quinta-feira, 26 de setembro de 2019

"Pobre interior" -Artigo de Opinião Jornal Expresso

Em Portugal, a distribuição geográfica da atividade económica, social e cultural entre o litoral e o interior é, como todos sabemos, demasiadamente assimétrica e, consequentemente, o mesmo acontece com a distribuição da população. O litoral é jovem, urbano, povoado, dinâmico e ativo. Pelo contrário, o interior é envelhecido, rural, desertificado, estagnado, deprimido e associado a uma milenar vida de miséria.
Porque as pessoas vão para onde há “economia”, a emigração para os centros urbanos do litoral tem sido a tendência histórica. A escassez de população nas zonas de fronteira com Espanha começou com a conflitualidade histórica entre os Reinos de Portugal e de Castela-Leão: sem população, infraestruturas e oportunidades de emprego gerou-se uma barreira entre Reinos. Posteriormente, a orientação marítima imposta pelos descobrimentos acentuou o atraso do interior. Desde os anos 30 do século passado, mas sobretudo no pós-II Guerra Mundial, com a globalização e o aumento da concorrência, aumentou a pressão competitiva sobre as empresas pelo que, sem ajuda pública, passaram a concentrar-se no litoral. A tendência agravou-se com a adesão à EFTA nos anos 60 e a adesão à CEE/UE nos anos 80 do século passado. O reforço da atraso do interior foi sempre potenciado pelo poder político com maior investimento público em infraestruturas, serviços e criação de emprego no litoral, onde há eleitores.
Em suma, as migrações que têm assolado o interior à procura de melhores condições de empregabilidade no litoral (e no estrangeiro) conduziram ao progressivo esvaziamento demográfico e empresarial. Apesar de todos os constrangimentos que historicamente se têm imposto ao interior, representa – e representará – cerca de 70% do território nacional e, atualmente, já menos de 30% da população.
Como a generalidade dos governos anteriores, porque fica sempre bem dizer que há que apostar no “pobre” interior, também o atual manifestou “desejo” de contribuir para a diminuição do atraso. Como de todas as outras vezes, também na presente legislatura tal não passou de um “desejo”. O mais admirável é que o processo continua a repetir-se e os políticos continuam a apostar na memória curta dos eleitores, continuando a ficar bem – e, provavelmente, a “render” votos – manifestar “desejo” de apoiar o “desgraçado” interior. Assim, em pré-campanha, o primeiro-ministro deu-se ao luxo de “perder” uma semana em viajem mais ou menos turística pelo interior para, com a afetuosa comunicação social por perto, dar conta do novo futuro “desejo”. Curiosamente, com a mesma intensidade que se diz apostar no interior, vão-se encerrando serviços (veja-se o encerramento de diversos balcões da CGD ou de estações dos CTT), pelo que as populações esquecidas do interior terão de satisfazer as suas necessidades em centros urbanos mais pró litoral.
É verdade que o avanço nas tecnologias de informação – televisão, internet e telemóveis – pode atenuar o isolamento de algumas pessoas esquecidas do interior, mas não favorece a fixação no interior e, portanto, não promove a inclusão e a coesão social e territorial. Também as melhorias nas vias de comunicação – estradas e autoestradas – podem atenuar o isolamento, mas não promoveram o desenvolvimento e a coesão, acabando sobretudo por permitir maior mobilidade entre regiões. Em particular, muita gente, como eu, que saiu para o litoral pode agora, mais facilmente, passar fins de semana ou férias na terra natal do interior.
O que se espera dos governos é que sejam capazes de corrigir as falhas de mercado, pelo que devem intervir no sentido de promover / reestruturar a atividade económica no interior. Se assim não for, como não tem sido, entra-se, como tem acontecido, num círculo vicioso. A “economia” foi deixando de ser suficiente para melhorar as condições de vida, passando a faltar empregos e equipamentos básicos. À medida que a população do interior foi diminuindo, menos “economia” foi sendo precisa e muitas empresas foram fechando: o círculo vicioso da pobreza e da desertificação foi-se autoalimentando “a olhos vistos”.
