Nunca te disseram, mas no jardim da
tua casa apareceu, há alguns anos atrás, um gato muito amarelo, mais amarelo
ainda que o próprio sol. Esse gato, que todos chamavam Pico, tinha uma cauda
enorme, duas patinhas rechonchudas e uns bigodes afiados. Quando alguém o
chamava, arrebitava a orelha direita, espreguiçava cada uma das patinhas e só
depois, tranquilamente, decidia avançar. Quem conseguiu estar perto dele jurou-me
que nunca tinha visto uns olhos assim; uns olhos que até falavam, ainda que com
outras palavras…
Como sabes, bem no meio do oceano Atlântico
existe uma grande fatia de terra, rodeada de água por todos os lados. A essa
fatia de terra os crescidos chamam ilha do Pico, não porque ela pique as
pessoas que por aí passam, mas porque lá existe uma montanha muito alta. Vê
bem, é a montanha mais alta de Portugal e, até hoje, poucos homens conseguiram
ficar muito tempo lá em cima. Há quem diga que a montanha, assim que vê chegar
alguém, enrola-se num denso nevoeiro e começa a gemer tão alto, que quase todos
são obrigados a descer rapidamente. Ainda hoje, naquela ilha, se diz que é
possível ouvir esse som, quando algum intruso se aproxima. E, acredita em mim,
já muitos tentaram subir à montanha mais alta de Portugal…
Entre os muitos que desejaram chegar
lá mesmo em cima está o Micha – um pastor que, durante vários anos, apascentou
as suas ovelhas nos terrenos do sopé da montanha. Micha era grande, tinha
crescido a ouvir a música que descia do cume e poucos conheciam como ele os
segredos das alturas.
Durante anos e anos, Micha guiara o
seu rebanho pelos trilhos que conduziam à montanha, sem nunca ter a tentação de
desafiá-la e invadi-la. Um dia, porém, quando estava na taberna da vila, um homem
tentou-o:
“– Ouve lá, Micha! Aposto tudo o que
queiras que nem tu mesmo és capaz de subir ao ponto mais alto do Pico e passar
lá a noite.”
No início, o pastor quase nem
reparou naquele desafio. Limitou-se a sorrir, enquanto baixava a cabeça.
Respeitava muito a montanha e não seria um simples tolo a convencê-lo a subir
lá em cima. O homem, no entanto, não desistiu e voltou à carga:
“– Não ouviste o que te disse? Pois
olha. Eu estava mesmo disposto a apostar contigo quinhentas moedas como nem tu
próprio consegues. Ouvi dizer que tens a mulher doente no hospital da Horta. Se
calhar dava-te jeito. Mas deixa lá. Não és capaz e ponto final.”
Micha tinha realmente a mulher muito doente. E
aquelas moedas davam-lhe mesmo jeito. Agora, que era pai, aquelas palavras
batiam-lhe ainda mais no fundo do coração. Fitou o tolo com muita atenção nos
olhos e disse-lhe:
“– Qual é, afinal, o teu interesse
em ver-me subir à montanha? Ganhas alguma coisa com isso? Que eu consiga ou não
chegar lá mesmo ao topo, é uma coisa que não te diz respeito. Guarda as tuas
moedas.” – e, dito isto, ficou a olhar para um pardal que ora ajeitava as penas,
ora saltitava de rocha em rocha. Por breves momentos, aquele passarinho
transportou-o para outro lugar ligado à sua infância; lá, onde também se fala
português, o saltitão é conhecido por tchota.
Curioso, não é! Mas o arco-íris só é belo porque tem muitas cores – já tinhas
pensado nisso?
Micha saiu então para a rua.
Começara a escurecer e lá bem no alto apareciam as primeiras estrelas. Atrás
dele seguiu rapidamente o tolo. Ele não desistia facilmente:
“– Apostei duas mil moedas com o
Doutor Xabegras da Madalena, como nem tu lá ias acima. Por isso, vê bem, se tentares
e falhares eu ganho a aposta e, como recompensa, ainda te dou quinhentas
moedas. É pegar ou largar, agora!”
“– E imagina que eu consigo mesmo
chegar lá em cima…”
“– Nesse caso, ainda seria melhor
para ti. O Doutor Xabegras prometeu entregar-te o dobro do que eu iria dar-te.
Pediu-me que te convencesse a aceitar… na Madalena há muitos curiosos em saber
se tu consegues ou não. À noite, nas tabernas, não se fala de outra coisa senão
do grande espírito da montanha e daqueles que ainda poderão vencê-lo.”
