Riccardo
Marchi, investigador e professor universitário, publicou em Junho de 2020, um
ensaio a respeito do CHEGA, no qual
sustenta, entre outros aspectos, que o partido criado por André Ventura não
pertence à extrema-direita, mas sim à “direita radical”, pois “a sua cultura
política não tem nada a ver, do ponto de vista doutrinário, com os
autoritarismos de direita dos anos 20 e 30 do século passado” (Riccardo Marchi, 2020, p.
194). Ainda segundo Riccardo Marchi, o CHEGA não é racista, embora ― como
admitiu André Ventura ― o discurso do partido possa ser favorável à aproximação
dos racistas.
Na obra de Riccardo Marchi
sustenta-se ainda que a acção de André Ventura é controlada pela moral cristã e
que várias propostas do CHEGA, nomeadamente ao nível fiscal, padecem “ainda de
clareza” (Riccardo Marchi, 2020, p.
156). Já na parte das conclusões do aludido ensaio que inspira este artigo, Ventura
é descrito como um “político jovem, ambicioso, pragmático, empático, telegénico,
com discurso contundente e capacidade oratória já treinada na polémica
mediática”, cujo perfil e prática, até ao momento, não tem pretendido “promover
o culto da personalidade” (Riccardo Marchi, 2020, ps. 198 e 199). No entanto,
na entrevista que concedeu ao Diário de
Notícias (25/6/2020), o politólogo sustentou que o partido em causa ainda
não possui uma “coluna vertebral”, parecendo, por conseguinte, ignorar que esse
facto deriva, sobretudo, da excessiva concentração de poderes no mediático
André Ventura que, de resto, se confunde com o CHEGA. Um pouco à semelhança —
acrescentado da minha responsabilidade — do que sucedeu com o Estado Novo de
Salazar, que não se cansou de sustentar a sua suposta originalidade e no pós II
Guerra Mundial, perante a derrota dos regimes fascistas e nazi, chegou mesmo a
caracterizar-se como uma “democracia orgânica”.
No que diz respeito à distinção
apresentada entre “extrema-direita” e “direita radical”, segundo Riccardo
Marchi “o primeiro tem carácter anti-sistema e objectivos subversivos de abate
do regime vigente, através também de meios violentos”, enquanto o segundo respeita
as regras do jogo (Riccardo Marchi, 2020,
pp. 191-192). Uma distinção, de resto, presente no ideário do CHEGA: “Confunde-se
muito radicalismo com extremismo” (Programa
2019). A este respeito, importa, porém, recuperar uma das
pertinentes interrogações de André Freire, num artigo recentemente dado à
estampa: o CHEGA pretende acabar com a III República, através de um referendo
constitucional, “mas não será que tal proposta viola a ordem constitucional
vigente, democraticamente instituída”? (Jornal
de Letras, 15 a 28/7/2020).
Na página oficial do CHEGA, é
possível encontrar o Programa 2019,
um extenso documento, cujos enunciados são muitas vezes ambíguos, vagos e até
mesmo contraditórios (https://partidochega.pt/programa-politico-2019/).
Em jeito de síntese, trata-se de um conjunto de princípios neo-liberais, que
pretendem acabar com o “Estado Providência” e iniciar um processo de
privatizações (inclusive no ensino, na saúde e no património), cujo desenlace
inevitável seria colocar o destino nacional nas mãos do mercado (algo ainda
mais estranho, se pensarmos que André Ventura se assume claramente como um
nacionalista defensor da soberania nacional, uma matéria tão importante que, se
colocada em causa, o levaria até mesmo a sustentar a saída de Portugal da União
Europeia — neste domínio, será interessante mencionar que numa fase anterior o
CHEGA assumiu-se mesmo como antieuropeísta). Veja-se ainda o que figura, no
citado documento, no ponto quatro do tema Emprego: “Para que os
fluxos aumentem é necessário facilitar as contratações e isto só é possível se
os custos de «empregabilidade» – salários, restrições legais, horários de
trabalho rígidos, difícil acesso a informação, contribuições para a segurança
social e custos de despedimento – forem reduzidos”.
