segunda-feira, 11 de maio de 2020

Alves Redol: ensinar o Povo ao Povo



Em Maio de 1944, Alves Redol foi preso pela polícia política do Estado Novo e encaminhado para a prisão de Caxias. Em 1963, voltou a ser detido pela PIDE e levado para o Aljube, em Lisboa. Do seu currículo fazem também parte várias obras apreendidas e a obrigatoriedade de, pelo menos a partir de 1943/1944, enviar todos os seus livros à censura prévia. Destacado membro do PCP, integrou o Movimento de Unidade Democrática, logo em 1945, e foi um dos grandes escritores do século XX, cujas obras conheceram tiragens invulgares para a sua época, caso d’A Barca dos Sete Lemes, em 1958, com 5000 exemplares ou O Cavalo Espantado, em 1960, com 6000 exemplares. Eis, por conseguinte, alguns ingredientes que me levaram a aceitar o repto de um leitor para redigir este breve artigo.
Alves Redol nasceu em Vila Franca de Xira, em 29 de Dezembro de 1911, e faleceu, com 57 anos, em 29 de Novembro de 1969, no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, na sequência de um cancro recentemente diagnosticado. O contacto, durante a infância, com familiares ferreiros e camponeses, bem como a sua passagem por Angola (1928-1931), onde contraiu malária, irão marcá-lo profundamente. Além de uma intensa actividade literária, ao longo da sua vida desempenhou várias funções ligadas ao comércio, à publicidade e à intervenção cívica e cultural, organizando, por exemplo, bibliotecas populares ou passeios culturais e proferindo palestras.
Apontado como o autor da obra que marcou o início do neo-realismo em Portugal (Gaibéus: 1939), Alves Redol embrenhava-se na realidade, estudando-a minuciosamente antes de procurar escrever o que quer que fosse. Daí que as suas palavras sejam atravessadas pela dureza que marcava a vida dos trabalhadores durante o Estado Novo, mas também pela condenação das injustiças sociais e políticas que tanto atormentavam o escritor.
Em 15 de Fevereiro de 1940, um relatório da censura pronunciava-se do seguinte modo em relação a Gaibéus: “Este romance que revela um autor de forte poder de análise, descreve a vida do trabalhador humilde do norte que vem trabalhar para as ceifas do arroz no Ribatejo. A sua vida de sacrifício, os aspectos dolorosos do seu desconforto, o cansaço e o desalento do trabalho ao sol forte da canícula, são bem retratados nesta obra que se impõe pelo seu recorte literário. […] Há, porém, páginas neste livro que chocam pelo realismo, que nalgumas se transforma em pornografia e prejudicam o seu incontestável valor” (https://ephemerajpp.com). Pese embora o deslumbramento do censor pelas páginas analisadas, a obra foi proibida em 26 de Abril de 1940 (nesta época, Redol ainda não enviava os livros à censura prévia) e a 2.ª edição apenas foi autorizada em 1 de Junho de 1949.
Permita-se-nos também destacar aqui aquela que, de acordo com o consagrado historiador da Literatura Óscar Lopes, pode ser considerada a obra-prima de Redol: Barranco de Cegos (1961). Dado à estampa nesse ano horribilis de Salazar (marcado, por exemplo, pelo início da guerra colonial, pelo assalto ao Paquete Santa Maria, pela Abrilada ou pelo Golpe de Beja), o enredo da obra de Redol desenrola-se em torno do latifundiário Diogo Relvas, que, entre o final do século XIX e a primeira metade da centúria seguinte, assiste ao crepúsculo do velho mundo em que tinha sido educado: a crise da Monarquia Constitucional, a propagação do republicanismo, a lenta industrialização do país, a ditadura de João Franco, o regicídio e, entre outros, a árdua luta pelos emergentes direitos sociais da classe trabalhadora.
Perante o iminente desmoronar desse velho mundo, o leitor acompanha a luta do poderoso terratenente Diogo Relvas, em pleno Ribatejo, para conservar o seu prestígio e poder, perpetuando-os nas próximas gerações. E para evitar a anarquia que as indústrias, o progresso, a instrução, a imprensa e os sindicatos agrícolas iriam supostamente trazer, o latifundiário não hesita em defender soluções mais musculadas (leia-se, absolutistas e ditatoriais), como sejam o facto de ter ordenado a morte de um dos seus criados porque este envolvera-se sexualmente com a sua filha Maria do Pilar. Eis as ordens que dá a esse respeito ao mercenário de serviço: “— Fá-lo sentir bem a morte. Não tenhas pressa. E corta-lhe as partes à navalha. Corta-lhas e mete-as no estrume. […] Ou mete-lhas na boca… Sim, na boca, se lha conseguires abrir”.
Além de ser um homem poderoso, trata-se, contudo, de um lavrador que é também conhecido entre os populares pela sua bondade e sensibilidade, características bem evidentes quando — comovido com os pedidos da mulher do lavrador Tóino Valador — recua na decisão de expulsar esta numerosa e pobre família da sua casa em Aldebarã e se predispõe mesmo ajudá-los.
