Regresso à minha aldeia nativa e
pressinto-a cada vez mais despovoada, já com muitas das casas de granito
convertidas em fantasmas. Deambulo pelas ruas, recordo as histórias inscritas
nas pedras e deixo-me levar pelas memórias da meninice, com os gaiatos do Cimo
do Povo a jogarem à bola na calçada. Actualmente, são poucas as crianças desta
terra, pese embora o meritório trabalho desenvolvido, mormente na última
década, ao nível da melhoria das infra-estruturas locais.
Francisca e André (nomes fictícios)
são hoje um dos poucos meninos desta terra das Beiras, que levo na alma em cada
travessia do Atlântico. Ela com 6 anos, ele com 4, oriundos de um meio
económico e cultural claramente desfavorecido, ajudam-me a viajar no tempo; a
recuar mais de três décadas. No ano em que nasci (1980), 17% dos portugueses
adultos não sabiam ler, mas a mobilidade social ascendente começava a revelar-se
possível. De facto, a revolução de Abril abriu um conjunto de portas e
oportunidades ̶
inimagináveis durante o Estado Novo ̶ e todas as vitórias pareciam possíveis. Foi
por isso, apenas por isso (por uma questão de mais oportunidades), que dos 7
filhos que os meus pais geraram apenas eu tive o privilégio de continuar a
estudar.
Hoje, olhando estes dois irmãos, quais
torgas que resistem na aridez das fragas, revejo o meu próprio percurso e dou
por mim a pensar no seu futuro. Francisca e André não sabem ̶ como poderiam
saber? ̶ ,
mas o seu país prepara-se para receber os 40 anos da revolução de Abril, numa
altura em que as notícias mais recentes dizem que o salário mínimo nacional
vale hoje menos do que em Maio de 1974 ̶ argumento que muitos
saudosistas poderão querer utilizar para desvalorizar o movimento militar, depois
de cariz popular, que derrubou o Estado Novo.
Se é certo que as datas históricas
não servem para ser colocadas num pedestal e glorificadas como santos, também é
certo que o povo que perdeu a capacidade de recordar os marcos fundadores da
sua identidade é um povo sem memória e, consequentemente, condenado a
naufragar.
O 25 de Abril é um dos nossos marcos
fundadores, enquanto país. Como escreveu Miguel Torga no seu Diário, no próprio dia da revolução, tratou-se
de “um passo”, um início para, desde logo, acrescento eu, acabar com a guerra
colonial, que há já 13 anos estropiava o país. A tragédia que veio a seguir não
deve servir, não pode servir, para escamotear a importância da “revolução dos
cravos” e dos seus actores, nomeadamente aqueles que pediram para depois serem
sepultados numa campa rasa, como foi o caso do capitão Salgueiro Maia.
Recordar a situação de Portugal
durante o Estado Novo também não significa ilibar os actuais actores políticos
das suas tremendas responsabilidades na situação calamitosa a que chegámos. Os
40 anos da revolução deveriam servir, isso sim, para procurar corrigir…
Ora, em data de aniversário, é
curioso como, de uma penachada, a segunda figura da Nação, Assunção Esteves
(reformada na ternura dos 40 anos, a receber mais de 7000 euros mensais e com
direito a “ajudas de custo” ̶ com o apoio
incondicional dos deputados da coligação que governa o país, tudo dentro da
mais absoluta legalidade…), descartou os militares da “Casa da Democracia”, até
com alguma arrogância pelo meio, impedindo-os de tomar a palavra. O que
equivale a dizer: comemore-se Abril, mas longe dos seus pais. Afinal, o que
eles teriam para dizer provoca assim tanto medo, 40 anos depois de termos
extinto, pelo menos formalmente, a censura? Entrementes, enquanto se anulam as
vozes incómodas, alguns pretendem estrategicamente apropriar-se da memória
daqueles que nunca se venderam ̶ não é esse, afinal, o objectivo dos iluminados
que pretendem levar Salgueiro Maia para o Panteão Nacional, contra a vontade
expressa pelo próprio militar, no seu testamento de 1989? Calam-se os vivos e
usam-se os mortos. Haja vergonha.
