sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Um relato para ler e reler

Não costumo ser muito lamechas, no entanto a cada dia que passa apercebo-me de situações que me admiram. Já leccionei em 6 escolas nos últimos três anos, pude compartilhar sentimentos com crianças e perceber situações que me deixaram perplexo. Por vezes é admirável perceber o quão boa é uma criança, após perceber a sua realidade familiar. Não é meu timbre descrever Histórias relatadas por outrém no blogue, no entanto, não resisto a contar esta que me foi enviada por mail:

O menino do restaurante
Entrei apressado e com muita fome no restaurante. Escolhi uma mesa bem afastada do movimento, porque queria aproveitar os poucos minutos que dispunha naquele dia, para comer e acertar alguns bugs de programação num sistema que estava a desenvolver, além de planear a minha viagem de férias, coisa que há tempos que não sei o que são. Pedi um filete de salmão com alcaparras em manteiga, uma salada e um sumo de laranja, afinal de contas fome é fome, mas regime é regime não é?
Abri o meu portátil e apanhei um susto com aquela voz baixinha atrás de mim:
- Senhor, não tem umas moedinhas?
- Não tenho, menino.
- Só uma moedinha para comprar um pão.
- Está bem, eu compro um.
Para variar, a minha caixa de entrada está cheia de e-mail.
Fico distraído a ver poesias, as formatações lindas, rindo com as piadas malucas.
Ah! Essa música leva-me até Londres e às boas lembranças de tempos áureos.
- Senhor, peça para colocar margarina e queijo.
Percebo nessa altura que o menino tinha ficado ali.
- Ok. Vou pedir, mas depois deixas-me trabalhar, estou muito ocupado, está bem?
Chega a minha refeição e com ela o meu mal-estar. Faço o pedido do menino, e o empregado pergunta-me se quero que mande o menino ir embora.
O peso na consciência, impede-me de o dizer.
Digo que está tudo bem. Deixe-o ficar. Que traga o pão e, mais uma refeição decente para ele.
Então sentou-se à minha frente e perguntou:
- Senhor o que está fazer?
- Estou a ler uns e-mail.
- O que são e-mail?
- São mensagens electrónicas mandadas por pessoas via Internet (sabia que ele não ia entender nada, mas, a título de livrar-me de questionários desses):
- É como se fosse uma carta, só que via Internet.
- Senhor você tem Internet?
- Tenho sim, essencial no mundo de hoje.
- O que é Internet ?
- É um local no computador, onde podemos ver e ouvir muitas coisas, notícias, músicas, conhecer pessoas, ler, escrever, sonhar, trabalhar, aprender. Tem de tudo no mundo virtual.
- E o que é virtual?
Resolvo dar uma explicação simplificada, sabendo com certeza que ele pouco vai entender e deixar-me-ia almoçar, sem culpas.
- Virtual é um local que imaginamos, algo que não podemos tocar, apanhar, pegar... é lá que criamos um monte de coisas que gostaríamos de fazer.
Criamos as nossas fantasias, transformamos o mundo em quase como queríamos que fosse.
- Que bom isso. Gostei!
- Menino, entendeste o significado da palavra virtual?
- Sim, também vivo neste mundo virtual.
- Tens computador?! - Exclamo eu!!!
- Não, mas o meu mundo também é vivido dessa maneira...Virtual.
A minha mãe fica todo dia fora, chega muito tarde, quase não a vejo, enquanto eu fico a cuidar do meu irmão pequeno que vive a chorar de fome e eu dou-lhe água para ele pensar que é sopa, a minha irmã mais velha sai todo dia também, diz que vai vender o corpo, mas não entendo, porque ela volta sempre com o corpo, o meu pai está na cadeia há muito tempo, mas imagino sempre a nossa família toda junta em casa, muita comida, muitos brinquedos de natal e eu a estudar na escola para vir a ser um médico um dia.
Isto é virtual não é senhor???
Fechei o portátil, mas não fui a tempo de impedir que as lágrimas caíssem sobre o teclado.
Esperei que o menino acabasse de literalmente 'devorar' o prato dele, paguei, e dei-lhe o troco, que me retribuiu com um dos mais belos e sinceros sorrisos que já recebi na vida e com um
'Brigado senhor, você é muito simpático!'.
Ali, naquele instante, tive a maior prova do virtualismo insensato em que vivemos todos os dias, enquanto a realidade cruel nos rodeia de verdade e fazemos de conta que não percebemos!

