo a multidão, voltámos para trás e fomos encontrá-la, parada, estática, exatamente no lugar onde, disse-nos ela depois, se tinha perdido do grupo. Com apenas seis ou sete anos, a nossa querida filha tinha acabado de nos dar uma lição, de como proceder em casos parecidos; não arredou pé, esperou, como é lógico, que nós voltássemos atrás para a procurar. Se ela se tivesse deslocado dali, para tentar encontrar-nos, teria sido muito difícil sairmos daquela situação a rir, no meio de muitos beijinhos e abraços de felicidade.

Sem percalços de maior, a viagem continuou para sudeste, cujo objetivo era agora ir para Itália. No percurso tivemos ainda a oportunidade de visitar a costa mediterrânica do sudeste francês e o Principado do Mónaco, com o seu famoso casino, onde não nos atrevemos a entrar, tanto pela feliz inaptidão ao jogo, como pelo aspeto andrajoso das nossas roupas de viagem, naquele fim de tarde de verão.

Mais tarde, depois de Florença e Pisa, já em Roma, não podíamos evitar a visita ao Vaticano. Tinha prometido aos meus filhos que iríamos ser recebidos pelo Papa! E eles tinham duvidado disso. Pensavam que era brincadeira, mas aguardava-os uma bela surpresa. À saída da Capela Sistina estendemo-nos pela esplendorosa Praça de São Pedro. Os miúdos, que viam terminar a visita, chamavam-me já “mentirosito”, por afinal irmos embora sem ver o Papa. Levei-os então para um canto da praça onde estava um expositor de postais turísticos, onde se destacava a figura de João Paulo II. Ali, reunidos em silêncio e simulando o ar mais sério possível declarei:

- Quem disse que eu sou mentiroso, quem se atreve? Ora aí está o Papa, eu não vos garanti que o íamos ver?! Numa explosão de insultos carinhosos lá partimos para o sul, onde nos aguardavam visitas a Nápoles, Capri e a Pompeios (que as pessoas insistem erradamente em denominar “Pompeia”.

O desejado regresso a casa, cansados de tão longa viagem, iniciou-se com um lanche. O açucareiro de esmalte, herança da minha avó, já mais antigo que somadas todas as nossas idades, ainda tinha açúcar deixado um mês antes. Dentro, para nosso espanto, estavam algumas minúsculas formigas já mortas. Enquanto eu retirava os restos dos gulosos insetos, de dentro do açucareiro, a Catarina, mostrando a sua habitual perspicácia, afirmou autoritariamente que as formigas tinham morrido porque eram diabéticas!  

A Catarina, atualmente é profissional de saúde e acaba de ser diagnosticada com covid 19. Esta situação é, para toda a nossa família, uma situação angustiante, mas todos acreditamos que ela consiga, tal como sempre o fez na vida, escapar airosamente das garras desta ameaça tão constrangedora.

Antenor Santos