segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Que tempos tão estranhos!

“Dos vivos herdam-se palavras. Dos mortos, coisas”. Ora, foram as palavras que o meu Amigo me confidenciou, antes que a vida nos apartasse para ilhas diferentes, que agora me forçam a este reencontro com o papel. O meu Amigo, lembrar-se-á, disse-me: “A morte de um progenitor tira-nos a terra debaixo dos pés. Voam as referências. E sentimo-nos terrivelmente sós, como nunca tínhamos ficado. Mas à medida que o tempo passa, há uma presença que nos acompanha, só que de outro modo, numa outra dimensão. Efectivamente, dentro do caixão já não segue ninguém que tenhamos conhecido. Ainda assim, depois dele passar nunca mais somos os mesmos”.
            Na altura, quando ouvi aquela confissão – ainda por cima vinda de alguém que já viveu mais de meio século e cuidou dos pais precisamente até aos últimos suspiros – a emoção tolheu-me de tal modo a garganta que mal consegui responder. E foi ridículo, precisamente ridículo o que lhe disse. Na altura, o meu Amigo, seguindo a velha máxima de Santo Agostinho (Profligar os erros, amando os Homens), limitou-se a sorrir. Era um sorriso de quem se revia no espelho do tempo.
            Foi na última semana, a meio de um exame médico um pouco mais complicado, que dei por mim a caminhar ao lado daquelas palavras, que agora recuperei: “Nunca mais somos os mesmos”. De facto, como a vida nos obriga a relativizar o sofrimento, quando pensamos no momento em que o mito da nossa fundação se esvai por entre os nossos próprios dedos, sem que nada possamos fazer. Por isso, hoje, que mais não fosse, precisava dizer-lhe que, mesmo que seja uma construção da mente, só por si essa mesma sensação de companhia (que me garantiu sentir) é positiva. Que mais não seja, é uma ilusão que nos alimenta e protege. Afinal, no sofrimento atroz é que percebemos onde nos agarramos.
            O meu Amigo, concordará, vivemos tempos estranhos. Impera o paradigma dos iluminados. Pensa-se em criar cérebros e vai daí arquitecta-se um choque tecnológico, que traz estádios, escolas (que mais parecem arranha-céus saídos de Hollywood) apetrechadas de poderosos quadros interactivos e demais tecnologia que nos empresta uns ares de progresso. Depois, quanto a livros, poucos se vêem. Quanto a conteúdo é melhor nem falar. De resto, os professores ficam caros e contratam-se cada vez menos. A massa crítica não se cultiva, mas a aparência fica garantida. Aliás, não é ela que tanto nos interessou ao longo dos tempos? Poupa-se em farelos, mas desperdiça-se a farinha. As prioridades sempre nos atrapalharam…
            Impera em Portugal o paradigma dos iluminados. Afinal, quase todos são licenciados e vêem coisas que o mais reles dos mortais não pode sequer imaginar. Muitos deles obtiveram os graus pelas Relvas desse país fora; sempre à distância, com a garantia das equivalências que só a experiência da politiquice garante. Quanto aos outros, obcecados em pagar as contas – é a creche dos putos, é o raio da água e da luz, é o empréstimo da casa ou do carro… – esses reles mortais nem imaginam o duro caminho de quem se tornou Doutor graças à subida na pirâmide, sempre de cabeça reverencialmente curvada.
            O meu Amigo, bem sabe, impera em Portugal o paradigma dos iluminados. Nas Escolas desenvolvem-se competências já quase sem falar em conteúdos. Os professores, que cada vez mais têm formação em tudo menos na área que leccionam, são avaliados, numa época em que poucos alunos são verdadeiramente filtrados. Para os gaiatos que não querem trabalhar, criam-se alternativas, que de alternativa têm efectivamente muito pouco. Até lhe chamam cursos profissionais, mas, em traços gerais, as disciplinas são as mesmas, apenas com nomes diferentes. E quanto a oficinas devidamente apetrechadas ou laboratórios; bom, falar nisso… só se for para desenvolver a competência da imaginação. E eu, desculpem-me, estou farto de tanta (in)competência.
            Impera em Portugal o paradigma dos iluminados. A distância entre quem governa e quem é governado é cada vez maior. E o diálogo parece impossível. De um lado, o pragmatismo cínico dos gabinetes, do outro, a realidade. E até a língua materna, com tanto acordo e tanta meta, se enrola na boca cada vez mais indecisa. E falar e escrever é cada vez mais uma tarefa de doutores das competências; novos rostos “científicos” do esoterismo. Afinal, de tão complicados, raramente são questionados e não raro até são premiados. É transversal a todos os domínios do que somos, como a corrupção, embora insistamos em travesti-la de uma certa forma, perversa, hipócrita, de legalidade (vejam-se, a propósito, os concursos públicos que para aí grassam…).