Assim, à semelhança da sua conturbada época, Diogo Relvas, “o Rei dos Lavradores” (único título pelo qual gostava de ser conhecido), é também uma personagem sólida e profundamente complexa, a fazer lembrar o inesquecível príncipe de Salina, Dom Fabrízio, do romance de Tomasi di Lampedusa: O Leopardo (1958). Afinal, ambos compreendem que vivem numa época de charneira, com o iminente desmoronar de um mundo velho. Todavia, apenas o aristocrata italiano Dom Fabrízio tem a capacidade de adaptar-se aos novos tempos.
Quanto ao conservador português Diogo Relvas, depois de mandar assassinar o criado que se envolvera com a filha, condena-a à reclusão, em Cuba (Alentejo), e posteriormente recusa mesmo participar no seu funeral. Mas será um humilde caiador, de nome Norberto, a conseguir fazer cair o latifundiário do seu pedestal, quando se recusa cumprir a ordem que o poderoso terratenente repetidamente lhe dava: entrar na taberna e pedir que lhe trouxessem os jornais. Eis a desafiadora resposta do trabalhador ao poderoso: “— Ouvi, sim, ouvi. Mas estou cá a pensar… Sim, estou a pensar porque diabo não hás-de tu apear-te da pileca e ires tratar duma coisa que é a tua…”
Assim se desmoronava o mundo de Diogo Relvas, humilhado em público por um humilde caiador que ousou pensar pela própria cabeça. Nesta sequência, o latifundiário acabou por isolar-se na “Torre dos quatro ventos”, refúgio familiar onde ia, sobretudo nos momentos mais difíceis, consultar os seus antepassados já falecidos. Lá acabará por morrer, enquanto o sobrinho Rui Diogo encontra uma hábil estratégia para perpetuar durante vários anos a vida do falecido e, consequentemente, o seu próprio poder. E talvez seja esta permanente luta pelo poder que possa ser considerada o motor da História, como escreveu Marx, mas também desta notável obra literária publicada em pleno Estado Novo salazarista.
Hoje, numa época de forçada reclusão e de ensino a distância, seria fundamental que os portugueses regressassem aos grandes clássicos da literatura, entre os quais figura por direito próprio este romance de Alves Redol. De resto, tenho para mim que o país ganharia muito mais se os professores portugueses tivessem a possibilidade de aproveitar o que resta do presente ano lectivo para incentivar os seus alunos (logo a partir do 2.º ciclo) a lerem esta e outras obras, em detrimento de insistirem na tremenda parafernália de fichas de trabalho e mais instrumentos de avaliação prenhes de intricadas funções gramaticais e outras quejandas parvoíces que apenas têm o condão de matar ainda mais o gosto pela escola e pelo conhecimento, além, evidentemente, de contribuírem para agravar as assimetrias sociais e culturais entre os que nasceram num “berço de ouro” e os que tiveram a infelicidade de pertencer ao grupo dos que continuam a não ter voz para fazer escutar os seus problemas.
Alves Redol e os escritores neo-realistas fazem-nos falta. As suas palavras sabem a realidade, ajudam-nos a tomar consciência do que sucede diariamente à nossa volta e, além disso, alimentam a alma com um dos mais preciosos bens da vida, a beleza. Também por isso, deixo um convite ao leitor. Assista em família à representação da peça “Uma sementinha cheia de histórias” (encenação de José Teles a partir da obra infantil A Vida Mágica da Sementinha, dada à estampa por Redol em 1956). O Museu do neo-realismo, em Vila Franca de Xira, disponibiliza-a on-line (http://www.museudoneorealismo.pt/pages/1367?event_id=11297). E, claro, quando as circunstâncias o permitirem, caso tenha oportunidade, não deixe de visitar este fantástico Museu na cidade natal de Alves Redol, onde poderá recordar, entre outras, essa batalha pelo “conteúdo” que os neo-realistas portugueses empreenderam a partir da década de 30 do século passado. Uma batalha que ainda continua actual, para evitar a epígrafe de São Mateus que Redol simbolicamente colocou no pórtico do seu romance Barranco de Cegos: “Deixai-os; cegos são e condutores de cegos; e se um cego guia a outro cego, ambos vêm a cair no barranco”. Afinal, como escreveu o padre António Vieira: “Não pode haver maior cegueira, nem mais cega, que ser um homem cego e cuidar que o não é”.
Os livros de Redol, Soeiro Pereira Gomes, Aquilino, Torga, Namora e muitos outros poderão abrir os olhos a muita gente. Resta é perceber se isso continua a interessar a quem nos governa ou pretende vir a governar…  
Renato Nunes (renato80rd8918@gmail.com) 

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