Micha franziu a testa ao ouvir
aquelas palavras. “Pobres tolos se pensam que alguém pode vencer a montanha.
Como estão tão enganados…” – pensou para os seus próprios botões, enquanto lhe
passava pela cabeça a imagem do seu novo rebento, a pedir-lhe comida: Papá, tenho fome… dás-me comida, não dás??
Naquela noite, Micha quase não
dormiu. A montanha parecia estar dentro do seu próprio quarto e por vezes teve
mesmo a impressão de ouvir a voz das alturas a pedir-
-lhe para não aceitar aquele desafio. A dizer-lhe que não precisava daquelas malvadas moedas; que a sua mulher iria melhorar; que a sua mesa voltaria a ficar cheiinha de comidinhas boas e que nunca mais teria de chorar, enquanto ouvia aquela frase: Papá, tenho fome… dás-me comida, não dás??
-lhe para não aceitar aquele desafio. A dizer-lhe que não precisava daquelas malvadas moedas; que a sua mulher iria melhorar; que a sua mesa voltaria a ficar cheiinha de comidinhas boas e que nunca mais teria de chorar, enquanto ouvia aquela frase: Papá, tenho fome… dás-me comida, não dás??
Quando
amanheceu, Micha rezou muito e depois correu em direcção à vila, para aceitar a
aposta. Que fosse o que Deus quisesse, concluiu. Assim que chegou à taberna,
viu o Doutor Xabregas, já à sua espera; parece que o espírito da noite lhe
tinha anunciado aquela decisão e ele próprio resolvera vir da Madalena para
confirmar a audácia do pastor. Sentaram-se e voltaram a levantar-se sem reparar
que em cima da desgastada mesa restava ainda uma taça de café, já abandonada…
No final, ficou acordado que, nesse
mesmo dia, Micha iria avançar. Começou a preparar-se ainda durante a quarta
hora, nome pelo qual os monges da Idade Média conheciam o período das dez horas
da manhã. Agarrou num saco, colocou lá dentro um pedaço de pão seco, com duas
azeitonas e, sem mais demoras, caminhou rapidamente até ao cume. Conhecia
aqueles carreiros como quem distingue as linhas da palma das mãos e, por isso,
não levou muito tempo a chegar até ao piquinho da montanha. Tinham combinado
que assim que ele vencesse as alturas colocaria um facho a arder, para que, logo
à noitinha, em toda a ilha se soubesse que o pastor Micha tinha conseguido ultrapassar
o que todos temiam.
Ainda não era escuro e já o facho
ardia, bem lá no pontinho mais alto de todo o Portugal. Puxou do saco que
levava e começou a roer o pão seco, que ia misturando com as azeitonas guardadas.
Depois, aconchegou-se o mais que pôde com a esfarrapada samarra que trazia
vestida e adormeceu. Lá em baixo, poucos poderiam sequer imaginar aquela paz
interior que invadira o pastor.
Porém, por volta das três horas da
madrugada, Micha foi inesperadamente acordado por uma voz que parecia vir do
interior da própria montanha, cada vez mais protegida por um denso manto de
nevoeiro. Aquela frase nunca mais o abandonaria:
“
– Ganhaste as moedas, mas perderás bem mais”…
Assustado, Micha ajoelhou-se e rezou
muito, como nunca tinha rezado.
Pediu então a Deus que não lhe
levasse ainda a sua mulher, a sua Tina, pois não conseguia imaginar a vida sem
aquela flor. Chorou, chorou tão alto que, por momentos, conseguiu até fazer
calar a voz da montanha que pareceu, ela própria, ter ficado comovida com todo
aquele sofrimento. Depois, ainda com as lágrimas a escorrerem-lhe pela face,
correu pela montanha abaixo, o mais rapidamente que lhe permitiam as suas já
frágeis pernas. Tinha quase 50 anos.
Quando tomou das mãos do Doutor
Xabegras as mil moedas a que tinha direito, foi recebido no meio de grandes
aplausos e gritaria, como se de um autêntico herói se tratasse. Então, sem que
ninguém se apercebesse, voltou-se para a montanha e viu que o Facho que lá
tinha colocado já estava apagado.
