sexta-feira, 31 de julho de 2020

CHEGA: direita radical ou extrema-direita?

Riccardo Marchi, investigador e professor universitário, publicou em Junho de 2020, um ensaio a respeito do CHEGA, no qual sustenta, entre outros aspectos, que o partido criado por André Ventura não pertence à extrema-direita, mas sim à “direita radical”, pois “a sua cultura política não tem nada a ver, do ponto de vista doutrinário, com os autoritarismos de direita dos anos 20 e 30 do século passado” (Riccardo Marchi, 2020, p. 194). Ainda segundo Riccardo Marchi, o CHEGA não é racista, embora ― como admitiu André Ventura ― o discurso do partido possa ser favorável à aproximação dos racistas.

            Na obra de Riccardo Marchi sustenta-se ainda que a acção de André Ventura é controlada pela moral cristã e que várias propostas do CHEGA, nomeadamente ao nível fiscal, padecem “ainda de clareza” (Riccardo Marchi, 2020, p. 156). Já na parte das conclusões do aludido ensaio que inspira este artigo, Ventura é descrito como um “político jovem, ambicioso, pragmático, empático, telegénico, com discurso contundente e capacidade oratória já treinada na polémica mediática”, cujo perfil e prática, até ao momento, não tem pretendido “promover o culto da personalidade” (Riccardo Marchi, 2020, ps. 198 e 199). No entanto, na entrevista que concedeu ao Diário de Notícias (25/6/2020), o politólogo sustentou que o partido em causa ainda não possui uma “coluna vertebral”, parecendo, por conseguinte, ignorar que esse facto deriva, sobretudo, da excessiva concentração de poderes no mediático André Ventura que, de resto, se confunde com o CHEGA. Um pouco à semelhança — acrescentado da minha responsabilidade — do que sucedeu com o Estado Novo de Salazar, que não se cansou de sustentar a sua suposta originalidade e no pós II Guerra Mundial, perante a derrota dos regimes fascistas e nazi, chegou mesmo a caracterizar-se como uma “democracia orgânica”.

            No que diz respeito à distinção apresentada entre “extrema-direita” e “direita radical”, segundo Riccardo Marchi “o primeiro tem carácter anti-sistema e objectivos subversivos de abate do regime vigente, através também de meios violentos”, enquanto o segundo respeita as regras do jogo (Riccardo Marchi, 2020, pp. 191-192). Uma distinção, de resto, presente no ideário do CHEGA: “Confunde-se muito radicalismo com extremismo” (Programa 2019). A este respeito, importa, porém, recuperar uma das pertinentes interrogações de André Freire, num artigo recentemente dado à estampa: o CHEGA pretende acabar com a III República, através de um referendo constitucional, “mas não será que tal proposta viola a ordem constitucional vigente, democraticamente instituída”? (Jornal de Letras, 15 a 28/7/2020).

            Na página oficial do CHEGA, é possível encontrar o Programa 2019, um extenso documento, cujos enunciados são muitas vezes ambíguos, vagos e até mesmo contraditórios (https://partidochega.pt/programa-politico-2019/). Em jeito de síntese, trata-se de um conjunto de princípios neo-liberais, que pretendem acabar com o “Estado Providência” e iniciar um processo de privatizações (inclusive no ensino, na saúde e no património), cujo desenlace inevitável seria colocar o destino nacional nas mãos do mercado (algo ainda mais estranho, se pensarmos que André Ventura se assume claramente como um nacionalista defensor da soberania nacional, uma matéria tão importante que, se colocada em causa, o levaria até mesmo a sustentar a saída de Portugal da União Europeia — neste domínio, será interessante mencionar que numa fase anterior o CHEGA assumiu-se mesmo como antieuropeísta). Veja-se ainda o que figura, no citado documento, no ponto quatro do tema Emprego: “Para que os fluxos aumentem é necessário facilitar as contratações e isto só é possível se os custos de «empregabilidade» – salários, restrições legais, horários de trabalho rígidos, difícil acesso a informação, contribuições para a segurança social e custos de despedimento – forem reduzidos”.