Num momento em que os políticos
necessitam, como pão para a boca, de actos de credibilidade, Durão Barroso veio
a público, diz-se que algo emocionado, afirmar que antes do 25 de Abril,
“apesar de algumas liberdades cortadas, havia na escola uma cultura de mérito,
exigência, rigor, disciplina e trabalho”. E depois conclui a respeito dele
mesmo, em jeito de empáfia: “Sabia, era arguto na argumentação e já tinha algum
espírito irreverente” (Diário de Notícias,
13/4/2014, p. 22). O próximo candidato a Presidente da República (segundo os
rumores mais recentes) ou o Primeiro-
-Ministro que, em 2004, abandonou o país para assumir o cargo de Presidente da Comissão Europeia não deveria enxergar minimamente a situação da maioria da população portuguesa quando estudava e tenho dúvidas em relação ao seu conhecimento sobre a actual situação do país profundo. Caso houvesse em Portugal um conjunto de cidadãos dotados de um mínimo sentido de memória histórica, nem mesmo os elogios do salamurdo Cavaco Silva lhe poderiam valer de muito…
-Ministro que, em 2004, abandonou o país para assumir o cargo de Presidente da Comissão Europeia não deveria enxergar minimamente a situação da maioria da população portuguesa quando estudava e tenho dúvidas em relação ao seu conhecimento sobre a actual situação do país profundo. Caso houvesse em Portugal um conjunto de cidadãos dotados de um mínimo sentido de memória histórica, nem mesmo os elogios do salamurdo Cavaco Silva lhe poderiam valer de muito…
Num
momento em que os políticos necessitam, como pão para a boca, de actos de
credibilidade, o Engenheiro (perdão, Mestre…) Sócrates lá continua no canal
público a tentar reconstruir a imagem que deixou no decurso dos anos
desastrosos em que governou, pese embora as enternecedoras e elogiosas palavras
que muitos ainda lhe votam, caso de Santana Lopes. Depois, o Dr. Miguel Relvas,
notável malabarista, fosforesce nos seus novos cargos público-privados, tendo
ainda recentemente sido nomeado por Passos Coelho para encabeçar a lista ao
Conselho Nacional do PSD; as prescrições dos casos que envolvem milhões
avolumam-se a um ritmo alucinante, enquanto se anuncia um provável debate em
torno da (reduzida) subida do salário mínimo nacional e, claro, se comemora
sofregamente a vitória do Benfica no campeonato e se aguarda o pontapé de saída
do Mundial, no Brasil ̶ país onde já vários cidadãos parecem ter
percebido que o “pão e o circo” da Roma Antiga emergem hoje travestidos de
outras fórmulas (como a estratégica “Factura da Sorte”, com o sorteio de carros
alemães de alta cilindrada, à margem da fiscalização do Serviço de Inspecção de
Jogos…), mas o objectivo essencial mantém-se.
Num momento em que os políticos
necessitam, como pão para a boca, de actos de credibilidade, mantêm-se as
perigosas (e seculares) ligações promíscuas entre os grandes interesses/grupos económicos
e o Estado, como o documentário realizado por Jorge Costa nos permite
surpreender e que, por certo, por uma simples questão de coincidência, a RTP2
exibiu já pela madrugada dentro (“Donos de Portugal”: http://vimeo.com/40658606 ).
A Nomenklatura continua a imperar…
Francisca e André: como eu gostaria
de anunciar-vos um futuro diferente daquele que, neste momento, vos posso
prever. No próximo ano, por certo, encerrar-
-vos-ão a escola da família e irão atirar-vos para as novas indústrias mega-agrupadas. Não sei o que acontecerá depois. Enquanto estudante, eu tive a hipótese de ver o esforço premiado pelos mecanismos do Estado Social, que, verdadeiramente, começou a ser edificado no pós-25 de Abril em Portugal. Quanto a vós, infelizmente, não estou certo que tal ocorra. 40 anos depois de Abril, a Escola pública, progressivamente inclusiva, corre o risco de implodir e com essa destruição seguirá, inevitavelmente, para o charco uma poderosa via de mobilidade social ascendente, o que equivale a dizer a anulação de uma ferramenta imprescindível para a edificação de uma sociedade efectivamente livre e democrática. Como é lógico, a Nomenklatura agradece, pois isso significará a perpetuação da velha máxima elitista: Diz-me onde nasceste, dir-te-ei onde chegarás...
-vos-ão a escola da família e irão atirar-vos para as novas indústrias mega-agrupadas. Não sei o que acontecerá depois. Enquanto estudante, eu tive a hipótese de ver o esforço premiado pelos mecanismos do Estado Social, que, verdadeiramente, começou a ser edificado no pós-25 de Abril em Portugal. Quanto a vós, infelizmente, não estou certo que tal ocorra. 40 anos depois de Abril, a Escola pública, progressivamente inclusiva, corre o risco de implodir e com essa destruição seguirá, inevitavelmente, para o charco uma poderosa via de mobilidade social ascendente, o que equivale a dizer a anulação de uma ferramenta imprescindível para a edificação de uma sociedade efectivamente livre e democrática. Como é lógico, a Nomenklatura agradece, pois isso significará a perpetuação da velha máxima elitista: Diz-me onde nasceste, dir-te-ei onde chegarás...
Há 40 anos, Abril foi uma porta que
se abriu. O Homem que um dia deixa de evocar conscientemente o aniversário
acabará depois por esquecer o seu próprio nome. A seguir, não restará mais
nada, além do vazio das pedras abandonadas, fantasmas.
Renato Nunes (renato80rd8918@gmail.com)
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