A hostilidade aos professores é evidente em muitos sectores da sociedade portuguesa. Manifestou-se mais uma vez no último conflito gerado pelas votações dos partidos na Assembleia atribuindo aos professores a contagem integral do tempo de serviço. Antes, durante e depois deste processo, a vaga de hostilidade aos professores atingiu níveis elevados, com a comunicação social a escavar fundo a ferida, com sondagens orientadas e uma miríade de artigos de opinião e editoriais.
Valia
a pena parar para pensar, porque este movimento de hostilidade é mais anómalo
do que se pensa, e acompanha outros, como o ataque aos velhos como sendo um
“fardo” dos novos. Mostram que estamos a entrar numa cosmovisão social que
implica um retrocesso enorme naquilo a que chamamos precariamente “civilização”.
É preciso recuar muito para encontrar ataques aos professores, o último dos
quais teve expressão quando a escola laica, em países como a França, foi um
alvo importante da igreja, que tinha o monopólio do ensino.
Mas
eu seria muito cuidadoso sobre as razões dessa actual hostilidade, porque ela
incorpora aspectos muito negativos da evolução da nossa sociedade. É um caminho
que muita gente está a trilhar, sem perceber que ele vai dar a um profundo
retrocesso. E isso acontece muitas vezes na história: anda-se para trás quase
sem se dar por ela, contando com a inacção, a apatia, ou a acédia, de quem
deveria reagir. Como a democracia é uma fina película contra a barbárie e é
apenas defendida pela vontade dos homens e não por nenhuma lei da natureza,
mais vale prevenir com todos os megafones possíveis.
Há vários aspectos na actual
hostilidade. Há uma agravante no caso português que tem a ver com a vitória
muito significativa da ideologia da troika,
que está longe de ter desaparecido e, nalguns casos, migrou para sectores que
lhe deveriam ser alheios e não são: os socialistas, por exemplo. Disfarçada de
“economia”, essa ideologia assenta numa visão pseudo-cíentifica, muito
rudimentar e simplista, cheia de variantes neo-malthusianas, que se apresentou
como não tendo alternativa, a nefasta TINA. Isto encheu-nos as cabeças e não
saiu delas.
Essa ideologia centra-se na crítica do Estado, em particular do
Estado social, e transforma os funcionários públicos em cúmplices de uma rede
de privilégio, sendo descritos apenas como “despesa” excessiva. Vale a pena
ensinar-lhes um pouco de história europeia e lembrar-lhes o papel do Estado
desde Bismarck como instrumento para impedir sociedades bipolares de “proletários”
e ricos, com a consequente conflitualidade social extrema. Acresce que esse
processo criou à volta do Estado uma classe média, os tais desdenhados
funcionários públicos, que não só funcionou como tampão como arrastou muita
gente que vinha da pobreza e acedeu à mediania. A economia privada e o
dinamismo das empresas, quando existiu ou existe, teve e tem igualmente esse
papel, mas não chegou para criar este elevador social.
Portanto, gritem contra a função pública e os malefícios do
Estado, que também existem como é obvio, mas percebam que o pacote de não ter
professores, enfermeiros, médicos, jardineiros, funcionário das repartições,
leva atrás de si o ensino e a saúde pública, que são componentes essenciais do
elevador social, o único meio de retirar as pessoas da pobreza, quer no
privado, quer no público. Pais lavradores, que conheceram a verdadeira pobreza,
filha professora primária ou funcionária pública, neto estudante universitário
– sendo que o papel da educação é um elemento fundamental para esta ascensão.
Depois, há outros ingredientes. Os professores protestam, fazem
greves, boicotam exames, fecham escolas, e hoje há uma forte penalização para
as lutas sociais. Quem defende os seus interesses é penalizado e de imediato
tem contra si muita comunicação social, o bas-fond das
redes sociais e a maioria da opinião pública. São os enfermeiros, os
camionistas, os professores, os trabalhadores dos transportes – manifestam-se,
são logo classificados de privilegiados e egoístas. Os mansos que recebem migalhas
no fundo do seu ressentimento invejam quem se mexe. Sem mediações, a sociedade
esconde os que não precisam, e pune os que lutam. As greves hoje são
solitárias
O papel mais negativo é o da comunicação social, que se coloca
sempre na primeira linha do combate ao protesto social. Despreza por regra os
sindicatos, que considera anacrónicos, aceita condições de trabalho de sweatshop e
ajuda a apagar e a tornar incómoda a memória de que o pouco que muitos têm no
mundo do trabalho foi conseguido com muito sangue, e não ficando em casa a
jogar gomas no telemóvel ou a coscuvilhar no Facebook.
Por fim, e o mais importante, há uma desvalorização do papel do
professor, de ensinar, de transmitir um saber. Vem num pacote sinistro que
inclui o falso igualitarismo nas redes sociais, o ataque à hierarquia do saber,
o desprezo pelo conhecimento profissional resultado de muito trabalho a favor
de frases avulsas, com erros e asneiras, sem sequer se conhecer aquilo de que
se fala. É o que leva Trump a dizer que se combatia o incêndio de Notre Dame
com aviões tanques atirando toneladas de água, cujo resultado seria derrubar o
que veio a escapar, paredes, vitrais, obras de arte. É destas “bocas” que
pululam nas redes sociais que nasce também a hostilidade aos professores. É o ascenso
da nova ignorância arrogante, um sinal muito preocupante para o nosso futuro.
Os professores têm muitas culpas, deveriam aceitar uma mais
rigorosa avaliação profissional, deveriam evitar ser tão parecidos como estes
novos ignorantes, deveriam ler e estudar mais, deveriam ser severos com as
modas do deslumbramento tecnológico, mas isso não esconde que têm hoje uma das
mais difíceis profissões que existe. E que, sem ela, caminhamos para o mundo de
Camilo. Não de Eça, mas de Camilo, do Portugal de Camilo. Verdade seja que isto
já não significa nada para a maioria das pessoas. Batam nos professores e
depois queixem-se.
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