Face ao litoral, permanece uma enorme desigualdade de oportunidades. Desde logo pela inferior qualidade dos serviços fornecidos pelo Estado nas áreas da cultura, educação, justiça e saúde. Permite-se que a elite dirigente e técnica de um sem número de organismos com funções de regulação, controlo e fiscalização, cuja atividade produtiva se concentra no interior, desempenhe as suas funções no litoral. Refira-se a título de exemplo o Instituto da Vinha e do Vinho, o Instituto dos Vinhos do Porto e Douro, a Administração e todos os serviços da EDP, Iberdrola e outras.
Consideram as barragens como “investimentos de desenvolvimento local” (embora para alguns até já sejam um problema porque, pasme-se, contribuem, por evaporação, para a perda de água!), mas apenas criam o posto de trabalho do vigilante durante a sua fase de exploração, pois o “real” emprego concentra-se no litoral. Aliás, o que o Estado tem feito com estes empreendimentos é nacionalizar, ao abrigo do interesse nacional, os meios de produção de milhares de anónimos que tinham aí a sua independência económica e simultaneamente garantida a liberdade, para depois concessionar a uma entidade privada a sua exploração, cujos detentores de capital jamais contribuíram para a melhoria da massa crítica social destes lugares. O mesmo vai obviamente passar-se com a exploração de lítio que não passará de mais um recurso sugado do interior.
Resumindo, o investimento que o Estado tem promovido no interior, em vez de criar efeito de replicação/imitação, concentra ainda mais o emprego e a riqueza no litoral, alargando o fosso entre as regiões. Há apenas investimentos pontuais, intempestivos, sem qualquer possibilidade de adensamento do tecido económico e social. Investe no turismo, mas corta serviços de saúde. Investe na educação, mas cria organismos com capacidade de absorção de recursos humanos de elevada formação no litoral. Despeja milhões no combate aos incêndios rurais, mas os beneficiários estão no litoral. Não existe, de facto, uma política integrada de aumento de competitividade do território do interior, para que os recursos dos residentes lhes permita aceder aos bens e serviços que a sociedade fornece. Resta a migração que tem sido e continua a ser a sina de transmontanos, beirões, alentejanos e de parte de minhotos.
Desejando agora promover a coesão e o desenvolvimento social e territorial, se não houvesse hipocrisia, o governo concederia de imediato incentivos generosos, compensando os custos da interioridade. O montante adequado seria certamente menor que o despendido com a recente ajuda à banca! Seguindo a máxima “não dê o peixe, ensine a pescar”, a forma de distribuição desses incentivos requer a formulação de estratégias que tornem o interior competitivo, o que significa que é necessário saber identificar as vantagens competitivas que devem ser preservadas. Com ajuda pública, o interior, desde logo pela mão de autarcas competentes, deve aproveitar capacidades instaladas e características que o diferenciam, potenciando-as e traçando uma estratégia que fortaleça o aproveitamento económico das oportunidades. O interior tem recursos mais ou menos abundantes que devem ser valorizados e aproveitados a seu favor – e nunca sugados –, desde o património cultural (monumental e imaterial) aos espaços naturais, desde produtos agrícolas singulares aos recursos do subsolo. Em algumas indústrias tem até tradição. É assim que se deve pensar o desenvolvimento.
O interior deve finalmente beneficiar do princípio da solidariedade interterritorial, como Portugal na totalidade (e o litoral, em particular) tem beneficiado dos países mais ricos da União Europeia. Isso faz-se, por exemplo, invertendo a lógica de desqualificação dos serviços e infra-estruturas existentes. Faz-se também por via do reforço de serviços e da atratividade de alguns centros urbanos do interior, estrategicamente posicionados. Faz-se, ainda, olhando para os recursos e capacidades endógenas e pensando o respetivo desenvolvimento a partir do aproveitamento desses recursos e dessas competências.
Portugal será forte se tiver também um interior forte!
Artigo de opinião Jornal Expresso de 26 de Setembro de 2019
Óscar Afonso Presidente do Observatório de Economia e Gestão de Fraude e docente na FEP

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