Face ao exposto, conclui-se facilmente que as actuais preocupações sociais do Estado passariam a pertencer às designadas funções “acessórias, subsidiárias e/ou supletivas”, tendendo, portanto, para a mera residualidade. A respeito das escolas, que poderiam ser compradas pelos professores (?!), o CHEGA defende o “fim da aplicação das ideologias de inclusão e ideologia de género no sistema nacional de educação, colocando-se termo à aplicação das orientações da ONU relativamente às chamadas «questões psicológicas de transtorno de identidade de género»”.

            Entre os princípios defendidos no aludido Programa, importará ainda destacar: o aumento das propinas universitárias para os cursos das ciências sociais e humanas, privilegiando, por oposição, as áreas científicas e técnicas (“as propinas a pagar por um curso de Sociologia terão de tender para o custo real do curso”); o alargamento do horário de trabalho dos profissionais de saúde das 35 horas para as 40 horas; a redução dos deputados, de 230 para 100; a defesa da tauromaquia, por oposição à eutanásia e ao aborto (que, neste último caso, apesar de pretenderem proibir, não querem criminalizar…) e a desvalorização do poder legislativo e executivo, em função do presidencialismo puro. Numa época em que o poder local dos cidadãos assume cada vez maior importância, o CHEGA preconiza, com inequívoca incoerência à mistura, a redução do número de freguesias, sustentando ainda que todos “os ministérios e serviços correspondentes” passem a concentrar-se “numa mesma área geográfica, de forma a permitir uma diminuição drástica dos seus custos operacionais, bem como das imensas horas perdidas, para a economia nacional, pelos cidadãos” (Programa 2019).  

Invocando a iminente perda da nossa identidade judaico-cristã, o CHEGA proclama o perigo da imigração ilegal (prevê, pois, a eliminação de quaisquer apoios aos imigrantes ilegais, que seriam deportados para os seus países de origem): “Qualquer imigrante que tenha entrado ilegalmente em Portugal estará incapacitado, para o resto da sua vida, para legalizar a sua situação e, portanto, a receber qualquer auxílio da Administração” (Programa 2019). Sustenta-se também a “abolição das autorizações de residência por razões humanitárias, redução do sistema de acolhimento de refugiados só para menores desacompanhados e pessoas qualificadas para protecção internacional” (Riccardo Marchi, 2020, p. 173). Enfim, coloca a tónica na distinção entre nós, herdeiros da matriz judaico-cristã, e os outros. Neste sentido, o islão é percepcionado como “uma ideologia político-religiosa, totalitária e imperial […] a principal e permanente ameaça à Civilização ocidental” (Riccardo Marchi, 2020, p. 182). Além disso, a comunidade cigana, os homossexuais e outras minorias são frequentes alvos de crítica pública por parte dos adeptos do CHEGA. A respeito dos homossexuais, o Programa 2019 defende o “fim da promoção, pelo Estado, de incentivos e medidas que institucionalizem os casamentos entre homossexuais e a adopção de crianças por «casais» homossexuais”, parecendo, no entanto, deixar em aberto a possibilidade das uniões de facto.

            O objectivo do CHEGA é fundar a IV República em Portugal e não apenas melhorar o sistema que existe, herdado da revolução de Abril de 1974. Por muito que os seus dirigentes defendam que ninguém seria prejudicado, por exemplo, com as privatizações levadas a cabo na educação (seriam atribuídos cheques-ensino, até mesmo na Universidade), é evidente que, nesses tão ansiados novos moldes neo-liberais, a economia de mercado aumentaria ainda mais as desigualdades sociais. 

            Disse André Ventura: “Chamam-nos fascistas, mas é por não terem noção do que é o fascismo. Só pode ser. Porque o fascismo é o oposto do liberalismo” (Riccardo Marchi, 2020, p. 83). Nas suas habituais arremetidas mediáticas, Ventura procura criar mundos antagónicos e irreais, a preto e branco, esquecendo-se, no entanto, que o fascismo, enquanto realidade histórica, da primeira metade do século XX, bem mais complexa do que as suas palavras dão a entender, socorreu-se do grande capital. Como escreveu Umberto Eco: “O fascismo não era uma ideologia monolítica, mas uma colagem de diversas ideias políticas e filosóficas, uma amálgama de contradições” (Umberto Eco, 2017, p. 17). Além disso, não deixa de ser interessante constatar que, no que diz respeito à política orçamental, o CHEGA pretende dar prioridade absoluta “às necessidades dos ministérios que consubstanciam as Funções Soberanas do Estado, ou seja, Ministérios da Justiça, Administração Interna, Defesa e Negócios Estrangeiros” (Programa 2019). Matérias, afinal, determinantes para um maior controlo da sociedade, ou não fosse a garantia da ordem (naquele que ainda é, contudo, um dos países mais seguros do mundo) uma das bandeiras de marca de André Ventura.