            Impera em Portugal o paradigma dos iluminados. Vivemos adiados. Os empréstimos são a cortisona que nos mantém de pé. Mas não há injecção que nos valha por muito tempo. E o problema é que ainda há filhos e netos deste país, que legitimamente sonham com um futuro. Que merecem um futuro, pelo menos como aquele que herdámos. E o problema, raio, é ver que este país não tem futuro. O problema, raio, é que parecemos um cemitério, com os muros a crescer para cima de nós a cada dia que passa.
            Impera em Portugal o paradigma dos iluminados. Eles dizem: – Faça-se luz! E a luz faz-se, dentro das limusinas onde são transportados; enquanto os faróis iluminam o país cada vez mais desocupado, já adormecido nas trevas da fome.
            Impera em Portugal o paradigma dos iluminados. Só mesmo uma mente superior para acreditar (ah, fé) que o crescimento se obtém baixando os salários dos trabalhadores, pois (ah, almas estrondosas) os preços dos produtos irão descer e será mais fácil comprá-los. Os mesmos produtos que nós, sublinhe-se, não produzimos mas importamos! Rousseau acreditava na bondade natural do Homem. Nós passámos a acreditar na bondade, filantropia natural, do mercado ou dos países que nos abastecem!
            Impera em Portugal o paradigma dos iluminados. Mas será que nenhum deles se ilumina e percebe que, neste momento, arriscamos a autodestruição? Será que ninguém que nos governa percebe que um país, à semelhança de cada Homem, também tem mitos fundadores; e que quando os perdemos nunca mais somos os mesmos? Quando será que eles percebem que o país, mais do que nunca, precisa de exemplos concretos de ética, verticalidade, transparência e trabalho?
            Nestes tempos estranhos, talvez seja chegado o momento de, enquanto cidadãos, nas mais variadas áreas da vida, deixarmos de “comer” tanto com os olhos e passarmos antes a valorizar mais o conteúdo. Não dará tanto nas vistas, é certo, mas os resultados, a médio e longo prazo, serão bem diferentes.
            Neste país, onde a força das ideias, despidas da sua dramaticidade/barroquismo, é praticamente nula, tal como a memória colectiva; em que quase todos falam, mas poucos ouvem e escasseiam as pontes entre aqueles que já se encaminham para o fim da vida e aqueles que agora estão a aprender a voar, talvez seja chegada a hora de perguntar: não estará já esgotado este modelo de recrutamento caciquista que persiste em perpetuar-se entre aqueles que almejam governar-nos? Não nos faria falta uma Escola de Ciências Políticas, por onde todos os nossos governantes deveriam obrigatoriamente passar, antes de se submeterem ao escrutínio popular? Não será altura de acabar com as mordomias de tantas fundações, de tantos políticos (“Passos Coelho com 31 veículos do Estado ao seu serviço”, Público, 16 de Setembro)? Será que, como imaginou Saramago na sua obra Ensaio sobre a lucidez (2004), não é chegado o momento dos cidadãos utilizarem o poder do voto em branco, enquanto arma decisiva da Democracia? Será que a própria lógica interna que preside ao funcionamento do Parlamento não poderia ser aperfeiçoada? Não estará na altura de todos conhecermos os programas dos partidos políticos que sonham alcançar a governação, para que depois possamos exigir o seu efectivo cumprimento? Será que não é chegada a altura de acabar com esses cursos do Ensino Básico e Secundário alicerçados nas competências e cultivar as disciplinas estruturais? Estude-se História, Filosofia, trabalhem-se obras, escreva-se, reflicta-se, partilhem-se ideias… e a cidadania aparecerá por acréscimo, de um modo muito mais eficaz…
            A Democracia não é, nunca poderá ser, um modelo acabado. Nestes tempos tão estranhos e tão difíceis, em que parecemos todos confundidos, ludibriados com tanto folclore, valerá a pena recordar que corremos seriamente o risco de, enquanto civilização, perder irremediavelmente os nossos mitos fundadores. O que somos, nomeadamente a liberdade que ainda vamos experimentando, apesar de tudo, radica na Democracia. O seu aperfeiçoamento, nunca será de mais referi-lo, também depende de cada um de nós.
Renato Nunes    

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