Esta noite, as luzes apagaram-se mais cedo e a aldeia encerrou-se precocemente na escuridão. Deambulas pelas ruas sem destino marcado e vais sentindo as gargalhadas que atravessam as paredes das casas, enquanto imaginas o que estará para além do que nunca te deixaram ver ou sentir.
Ano após ano, desde que te lembras existir, aquela era sem dúvida a noite mais triste da tua vida. Talvez por isso, nunca deixavas de caminhar, como se tivesses um lugar a alcançar e existisse mesmo alguém à tua espera, ao fundo de cada esquina que vias aparecer à distância da imaginação.
Hoje, à medida que a noite avança, os teus passos ecoam na calçada e isso é o mais próximo do que podes saber sobre a porta de uma casa. Agora que te lembras, já lá vão muitos anos desde a tua chegada à rua. Verdadeiramente, foi ali que nasceste e também ali cresceste. Tudo o que conheces tem o sabor daquelas pedras.
No vazio da escuridão, continuas a avançar, até que, subitamente, do outro lado da rua há uma luz que se acende. Tens pressa em esconder-te, mas as pernas tremem-te e quanto mais tentas correr, mais o teu corpo balança descoordenadamente de um lado para o outro. Nunca confiaste em ninguém e nunca ninguém confiou em ti e, por isso, a tua vida é a solidão.
Pouco depois, quando a luz se apaga, regressas ao trilho desejado. Na próxima esquina, lembras-te, quando derem as onze badaladas, haverá muita comida no lixo, trazida pelos homens da casa amarela. E dás por ti a caminhar mais rapidamente, desejoso de forrar os sentidos com alguma segurança.
Não tarda para que percebas que tudo será como nos anos anteriores. Estranhamente ou talvez não, dás por ti a pensar como é curiosa esta época, em que os homens repetem, ano após ano, um conjunto de rituais, como se temessem a mudança e as partidas que o futuro, inevitavelmente, anuncia. Talvez por isso, logo a seguir, exactamente às onze badaladas em ponto, a casa amarela abrirá as suas portas e os caixotes com os produtos enjeitados estarão à tua espera. Agora mesmo, a primeira refeição do dia reclama a tua presença.
Já com a barriga cheia, poderás novamente avançar. Ouvirás as doze badaladas junto à porta da casa de pedra e os sorrisos dos meninos chegarão até ti, como se te embalassem e convidassem a entrar.
Mas tu estás sempre de partida e a próxima casa já está ali mesmo à frente, a escassos metros da tua presença. À distância, qualquer observador atento poderia perceber que a noite avança em sintonia com os teus passos a ecoar na calçada. Dentro de ti, há risos e barulhos constantes que tentas entender à luz do silêncio da tua sombra, a perseguir-te. Mas as escalas são muito diferentes e existem mundos difíceis de equilibrar, até mesmo no pensamento…
Ao fundo da rua, vês um vulto negro a correr para o caixote da casa mais pobre da aldeia. Serão talvez quatro da madrugada e sabes que dali não haverá muito a esperar, mas, ainda assim, avanças com a mesma ansiedade com que sempre o fizeste anteriormente. Quando estás quase a chegar, um barulho estranho desperta-te a atenção e paralisa-te os movimentos.
Finalmente, quando ganhas coragem e tocas o saco preto atirado para o lixo ouves um leve choro que te toca a alma, como nunca ninguém havia conseguido. Tomas aquele embrulho nas mãos e ao depositá-lo no chão compreendes que existe ali uma criança, muito pequenina, como todas as crianças.
Ao olhar aquele rosto desprotegido quase podes jurar estar perante um espelho do tempo, em todos os sentidos. Também tu, um dia, tinhas sido abandonado, para não mais ser lembrado. Tu poderias ser aquela criança – e ali mesmo, em frente à casa mais pobre da aldeia, o teu pensamento foge para junto daqueles que um dia terão partido depois de te deixar. Talvez as pedras duras encimadas pelas janelas com vidros partidos te ajudem a explicar o que nunca poderias perdoar.
As lágrimas caem-te pelo rosto, como nunca pensaste poder acontecer. Retiras o casaco de serapilheira, único abrigo que ainda te resta e com dificuldade consegues estendê-lo no chão. Depois, a tremer por todos os lados, embalas o tenro rebento em todas as roupas que encontras e deposita-lo no teu casaco, enquanto procuras nos bolsos um fósforo que te apressas a acender.
No chão, mesmo ao lado daquela criança, começam a arder os papéis que acumulaste ao vasculhar os restos dos outros. Aquele calor não durará muito, pensas para ti próprio. E então, deixas-te cair sobre o chão, ergues as mãos e arrancas cada uma das pernas de pau que um dia uma alma caridosa te havia colocado e que o próprio ventre te havia recusado. Ali aprisionado, consentes que o fogo, lentamente, as consuma, uma a uma. E sentes o calor a crescer por fora.
No seu berço improvisado no meio do nada, a criança fascinada pelo inesperado calor da fogueira balbucia um sorriso e deixa-se adormecer. Está tranquila. Talvez sonhe.
Algumas horas depois, quando várias pessoas foram atraídas por aquela chama intensa, já ardia a última perna de pau daquele rapaz abandonado, que, para sobreviver, passara a vida a vaguear pelas ruas.
Sobre o que se passou a seguir nada poderei dizer ao certo, que a memória é curta e as minhas fontes, infelizmente, foram-se apagando com a passagem dos anos. Recordo que durante a meninice, perguntei muitas vezes à minha avó se aquela criança encontrada no meio do lixo tinha ou não sido salva, mas a resposta chegou sempre atrelada ao mesmo sorriso: Isso, meu netinho, ainda está por escrever... Talvez um dia, talvez um dia possas compreender…
Ainda hoje, naquela aldeia embalada no meio das serranias, por onde deambula o autor destas palavras, se diz que, uma vez por ano, no velho adro da igreja, a fogueira se acende no exacto local onde há muitos, muitos anos aquele rapaz abandonado também o tinha feito, para abrir as portas a uma nova vida, quando todas as outras já tinham sido fechadas.
Tal como me recorda o eterno sorriso da minha avó, a resposta à velha pergunta ainda está por construir; depende apenas de nós. Afinal, sempre que a porta se abre, o Natal acontece. E a distância desaparece.
Este “conto” é particularmente dedicado a todos aqueles que, pelos mais variados motivos, um dia tiveram de partir (ou ver partir…) e viver o Natal à distância.
Renato Nunes
3 comentários:
Conto muito belo. Gostei muito.
Benditas avós que contavam estas histórias.
Que felizardos os netos que as escutavam.
Pedro Sousa
Um extraordinário pedaço de prosa com a mais inteligente sensibilidade.
Bom Natal, Renato!
Mais um belíssimo texto do Renato que retrato como ninguém a simplicidade do Natal.
Um Feliz Natal para o Renato e todos os leitores do blogue
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