            Se, por um lado, o ideário do CHEGA parece reivindicar uma certa “objectividade” no ensino da História: “O ensino e a promoção, sem interferências revisionistas e ideologias que a adulterem, da História de Portugal, alicerçadas nos Factos objectivos que a marcaram”; por outro lado, defende um: “Sistema Educativo acessível a todos, vocacionado para a consolidação dos valores culturais e civilizacionais judaico-cristãos, sem interferência de correntes que se filiam na chamada «ideologia do género» e no dito «marxismo cultural»” (Programa 2019). Ainda no âmbito da História, tal como Riccardo Marchi recordou, o CHEGA “contesta o enviesamento ideológico presente, por exemplo, na estigmatização da secular expansão ultramarina e na visão unilateral do 25 de Abril” (Riccardo Marchi, 2020, p. 95). Temos, pois, o ensino “objectivo” da História, mas com base na matriz da identidade portuguesa imaginada e oficializada pelo CHEGA, que, como já tivemos oportunidade de verificar, pretende eliminar a escola pública — aquela que, com todos os defeitos, ainda permanece como uma das grandes conquistas da revolução de Abril. Eis, por conseguinte, um amontoado de incoerências, contradições e ambiguidades, que permitem todo o tipo de leituras e perniciosos desenvolvimentos futuros.

            É altura de dizer que, de acordo com a minha interpretação, o CHEGA é um partido de extrema-direita. Aliás, Ventura “reconhece publicamente a sua proximidade ao Vox espanhol e à Lega italiana” (Riccardo Marchi, 2020, p. 149). No pretérito dia 2 de Julho, vários órgãos da imprensa, entre os quais O Observador, noticiaram que: “O Chega aceitou o convite para aderir ao grupo europeu Identidade e Democracia (ID), que integra partidos de extrema-direita”. O Observador transcreveu mesmo as reacções de Ventura: “Nós tínhamos já feito alguns contactos europeus. Tivemos primeiro uma maior aproximação ao grupo onde está o Vox, mas o desenvolvimento dos contactos internacionais aproximou-nos mais, quer do partido de Matteo Salvini, quer da Frente Nacional francesa”.

Entre as referências políticas de Ventura encontram-se Beppe Grillo e o Movimento 5 Estrelas, bem como Donald Trump (Riccardo Marchi, 2020, p. 147). Importa, pois, reconhecer que, contrariando a tese de Riccardo Marchi, a “Nova Direita Radical” não é mais do que a velha extrema-direita, travestida de algumas supostas alterações, mas que continua a alimentar-se do medo reinante nos povos, o qual, por sua vez, fomenta o ódio entre as pessoas. São, afinal, evidentes as contradições e ambiguidade que atravessam o ideário do CHEGA e que se espelham nas práticas do próprio líder: acérrimo defensor da exclusividade de funções dos deputados, André Ventura apenas passou, de acordo com a biografia constante na página do Parlamento, a cumpri-la muito recentemente, pois até ao dia 30 de Junho de 2020 exerceu funções de consultor na Finpartner, SA   (https://www.parlamento.pt/DeputadoGP/Paginas/Biografia.aspx?BID=6535). Isto para já não falar, claro, das contradições, que o próprio reconheceu, entre as ideias sustentadas na sua tese de doutoramento e as ideias políticas actualmente defendidas pelo mesmo, bem como o apoio da Igreja Maná à sua causa. Mas, como é evidente, os apoiantes do CHEGA poderão sempre dizer que isso são pormenores e que o programa do partido (dotado de uma ideologia supostamente flexível) irá ser clarificado, pois está a ser interpretado de modo erróneo. Certo é que, enquanto se levanta a dúvida e também graças às circunstâncias dramáticas que se avizinham (com o desemprego a atingir números assustadores) e também, importa sublinhá-lo, devido a estudos pouco rigorosos como o do historiador-politólogo Riccardo Marchi, continuarão a chegar novos filiados ao CHEGA; e as Presidenciais e as Autárquicas serão já em 2021... Como André Freire teve oportunidade de escrever, em muitos casos, o estudo de Marchi “destaca-se pouco da forma como o partido se apresenta a si próprio na arena política, ou problematiza pouco ou nada determinadas contradições insanáveis nas suas propostas” (Jornal de Letras, 15 a 28/7/2020). Além disso, continuando a seguir as palavras de André Freire, a obra de Marchi, apesar de ser importante para compreender, por exemplo, a evolução do partido de André Ventura, foi elaborada fundamentalmente a partir de um conjunto de entrevistas a dirigentes do CHEGA e no “escrutínio de documentos do partido e de peças jornalísticas”, sendo de realçar a ausência de “bibliografia académica” indispensável, de resto, para um estudo historiográfico.  

