Em
Maio de 1944, Alves Redol foi preso pela polícia política do Estado Novo e
encaminhado para a prisão de Caxias. Em 1963, voltou a ser detido pela PIDE e
levado para o Aljube, em Lisboa. Do seu currículo fazem também parte várias
obras apreendidas e a obrigatoriedade de, pelo menos a partir de 1943/1944,
enviar todos os seus livros à censura prévia. Destacado membro do PCP, integrou
o Movimento de Unidade Democrática, logo em 1945, e foi um dos grandes
escritores do século XX, cujas obras conheceram tiragens invulgares para a sua
época, caso d’A Barca dos Sete Lemes,
em 1958, com 5000 exemplares ou O Cavalo Espantado,
em 1960, com 6000 exemplares. Eis, por conseguinte, alguns ingredientes que me
levaram a aceitar o repto de um leitor para redigir este breve artigo.
Alves
Redol nasceu em Vila Franca de Xira, em 29 de Dezembro de 1911, e faleceu, com
57 anos, em 29 de Novembro de 1969, no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, na
sequência de um cancro recentemente diagnosticado. O contacto, durante a
infância, com familiares ferreiros e camponeses, bem como a sua passagem por
Angola (1928-1931), onde contraiu malária, irão marcá-lo profundamente. Além de
uma intensa actividade literária, ao longo da sua vida desempenhou várias
funções ligadas ao comércio, à publicidade e à intervenção cívica e cultural,
organizando, por exemplo, bibliotecas populares ou passeios culturais e
proferindo palestras.
Apontado
como o autor da obra que marcou o início do neo-realismo em Portugal (Gaibéus: 1939), Alves Redol
embrenhava-se na realidade, estudando-a minuciosamente antes de procurar
escrever o que quer que fosse. Daí que as suas palavras sejam atravessadas pela
dureza que marcava a vida dos trabalhadores durante o Estado Novo, mas também pela
condenação das injustiças sociais e políticas que tanto atormentavam o escritor.
Em
15 de Fevereiro de 1940, um relatório da censura pronunciava-se do seguinte
modo em relação a Gaibéus: “Este
romance que revela um autor de forte poder de análise, descreve a vida do
trabalhador humilde do norte que vem trabalhar para as ceifas do arroz no
Ribatejo. A sua vida de sacrifício, os aspectos dolorosos do seu desconforto, o
cansaço e o desalento do trabalho ao sol forte da canícula, são bem retratados nesta
obra que se impõe pelo seu recorte literário. […] Há, porém, páginas neste
livro que chocam pelo realismo, que nalgumas se transforma em pornografia e
prejudicam o seu incontestável valor” (https://ephemerajpp.com). Pese embora o
deslumbramento do censor pelas páginas analisadas, a obra foi proibida em 26 de
Abril de 1940 (nesta época, Redol ainda não enviava os livros à censura prévia)
e a 2.ª edição apenas foi autorizada em 1 de Junho de 1949.
Permita-se-nos
também destacar aqui aquela que, de acordo com o consagrado historiador da
Literatura Óscar Lopes, pode ser considerada a obra-prima de Redol: Barranco de Cegos (1961). Dado à estampa
nesse ano horribilis de Salazar (marcado,
por exemplo, pelo início da guerra colonial, pelo assalto ao Paquete Santa Maria,
pela Abrilada ou pelo Golpe de Beja), o enredo da obra de Redol desenrola-se em
torno do latifundiário Diogo Relvas, que, entre o final do século XIX e a
primeira metade da centúria seguinte, assiste ao crepúsculo do velho mundo em
que tinha sido educado: a crise da Monarquia Constitucional, a propagação do
republicanismo, a lenta industrialização do país, a ditadura de João Franco, o
regicídio e, entre outros, a árdua luta pelos emergentes direitos sociais da
classe trabalhadora.
Perante
o iminente desmoronar desse velho mundo, o leitor acompanha a luta do poderoso
terratenente Diogo Relvas, em pleno Ribatejo, para conservar o seu prestígio e
poder, perpetuando-os nas próximas gerações. E para evitar a anarquia que as
indústrias, o progresso, a instrução, a imprensa e os sindicatos agrícolas
iriam supostamente trazer, o latifundiário não hesita em defender soluções mais
musculadas (leia-se, absolutistas e ditatoriais), como sejam o facto de ter
ordenado a morte de um dos seus criados porque este envolvera-se sexualmente com
a sua filha Maria do Pilar. Eis as ordens que dá a esse respeito ao mercenário
de serviço: “— Fá-lo sentir bem a morte. Não tenhas pressa. E corta-lhe as
partes à navalha. Corta-lhas e mete-as no estrume. […] Ou mete-lhas na boca…
Sim, na boca, se lha conseguires abrir”.
Além
de ser um homem poderoso, trata-se, contudo, de um lavrador que é também
conhecido entre os populares pela sua bondade e sensibilidade, características
bem evidentes quando — comovido com os pedidos da mulher do lavrador Tóino
Valador — recua na decisão de expulsar esta numerosa e pobre família da sua
casa em Aldebarã e se predispõe mesmo ajudá-los.