Com o dinheiro nas mãos, correu à
mercearia da freguesia e comprou tudo o que precisava em casa. Tinha jurado que
não mais voltaria a ouvir aquele Papá,
tenho fome… dás-me comida, não dás?? Depois,
já com a barriga cheia e o seu mais tenro rebento deitado na cama, apanhou o
barco, atravessou o agitado canal e foi ao Faial. Inesperadamente, a sua mulher
tinha ficado melhor e alguns dias depois estaria já em casa, completamente
recomposta da doença, que quase a levara para junto de Deus. As suas preces
foram ouvidas pela montanha, pensou Micha, aliviado. Era como se lhe tivessem
tirado um peso do coração.
Alguns anos se passaram depois deste
episódio que, a pouco e pouco, foi sendo esquecido pelos habitantes do Pico (o
ser humano tem a proeza de conseguir esquecer quase, quase tudo). Até que um
dia, quando já a tarde se preparava para desaparecer, rebentou uma notícia que
rapidamente atravessou todas as freguesias da ilha: a filha mais nova do Micha
tinha desaparecido no meio da montanha – há já algumas horas que o pai a
procurava desesperadamente e nem sequer um rasto apanhava.
Começou então a dizer-se, por todo o
lado, que a montanha se tinha vingado da ousadia do pastor, que mais tarde ou
mais cedo ninguém escapava à sua maldição e que, nessa manhã, o espírito das
alturas voltara a gritar, como já não o fazia desde aquela longínqua noite.
Castigo ou não, a verdade é que a
menina nunca mais aparecia. Passaram-se dias e dias, tantos que nem eu te posso
contar. Micha ficou cada vez mais velho, tão velho que já mal conseguia ver. A
tristeza de Micha tornara-se tão grande que passava o tempo fechado em casa, ao
lado da sua mulher, de cabelos cada vez mais brancos e compridos, a tocarem o
que ainda restava de um rosto já queimado pela vida.
Um dia de Outono, apareceu-lhes em
casa um gato amarelo, que não parava de ronronar; estava cheio de fome. Ao ver
aquele bichano completamente abandonado, Micha comoveu-se e deitou-lhe uma bela
tigela de leite com pedaços de pão. Há já muito tempo que aquela malga,
colorida com estrelinhas, não era utilizada e, ao agarrá-
-la, o pastor sentiu um arrepio a invadi-lo por dentro. Depois, o gato foi ficando, ficando, até que se tornou um membro da família. Quando estava triste, Micha aninhava-o no seu colo, fazia-lhe festas e contava-lhe muitas vezes a história da montanha. As suas lágrimas eram ainda tão intensas que, segundo se diz, eram suficientes para lavar o pêlo, cada dia mais macio do bichano. Chamava-se Pico e os seus olhos pareciam falar, ainda que com outras palavras, lembras-te?
-la, o pastor sentiu um arrepio a invadi-lo por dentro. Depois, o gato foi ficando, ficando, até que se tornou um membro da família. Quando estava triste, Micha aninhava-o no seu colo, fazia-lhe festas e contava-lhe muitas vezes a história da montanha. As suas lágrimas eram ainda tão intensas que, segundo se diz, eram suficientes para lavar o pêlo, cada dia mais macio do bichano. Chamava-se Pico e os seus olhos pareciam falar, ainda que com outras palavras, lembras-te?
Um dia, bem pela manhã, depois de
lamber a malga de leite, o bichano olhou mais demoradamente para Micha, como
que a querer dizer-lhe alguma coisa e, esfregando lentamente os bigodes,
partiu, para nunca mais voltar. Lá na ilha, há ainda hoje quem diga que ele
subiu ao topo da montanha e deixou depois regressar a menina para junto dos
seus pais, sacrificando a própria liberdade para toda a eternidade.
Sabes, na ilha todos acreditam que
essa criança, que hoje já cresceu, és tu. Foi o gato amarelo, mais amarelo que
o próprio sol, que partiu para te salvar e te devolveu àqueles que, agora
mesmo, estão junto a ti, a embalar-te as mãos. Sabes, há muitas pessoas que, às
vezes, têm de partir, para que outras possam chegar… Esse gato, o Pico, tal
como o teu avô, partiram para te trazer até junto de nós.
Até o Sol tem, todos os dias, de embarcar
para deixar a lua chegar…
Agora dorme, meu amor.
Renato
Nunes
1 comentário:
Um conto Maravilhosd. Extraordinariamente bem escrito de um autor com um talento impar.
Parabéns Renato por nos dares o prazer de compartilhar o que tu escreves.
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