De
mochila às costas, vou deambulando pelas ruas, com a tranquilidade que apenas
as manhãs de domingo ainda me permitem respirar. Perdido, sobretudo, nas ruelas
mais recônditas, quer seja em Lisboa, nas Beiras ou nos Açores, ainda não tive
um dia que, depois desses périplos caseiros, não regressasse ao lar
surpreendido com a quantidade de novidades reveladas.
Neste âmbito, o “Passeio dos Poetas”
disseminado pela Praia da Vitória constitui uma oportunidade privilegiada para
lavar a alma com os versos mais inesperados e reencontrar algum do silêncio
imprescindível para um raro momento de introspecção e reflexão. Aqui ficam, a
título de aperitivo, as incisivas lições de João Lourenço Soares, “O Vital”,
postadas na rua do Conselheiro Nicolau Anastácio (perpendicular à rua de Jesus):
“a serpente que rasteja / põe a selva em sobressalto / somente por ter inveja /
da águia que voa alto”. Ou ainda a (dramática) profecia de Rui Rodrigues, já na
rua de Jesus: “os meninos / morrem dentro dos homens”. E por momentos vem-me à
memória a amarga, mas tão sofrida (e cristalina) poesia filosófica de António
Aleixo…
Outrossim, ir à Praia da Vitória,
com parte do seu inconfundível núcleo histórico tipicamente renascentista
(adoptado, grosso modo, após o sismo
de 1841), também é ver a Igreja Matriz de Santa Cruz a ostentar o seu portal de
três arcos quebrados, debruados pela magnificente arquivolta exterior. Com as
suas claras influências marítimas (o “nosso” estilo “Manuelino” ainda temperado
pelo Gótico), vejam-se as cordas umbilicalmente entrelaçadas, os motivos
naturalistas e, apenas a título ilustrativo, logo do lado esquerdo (no sentido
da entrada), o quase despercebido busto do penitente, em oração latente. O
pórtico em jeito afunilado como que prepara, gradualmente, a entrada do crente
num mundo mais puro. Abandonar o exterior, beber o silêncio do santuário e a
beleza da arte (sendo ou não religioso) é recuar ao passado e sair regenerado…
À saída da Igreja Matriz, logo do
lado esquerdo, o monumento consagrado a Francisco de Ornelas da Câmara
recorda-nos o primeiro lugar onde, nos Açores, no dia 24 de Março de 1641, foi aclamado
D. João IV rei de Portugal e, como tal, proclamada a restauração da
independência nacional. Nestes tempos tão estranhos em que o neo-
-liberalismo vigente nos vai roubando a identidade, contemplar este monumento e ler a sua (já incompleta) inscrição é recuperar parte da memória do que somos e daqueles que nos ergueram ao patamar em que nos movemos. Do lado direito, à saída da Matriz, lá de cima a ermida de São Salvador convida-nos a contemplar o seu sino, enquanto as suas desgastadas pedras parecem ansiosas por contar-nos uma longa história…
-liberalismo vigente nos vai roubando a identidade, contemplar este monumento e ler a sua (já incompleta) inscrição é recuperar parte da memória do que somos e daqueles que nos ergueram ao patamar em que nos movemos. Do lado direito, à saída da Matriz, lá de cima a ermida de São Salvador convida-nos a contemplar o seu sino, enquanto as suas desgastadas pedras parecem ansiosas por contar-nos uma longa história…
Descendo, passamos pela “Casa Vitorino
Nemésio”, saboreamos as palavras do escritor, sempre temperadas pelo
interminável murmúrio das ondas: “Eu me construo e ergo peça a peça de saudade,
vagar e reflexão”. Continuando a descer, a “Casa das Tias”, o busto do autor
açoriano (criador do célebre romance Mau
Tempo no Canal) com mais algumas das suas colossais mensagens, que nos
apressamos a gravar na alma: “Sou ilhéu. E tanto ou mais do que a ilha, o ilhéu
define-se por um rodeio de mar por todos os lados”. Depois, mesmo em frente, a
Igreja da Misericórdia, com os seus invulgares dois altares-mores, os seus “torreões-minaretes”
e a sua inconfundível imagem imaculadamente branca e azul celestial. Descemos,
voltamos a subir as ruas mais sinuosas, perdemo-nos em inscrições, que nos recordam
importantes figuras institucionais do passado, como seja o caso do corregedor. Não
tarda e somos forçados a parar em frente aos Paços do Concelho, a imaginar o
antigo presídio municipal (no actual edifício ocupado pelos CTT) e a contemplar
o monumento consagrado à decisiva vitória dos liberais, na batalha da Praia que
haveria de moldar o futuro de Portugal (11 de Agosto de 1829).
Lá ao fundo, o Paul serpenteia
delicadamente. Homem das Beiras que sou, criado não muito longe do curso do
Mondego, a imagem mais próxima que tenho de um rio é ao Paul da Praia que vou
recuperá-la. As margens, ladeadas pelos juncos agudos e pelas malvas bastardas,
escondem as esquivas galinhas d’água, com o seu bico carmesim. Bem no coração do
santuário líquido, os patos deslizam graciosamente, enquanto, à distância, a
garça-real lava as penas com o comprido bico. Lá ao cimo, no Miradouro do
Facho, o vento deve continuar a soprar bem forte, mas a omnipresente imagem de
Maria permanece indiferente a toda a agitação. Afinal, subir lá ao topo é mesmo
uma necessidade: ajuda-nos, que mais não seja, a compreender as formiguinhas
que somos e os verdadeiros “moinhos de vento” quixotescos em que diariamente
nos enredamos…
A Praia é tudo isto e muito,
muitíssimo mais (a “Casa da Roda”, a Biblioteca Silvestre Ribeiro, o Mercado e
o Jardim Municipal, o fontanário oitocentista…). Continental que sou, aprendi a
admirar esta “vitoriosa” cidade em cada um dos seus detalhes. A Praia ajuda-me
a interrogar os pormenores, a olhar e ouvir para além da simples aparência. Por
isso, sempre que posso, procuro percorrê-la e beber as suas intermináveis
lições. Fazê-lo, ajuda-me ainda a recordar que as terras nunca são pequenas; os
nossos espíritos – cada vez mais consumistas – é que nem sempre estão à altura
do que vislumbram. Uma máxima que, afinal, parece vir mesmo a calhar nesta
época de Natal…
E o(a) leitor(a): já imaginou ser
turista na sua própria terra? Se ainda não o fez, nem calcula os milagres que está
a perder…
Renato
Nunes (renato80rd8918@gmail.com)
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