É por estas situações que concluímos que grande parte das nossas incertezas e problemas são irrelevantes!!!

4 comentários:

Sérgio disse...

Comovente, Tiago...

Anónimo disse...

Tiago, é um texto muito forte... uma realidade, infelizmente, cada vez mais comum nos dias de hoje... uma boa lição de vida!

Ângela Gonçalves

Ângela Gonçalves disse...

Esta é uma realidade dura e a qual muitas das vezes nos passa ao lado pelo simples fato de estarmos cada vez mais preocupados com o nosso umbigo, com nosso bem estar, com as nossas comodidades... há, cada vez menos tempo para olharmos para os outros... Muitas das vezes nem é por mal, é pela correria que vivemos diariamente.
Infelizmente, nas nossas salas de aula esta realidade também marca presença. Acredita que não o falo da boca para fora. Sei do que falo, pois na minha curta vida profissional como professora já constatei várias vezes a presença da fome, da falta de higiene, falta de amor, carinho, atenção ou qualquer outra expressão de carinho. Muitas das vezes apeteceu-me adotar cada uma daquelas crianças, jovens e adolescentes com que convivi.
Sou sempre uma revoltada e revolucionária cada vez que um caso destes passa pela minha vida. Tenho vontade de mudar tudo, de começar do zero para estas crianças, mas nem sempre é fácil, pois nem sempre costumo ter o apoio dos restantes adultos que me cercam. Uma das respostas que recebi até hoje e que me marcaram, mostrando-me a falta de sensibilidade dos adultos que convivem com a desgraça alheia e que fecham os olhos por assim ser mais fácil de continuar sem qualquer tipo de remorsos, foi: " Não entendo por que é que a Ângela insiste em dar mimos e atenção a estas crianças. Porque as trata bem? Quando for embora elas vão sofrer. Não terão quem lhes dê toda essa atenção!". Custou-me tanto, tanto ouvir isto de uma adulta que lida com estas crianças até aos 18 anos. O que será delas em adultas? Há um texto que eu gosto muito, muito e que trabalho com todas as minhas turmas, desde o jardim de infância, 1º ciclo, 2º ciclo ou quando dou formação. É de um autor desconhecido, mas deveria ter um grande coração. Cá vai ele... pode ser que ajude o mundo a mudar, porque eu sei que para aquelas crianças..."Eu fiz a diferença!".


"Numa praia tranquila, junto a uma colónia de pescadores, morava um escritor. Todas as manhãs, ele passeava pela praia, olhando para as ondas. Assim ele inspirava-se e, à tarde, ficava em casa escrevendo. Um dia, caminhando pela areia, ele observou um vulto que parecia dançar. Chegou mais perto e viu que era um jovem que apanhava na areia estrelas-do-mar e, uma a uma, atirava-as para o mar.
Por que estás a fazer isso? Perguntou o escritor, curioso.
Não vê que a maré baixou e o sol está a brilhar com força? Se estas estrelas ficarem aqui na areia vão secar ao sol e morrer! - Respondeu o jovem.
O escritor até achou bonita e louvável a intenção daquele jovem, mas sorriu cepticamente e comentou:
Só que existem milhares de quilómetros de praias por esse mundo fora, meu caro. Centenas de milhares de estrelas-do-mar devem estar espalhadas por todas essas praias, trazidas pelas ondas. Que diferença é que faz estares aqui a atirar algumas de volta para o mar?
O jovem olhou para o escritor, pegou em mais uma estrela-do-mar e atirou-a para a água. Depois voltou a olhar para o escritor e disse:
Para esta, eu fiz diferença!
Naquela tarde, o escritor não conseguiu escrever. De noite não conseguiu dormir. De manhãzinha, foi para a praia. O jovem estava a surfar nas primeiras ondas do dia. Quando saiu do mar e foi para a areia encontrou o escritor. Juntos, com o sol ainda manso, começaram a atirar as estrelas-do-mar de volta ao mar."

Amigo, só poderemos ser felizes se fizermos os que nos rodeiam felizes!
Um beijo grande

Tiago Sousa disse...

Ângela obrigado pelo teu importante, e eluciativo testemunho.
Na época de crise que vivemos, cada vez mais, olhamos para nós esquecendo os outros. É por esta e outras, que é importantes ler relatos como o tu publicaste.

Obrigado.