sábado, 8 de fevereiro de 2020

Pedra após Pedra - A Palavra Diário I (2012-13)- Fernando Alva (II-A Família)

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Não é fácil  viver neste mundo, onde temos que lidar com pessoas tão diferentes. Quantas vezes já  ficamos perplexos com aquilo que vimos e ouvimos de alguém. Fernando Alva relata uma história por si vivida no aeroporto da ilha Terceira  nos Açores que retrata a leviandade com que certas pessoas lidam com a vida e com assuntos tão perigosos como o mundo do crime. Cito (p.17) “Abeirou-se de mim, pediu-me informação a respeito da porta de embarque e ,sem mais nem menos confessou-me que era recluso num sistema prisional do continente. Aproveitando a precária, veio passar a semana anterior ao natal junto da família: a mulher e uma menina de três anos.
Logo de rajada como se percebesse o espanto que escorria da minha face, segredou-me que durante anos fora correio de droga. Há dois anos porém, as coisas correram mal e quase matara dois homens. -foi apenas uma questão de sorte as balas não terem acertado nos alvos. -assegurou-me. E eu lá fui balbuciando o que pude. Aliás perante aquela confissão, o que poderia eu dizer que fosse significativo”

No seguimento desta história relatada no primeiro parágrafo vou contar uma história que se passou comigo numa das muitas escolas por onde eu já passei. Eu estava na sala do castigo onde iam os alunos que eram expulsos da sala. Certo dia entra-me na sala  um aluno de forma esbaforida e vociferou algo que eu já não me recordo ao certo o que foi. Mandei-o sentar e acalmar-se e ele disse-me com uma naturalidade que se fosse preciso metia os carros sobre quatro tijolos e nem pensem em meter-se comigo que eu o desfaço-o sem piedade. Fiquei perplexo com a facilidade com que aquela criança de 15 anos falava com aquela revolta sobre a vida e desrespeito com o outro. A forma que eu encontrei para dar a volta à situação foi tocar-lhe na ferida e falar-lhe na família e o que esta achava de ele pensar daquela maneira. O aluno respondeu-me que não queria saber do pai e que apenas tinha algum respeito à mãe  Perguntei-lhe  se ele queria continuar a seguir o caminho da violência em detrimento de poder ter uma profissão e uma vida digna. Aos poucos falei-lhe dos irmãos mais novos que o deveriam ter como referência positiva e não negativa e aos poucos foi retirando a máscara e senti as lágrimas caírem-lhe do rosto. Ser professor de uma criança desta não é fácil, felizmente só tive que conviver com ele na sala do castigo.

Voltando ao livro e a Fernando Alva. Várias vezes no seu livro ele faz referência à importância da família, para si no seu crescimento enquanto ser humano e a sua importância para superar os diversos obstáculos que a vida lhe coloca. Ir a casa no período de férias é uma terapia que Fernando Alva não dispensava.. Após um período de férias Natalícias escreve um excerto um muito interessante. Cito (p 18) “De regresso à ilha Terceira, com os pés ainda presos às raízes nativas. O que trago de mais significativo? Os diálogos com os meus pais, à  volta da mesa, junto à magia da salamandra, num dos recantos da sala onde esteve um dia amortalhada a minha avó materna. (…) O diálogo com uma senhora de 85 anos, na Bobadela em Oliveira do Hospital. Mas…. acima de tudo, o regresso da família, o sorriso escondido dos meus pais e a tranquilidade da minha terra de sempre que trago camuflada nas profundezas da minha alma (…).
Num excerto mais à frente o autor aborda a chegada à ilha após as férias da Páscoa, onde este se refere mais a importância do período da pausa escolar.
Cito (p. 38) “ Primeiro dia de aulas do terceiro período. Regresso à selva, depois de quase duas semanas na segurança que só a casa materna me pode dar. Existem determinados ambientes onde nos tornamos imunes a quase tudo, até mesmo à vontade de trabalhar! Que santuário….”
Cito (p. 37)
Pirâmide invertida
O chão em que nascemos
Dita onde chegamos.
Poucos são
Os que escapam
À terrível condição
Onde se enraízam.
Afinal, quase tudo se resume
A laços”

Conhecermo-nos a nós próprios é fundamental para crescemos de forma segura. A família deve ser o elo de ligação ao passado e a nossa segurança para nos desenvolvermos enquanto cidadãos no futuro.