Face
ao exposto, conclui-se facilmente que as actuais preocupações sociais do Estado
passariam a pertencer às designadas funções “acessórias, subsidiárias e/ou
supletivas”, tendendo, portanto, para a mera residualidade. A respeito
das escolas, que poderiam ser compradas pelos professores (?!), o
CHEGA defende o “fim da aplicação das ideologias de inclusão e ideologia de género no
sistema nacional de educação, colocando-se termo à aplicação das orientações da
ONU relativamente às chamadas «questões psicológicas de transtorno de
identidade de género»”.
Entre os princípios defendidos no
aludido Programa, importará ainda
destacar: o aumento das propinas universitárias para os cursos das ciências sociais
e humanas, privilegiando, por oposição, as áreas científicas e técnicas (“as propinas
a pagar por um curso de Sociologia terão de tender para o custo real do curso”);
o alargamento do horário de trabalho dos profissionais de saúde das 35 horas
para as 40 horas; a redução dos deputados, de 230 para 100; a defesa da
tauromaquia, por oposição à eutanásia e ao aborto (que, neste último caso,
apesar de pretenderem proibir, não querem criminalizar…) e a desvalorização do
poder legislativo e executivo, em função do presidencialismo puro. Numa época
em que o poder local dos cidadãos assume cada vez maior importância, o CHEGA
preconiza, com inequívoca incoerência à mistura, a redução do número de
freguesias, sustentando ainda que todos “os ministérios e serviços
correspondentes” passem a concentrar-se “numa mesma área geográfica, de forma a
permitir uma diminuição drástica dos seus custos operacionais, bem como das
imensas horas perdidas, para a economia nacional, pelos cidadãos” (Programa 2019).
Invocando
a iminente perda da nossa identidade judaico-cristã, o CHEGA proclama o perigo
da imigração ilegal (prevê, pois, a eliminação de quaisquer apoios aos
imigrantes ilegais, que seriam deportados para os seus países de origem): “Qualquer
imigrante que tenha entrado ilegalmente em Portugal estará incapacitado, para o
resto da sua vida, para legalizar a sua situação e, portanto, a receber
qualquer auxílio da Administração” (Programa
2019). Sustenta-se também a “abolição das autorizações de
residência por razões humanitárias, redução do sistema de acolhimento de
refugiados só para menores desacompanhados e pessoas qualificadas para
protecção internacional” (Riccardo Marchi, 2020, p. 173). Enfim, coloca a
tónica na distinção entre nós, herdeiros da matriz judaico-cristã, e os outros.
Neste sentido, o islão é percepcionado como “uma ideologia político-religiosa,
totalitária e imperial […] a principal e permanente ameaça à Civilização
ocidental” (Riccardo Marchi, 2020, p. 182). Além disso, a comunidade cigana, os
homossexuais e outras minorias são frequentes alvos de crítica pública por
parte dos adeptos do CHEGA. A respeito dos homossexuais, o Programa 2019 defende o “fim da promoção, pelo Estado, de
incentivos e medidas que institucionalizem os casamentos entre homossexuais e a
adopção de crianças por «casais» homossexuais”, parecendo, no entanto, deixar
em aberto a possibilidade das uniões de facto.
O
objectivo do CHEGA é fundar a IV República em Portugal e não apenas melhorar o
sistema que existe, herdado da revolução de Abril de 1974. Por muito que os
seus dirigentes defendam que ninguém seria prejudicado, por exemplo, com as
privatizações levadas a cabo na educação (seriam atribuídos cheques-ensino, até
mesmo na Universidade), é evidente que, nesses tão ansiados novos moldes
neo-liberais, a economia de mercado aumentaria ainda mais as desigualdades
sociais.
Disse André Ventura: “Chamam-nos
fascistas, mas é por não terem noção do que é o fascismo. Só pode ser. Porque o
fascismo é o oposto do liberalismo” (Riccardo Marchi, 2020, p. 83). Nas suas
habituais arremetidas mediáticas, Ventura procura criar mundos antagónicos e
irreais, a preto e branco, esquecendo-se, no entanto, que o fascismo, enquanto
realidade histórica, da primeira metade do século XX, bem mais complexa do que
as suas palavras dão a entender, socorreu-se do grande capital. Como escreveu
Umberto Eco: “O fascismo não era uma ideologia monolítica, mas uma colagem de
diversas ideias políticas e filosóficas, uma amálgama de contradições” (Umberto
Eco, 2017, p. 17). Além disso, não deixa de ser interessante constatar que, no
que diz respeito à política orçamental, o CHEGA pretende dar prioridade
absoluta “às necessidades dos ministérios que consubstanciam as Funções Soberanas
do Estado, ou seja, Ministérios da Justiça, Administração Interna, Defesa e
Negócios Estrangeiros” (Programa 2019).