            As previsões demográficas mais recentes calculam que Portugal continuará a perder população a um ritmo assustador: “há 23 nações, incluindo Portugal e Espanha, que devem ter metade da população em 2100” (RTP, 15/7/2020). Nesse sentido, como escreveu Milton Blay: “A história do mundo é uma história das migrações e querer fechar fronteiras é uma tentativa de contrariar a natureza humana, sobretudo em uma época em que a Europa envelhece e vive em deficit demográfico crónico, precisando do aporte de estrangeiros” (Milton Blay, 2019, s/p). Num país fortemente marcado pela emigração como é Portugal (que ainda permanece como um dos mais seguros do mundo), não deixa de ser curioso verificar até que ponto o discurso propagandístico de Ventura tem vindo a colher votos, a ponto de as sondagens já colocarem o CHEGA como a terceira força partidária nacional. Algo que a crise económico-financeira e social dinamitada pela pandemia tenderá ainda a fazer aumentar nos próximos anos, um pouco à semelhança do que ocorreu no século passado com a Grande Depressão. Isto para já não falar nos inúmeros exemplos de ineficácia da justiça perante a corrupção...

Numa época em que a União Europeia corre o risco de desmoronar-se, em que os Estados Unidos deixaram de ser reconhecidos como o farol do mundo e que espreita a provável segunda vaga da COVID-19, tudo pode acontecer (aliás, o líder do PSD, Rui Rio, até já admitiu a possibilidade de futuras “conversações com o Chega”, apesar de reconhecer tratar-se de “um partido marcadamente de direita, em muitos casos de extrema-direita”: Público, 30/7/2020). As palavras do historiador Yuval Noah Harari parecem-me cada vez mais significativas: a estupidez humana não pode ser subestimada…

            Como escreveu Umberto Eco, seria “tão confortável para nós se alguém assomasse à cena do mundo e dissesse: «Quero reabrir Auschwitz, quero que as camisas negras tornem a desfilar em parada pelas praças italianas!» Mas, ai, a vida não é assim tão fácil. O Ur-Fascismo ainda pode voltar sob as vestes mais inocentes. O nosso dever é desmascará-lo e apontar a dedo cada uma das suas novas formas — diariamente, em todo o mundo” (Umberto Eco, 2017, p. 29).

Os muros da extrema-direita entre nós e os outros, por muito tentadores que se apresentem nas redes sociais, serão novamente pagos com o sangue de milhões de seres humanos…

 

Referências bibliográficas: Milton Blay ― A Europa Hipnotizada. A escalada da extrema-direita, São Paulo, editora Contexto, 2019; Riccardo Marchi A Nova Direita Anti-Sistema. O caso do CHEGA, 1.ª edição, Lisboa, Edições 70, 2020; Umberto Eco — Como reconhecer o Fascismo. Da diferença entre migrações e emigrações, Lisboa, Relógio D’Água, 2017.

Renato Nunes (renato80rd8918@gmail.com)