Assim,
à semelhança da sua conturbada época, Diogo Relvas, “o Rei dos Lavradores”
(único título pelo qual gostava de ser conhecido), é também uma personagem sólida
e profundamente complexa, a fazer lembrar o inesquecível príncipe de Salina, Dom
Fabrízio, do romance de Tomasi di Lampedusa: O Leopardo (1958). Afinal, ambos compreendem que vivem numa época
de charneira, com o iminente desmoronar de um mundo velho. Todavia, apenas o
aristocrata italiano Dom Fabrízio tem a capacidade de adaptar-se aos novos
tempos.
Quanto
ao conservador português Diogo Relvas, depois de mandar assassinar o criado que
se envolvera com a filha, condena-a à reclusão, em Cuba (Alentejo), e
posteriormente recusa mesmo participar no seu funeral. Mas será um humilde
caiador, de nome Norberto, a conseguir fazer cair o latifundiário do seu pedestal,
quando se recusa cumprir a ordem que o poderoso terratenente repetidamente lhe
dava: entrar na taberna e pedir que lhe trouxessem os jornais. Eis a
desafiadora resposta do trabalhador ao poderoso: “— Ouvi, sim, ouvi. Mas estou
cá a pensar… Sim, estou a pensar porque diabo não hás-de tu apear-te da pileca
e ires tratar duma coisa que é a tua…”
Assim
se desmoronava o mundo de Diogo Relvas, humilhado em público por um humilde caiador
que ousou pensar pela própria cabeça. Nesta sequência, o latifundiário acabou
por isolar-se na “Torre dos quatro ventos”, refúgio familiar onde ia, sobretudo
nos momentos mais difíceis, consultar os seus antepassados já falecidos. Lá
acabará por morrer, enquanto o sobrinho Rui Diogo encontra uma hábil estratégia
para perpetuar durante vários anos a vida do falecido e, consequentemente, o
seu próprio poder. E talvez seja esta permanente luta pelo poder que possa ser
considerada o motor da História, como escreveu Marx, mas também desta notável
obra literária publicada em pleno Estado Novo salazarista.
Hoje,
numa época de forçada reclusão e de ensino a distância, seria fundamental que
os portugueses regressassem aos grandes clássicos da literatura, entre os quais
figura por direito próprio este romance de Alves Redol. De resto, tenho para
mim que o país ganharia muito mais se os professores portugueses tivessem a
possibilidade de aproveitar o que resta do presente ano lectivo para incentivar
os seus alunos (logo a partir do 2.º ciclo) a lerem esta e outras obras, em
detrimento de insistirem na tremenda parafernália de fichas de trabalho e mais instrumentos
de avaliação prenhes de intricadas funções gramaticais e outras quejandas
parvoíces que apenas têm o condão de matar ainda mais o gosto pela escola e
pelo conhecimento, além, evidentemente, de contribuírem para agravar as
assimetrias sociais e culturais entre os que nasceram num “berço de ouro” e os
que tiveram a infelicidade de pertencer ao grupo dos que continuam a não ter
voz para fazer escutar os seus problemas.
Alves
Redol e os escritores neo-realistas fazem-nos falta. As suas palavras sabem a
realidade, ajudam-nos a tomar consciência do que sucede diariamente à nossa
volta e, além disso, alimentam a alma com um dos mais preciosos bens da vida, a
beleza. Também por isso, deixo um convite ao leitor. Assista em família à
representação da peça “Uma sementinha cheia de histórias” (encenação de José
Teles a partir da obra infantil A Vida Mágica
da Sementinha, dada à estampa por Redol em 1956). O Museu do neo-realismo, em
Vila Franca de Xira, disponibiliza-a on-line
(http://www.museudoneorealismo.pt/pages/1367?event_id=11297). E, claro, quando
as circunstâncias o permitirem, caso tenha oportunidade, não deixe de visitar
este fantástico Museu na cidade natal de Alves Redol, onde poderá recordar,
entre outras, essa batalha pelo “conteúdo” que os neo-realistas portugueses
empreenderam a partir da década de 30 do século passado. Uma batalha que ainda
continua actual, para evitar a epígrafe de São Mateus que Redol simbolicamente
colocou no pórtico do seu romance Barranco
de Cegos: “Deixai-os; cegos são e condutores de cegos; e se um cego guia a
outro cego, ambos vêm a cair no barranco”. Afinal, como escreveu o padre
António Vieira: “Não pode haver maior cegueira, nem mais cega, que ser um homem
cego e cuidar que o não é”.
Os
livros de Redol, Soeiro Pereira Gomes, Aquilino, Torga, Namora e muitos outros
poderão abrir os olhos a muita gente. Resta é perceber se isso continua a
interessar a quem nos governa ou pretende vir a governar…
Renato Nunes (renato80rd8918@gmail.com)
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