Matérias, afinal, determinantes para um maior controlo da sociedade, ou não
fosse a garantia da ordem (naquele que ainda é, contudo, um dos países mais
seguros do mundo) uma das bandeiras de marca de André Ventura.
Se, por um lado, o ideário do CHEGA
parece reivindicar uma certa “objectividade” no ensino da História: “O ensino e
a promoção, sem interferências revisionistas e ideologias que a adulterem, da
História de Portugal, alicerçadas nos Factos objectivos que a marcaram”; por
outro lado, defende um: “Sistema Educativo acessível a todos, vocacionado para
a consolidação dos valores culturais e civilizacionais judaico-cristãos, sem interferência
de correntes que se filiam na chamada «ideologia do género» e no dito «marxismo
cultural»” (Programa 2019). Ainda no
âmbito da História, tal como Riccardo Marchi recordou, o CHEGA “contesta o
enviesamento ideológico presente, por exemplo, na estigmatização da secular
expansão ultramarina e na visão unilateral do 25 de Abril” (Riccardo
Marchi, 2020, p. 95). Temos, pois, o ensino “objectivo” da História, mas com base na
matriz da identidade portuguesa imaginada e oficializada pelo CHEGA, que, como
já tivemos oportunidade de verificar, pretende eliminar a escola pública —
aquela que, com todos os defeitos, ainda permanece como uma das grandes
conquistas da revolução de Abril. Eis, por conseguinte, um amontoado de
incoerências, contradições e ambiguidades, que permitem todo o tipo de leituras
e perniciosos desenvolvimentos futuros.
É altura de dizer que, de acordo com
a minha interpretação, o CHEGA é um partido de extrema-direita. Aliás, Ventura
“reconhece publicamente a sua proximidade ao Vox espanhol e à Lega italiana” (Riccardo
Marchi, 2020, p. 149). No pretérito dia 2 de Julho, vários órgãos da imprensa, entre os
quais O Observador, noticiaram que: “O
Chega aceitou o convite para aderir ao grupo europeu Identidade e Democracia
(ID), que integra partidos de extrema-direita”. O Observador transcreveu mesmo as reacções de Ventura: “Nós
tínhamos já feito alguns contactos europeus. Tivemos primeiro uma maior
aproximação ao grupo onde está o Vox, mas o desenvolvimento dos contactos
internacionais aproximou-nos mais, quer do partido de Matteo Salvini, quer
da Frente Nacional francesa”.
Entre as
referências políticas de Ventura encontram-se Beppe Grillo e o Movimento 5
Estrelas, bem como Donald Trump (Riccardo Marchi, 2020, p. 147). Importa,
pois, reconhecer que, contrariando a tese de Riccardo Marchi, a “Nova Direita
Radical” não é mais do que a velha extrema-direita, travestida de algumas
supostas alterações, mas que continua a alimentar-se do medo reinante nos povos, o qual, por sua vez, fomenta o ódio entre as pessoas.
São, afinal, evidentes as contradições e ambiguidade que atravessam o ideário
do CHEGA e que se espelham nas práticas do próprio líder: acérrimo defensor da
exclusividade de funções dos deputados, André Ventura apenas passou, de acordo
com a biografia constante na página do Parlamento, a cumpri-la muito
recentemente, pois até ao dia 30 de Junho de 2020 exerceu funções de consultor
na Finpartner, SA (https://www.parlamento.pt/DeputadoGP/Paginas/Biografia.aspx?BID=6535).