Cito (p.39)
“Cicatrizes
As memórias que herdamos,
Onde também nos agarramos
(Quem disse que o mar não tem cabelos?).
Que o os pais deixam os filhos.
Memórias, imagens que vagueiam
Na fossa mais profunda
E iluminam,
Em cada esquina da vida.

Mal sabemos
O que escondemos
Para lá da gestação
De multidão
Onde nos escondemos
E procuramos.
Ah, tanto devemos
E mal-agradecemos…
Quanto perdemos as estrelas
Todas as luzes se apagam.
Depois, apenas permanecem memórias
Cada vez mais fragmentárias."

Cito p. 66
"Apagadores
Sempre que tentamos silenciar
O passado
Acabamos por silenciar
O futuro do nosso lado"

Ter uma família e um passado seguro é algo que infelizmente muitas crianças e adultos não têm, daí há uma pequena explicação para muitos dos seus atos.
Como já indiquei na primeira parte do meu texto informativo sobre esta obra, Fernando Alva é professor de Educação Especial e fala disso de uma forma positiva salientando a importância para a sua formação enquanto pessoa.Cito p. 44" Saltitar de disciplina em disciplina, de matéria em matéria em matéria, a procurar apoiar alunos com graves dificuldades de aprendizagem nos mais variados domínios tem-me ajudado bastante a identificar as principais causas que motivam as elevadas taxas de insucesso académico das nossas crianças e jovens. Todos os candidatos a políticos deveriam ter a humildade de passar pelas salas de aula, antes de abrirem a boca para dizer o que quer que fosse a respeito da educação.Aí sim compreenderiam melhor o extraordinário e ingrato trabalho desenvolvido pela maioria dos professores portugueses."

A família é de facto algo essencial para uma criança crescer saudável quer física e mentalmente. Vou redigir um poema escrito por Fernando Alva onde ele refere um menino que infelizmente não teve a sorte de ter um seio familiar.

Cito p. 26
"Aparências
Menino de  unhas sujas
Sem ninho
De carinho onde possas adormecer
Depois de ler
O brilho de imaginar
O sabor do lar.
Olha-me por dentro
Neste último encontro
E liberta o sorriso
Gostoso
Que um dia nasceu
Quando o meu vazio
De silêncio
Te conheceu.
O resto já não interessa,
Mas ele permanecerá.
Até sempre, meu menino"

Para concluir esta exposição sobre a família vou narrar uma história descrita pelo autor onde este expressa o contacto e o diálogo que manteve com crianças na ilha Terceira.
Cito p. 78 e 79 "Um dos meninos que o destino parece amaldiçoado segredou-me que gostava de ir à Igreja , depois da escola. Perguntei-lhe se rezava. Respondeu-me que não, que nem sequer pensava. E eu voltei à carga:
- Então...e depois?
- Depois sinto uma mão na cabeça.
Vim para casa a pensar que um menino de 11 anos nunca deveria conhecer o sabor do abandono .

Outro jovem, com cerca de 13 anos, ouviu-me declamar, com inenarrável  entusiasmo, O menino de sua mãe, de Fernando Pessoa. Depois fomos explorando estrofe a estrofe, num crescendo dramático de dúvidas e inquietação. Quase no fim perguntou-me:
- A mãe queria que o menino voltasse?
- Pois queria.
Avançamos na leitura e na última estrofe:
- Mas o menino já era grande?
- Para as mães, os filhos são sempre pequeninos- silêncio
- Mas o menino nunca voltou, pois não?
- Pois não.
E eu vi, vi uma lágrima cair-lhe lentamente do rosto. Os relatórios dizem tratar-se de um menino com Perturbação do Expectro do Autismo. E sinceramente, neste momento, isto pouco ou nada interessa.

Poesia, que poderosa chave para abrir corações. Até mesmo daqueles de quem tantas vezes estupidamente se diz que não têm emoções e são frios como pedras."

E com esta história termino o tema família ou a falta dela, tão bem narrado neste livro.


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