Isto para já não falar, claro, das contradições, que o próprio reconheceu,
entre as ideias sustentadas na sua tese de doutoramento e as ideias políticas actualmente
defendidas pelo mesmo, bem como o apoio da Igreja Maná à sua causa. Mas, como é
evidente, os apoiantes do CHEGA poderão sempre dizer que isso são pormenores e
que o programa do partido (dotado de uma ideologia supostamente flexível) irá
ser clarificado, pois está a ser interpretado de modo erróneo. Certo é que,
enquanto se levanta a dúvida e também graças às circunstâncias dramáticas que
se avizinham (com o desemprego a atingir números assustadores) e também,
importa sublinhá-lo, devido a estudos pouco rigorosos como o do
historiador-politólogo Riccardo Marchi, continuarão a chegar novos filiados ao
CHEGA; e as Presidenciais e as Autárquicas serão já em 2021... Como André
Freire teve oportunidade de escrever, em muitos casos, o estudo de Marchi “destaca-se
pouco da forma como o partido se apresenta a si próprio na arena política, ou
problematiza pouco ou nada determinadas contradições insanáveis nas suas
propostas” (Jornal de Letras, 15 a
28/7/2020). Além disso, continuando a seguir as palavras de André Freire, a
obra de Marchi, apesar de ser importante para compreender, por exemplo, a
evolução do partido de André Ventura, foi elaborada fundamentalmente a partir
de um conjunto de entrevistas a dirigentes do CHEGA e no “escrutínio de
documentos do partido e de peças jornalísticas”, sendo de realçar a ausência de
“bibliografia académica” indispensável, de resto, para um estudo
historiográfico.
As previsões demográficas mais
recentes calculam que Portugal continuará a perder população a um ritmo
assustador: “há 23 nações, incluindo
Portugal e Espanha, que devem ter metade da população em 2100” (RTP, 15/7/2020).
Nesse sentido, como escreveu Milton Blay: “A história do mundo é uma história
das migrações e querer fechar fronteiras é uma tentativa de contrariar a
natureza humana, sobretudo em uma época em que a Europa envelhece e vive em deficit
demográfico crónico, precisando do aporte de estrangeiros” (Milton Blay, 2019,
s/p). Num país fortemente marcado pela emigração como é Portugal (que ainda
permanece como um dos mais seguros do mundo), não deixa de ser curioso
verificar até que ponto o discurso propagandístico de Ventura tem vindo a
colher votos, a ponto de as sondagens já colocarem o CHEGA como a terceira
força partidária nacional. Algo que a crise económico-financeira e social
dinamitada pela pandemia tenderá ainda a fazer aumentar nos próximos anos, um
pouco à semelhança do que ocorreu no século passado com a Grande Depressão. Isto
para já não falar nos inúmeros exemplos de ineficácia da justiça perante a
corrupção...
Numa época
em que a União Europeia corre o risco de desmoronar-se, em que os Estados
Unidos deixaram de ser reconhecidos como o farol do mundo e que espreita a
provável segunda vaga da COVID-19, tudo pode acontecer (aliás, o líder do PSD, Rui
Rio, até já admitiu a possibilidade de futuras “conversações com o Chega”,
apesar de reconhecer tratar-se de “um partido marcadamente de direita, em
muitos casos de extrema-direita”: Público,
30/7/2020). As palavras do historiador Yuval Noah Harari parecem-me cada vez
mais significativas: a estupidez humana não pode ser subestimada…
Como escreveu Umberto Eco, seria “tão
confortável para nós se alguém assomasse à cena do mundo e dissesse: «Quero
reabrir Auschwitz, quero que as camisas negras tornem a desfilar em parada
pelas praças italianas!» Mas, ai, a vida não é assim tão fácil. O Ur-Fascismo
ainda pode voltar sob as vestes mais inocentes. O nosso dever é desmascará-lo e
apontar a dedo cada uma das suas novas formas — diariamente, em todo o mundo”
(Umberto Eco, 2017, p. 29).
Os muros da
extrema-direita entre nós e os outros, por muito tentadores que se apresentem nas
redes sociais, serão novamente pagos com o sangue de milhões de seres humanos…
Referências
bibliográficas: Milton Blay ― A Europa
Hipnotizada. A escalada da extrema-direita, São Paulo, editora Contexto,
2019; Riccardo
Marchi ― A Nova Direita Anti-Sistema. O caso do CHEGA,
1.ª edição, Lisboa, Edições 70, 2020; Umberto Eco — Como reconhecer o Fascismo. Da diferença
entre migrações e emigrações, Lisboa, Relógio D’Água, 2017.
Renato
Nunes (renato80rd8918@gmail.com)
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