sábado, 30 de janeiro de 2021

O passaporte da minha avó Autor: Renato Nunes

Tenho à minha frente o passaporte da minha avó materna, nascida em 1911, ano em que foi publicada a lei da separação das Igrejas do Estado. O referido passaporte, emitido na década de 30 do século passado, invoca as viagens marítimas realizadas entre Portugal e o Brasil (Santos), contendo os necessários carimbos da polícia política do Estado Novo (à época designada Polícia de Vigilância e Defesa do Estado). O regresso definitivo ao território nacional ocorreu entre os derradeiros dias de Agosto e o início de Setembro de 1939. Eis, por conseguinte, a minha avó no meio do Atlântico, provavelmente temerosa com a passagem do Equador, enquanto deflagrava a II Guerra Mundial (1 de Setembro).

Chegava, assim, ao fim uma aventura iniciada uns anos antes, em circunstâncias pouco ou nada favoráveis, pois o crash da bolsa de Nova Iorque, em 1929, desencadeara uma das maiores crises financeiras, políticas e sociais, com ramificações a nível mundial. O repatriamento para Portugal, enquanto “indigente” (como figura no passaporte), comprova o que acabei de dizer. Alguns meses depois nasceria a minha mãe, filha de mãe solteira e de pai incógnito, numa remota aldeia do interior beirão. E penso que não serão necessárias mais palavras para o leitor imaginar o profundo estigma que à época recaiu sobre essa mulher recém-chegada do Brasil, de olhos castanhos, com 1,51m de altura e, como era comum na época, sem nunca ter desfrutado do privilégio de frequentar a escola para aprender a ler e a escrever…

Enquanto jovem, mal tive a oportunidade de conhecer a minha avó materna, mas hoje, já na casa dos 40, penso muitas vezes nesta destemida mulher e no drama da sua vida, passada a tratar das pesadas lides domésticas e agrícolas, próprias ou alheias, para à noite regressar a um casebre de granito, sem água, sem luz ou gás, onde o vento e a chuva faziam sentir a sua presença. Mas sempre com os velhos baús de madeira, vindos do Brasil, presentes no espaço nobre da sala improvisada... 

À medida que os anos transcorrem, o estudo do indivíduo e das suas circunstâncias insiste em fascinar-me cada vez mais. O exercício biográfico proporciona-nos, desde logo, um “encontro” com o ser humano, nas suas várias facetas e realidades quotidianas, quer enquanto personalidade pública ou simples cidadão anónimo. Quando se estuda um Homem, o local e o global entrelaçam-se de um modo tão inextricável, que é impossível compreender um sem mobilizar o outro. O exemplo concreto da minha avó e das circunstâncias dramáticas nas quais o mundo estava mergulhado quando ela procurou viver a aventura do Brasil poderão ajudar o leitor a compreender melhor o que pretendo afirmar. Outro exemplo concreto poderia passar pela participação dos portugueses na I Guerra Mundial: imaginar um dos meus conterrâneos beirões, “serranos”, nas trincheiras da Flandres, entre 1917 e 1918, é um pouco como se me fosse permitido contemplar o momento em que a história do indivíduo e a história do mundo deram as mãos (a obra de Isabel Pestana Marques — Das Trincheiras com saudade — é a este respeito uma sugestão de leitura incontornável).

É nesta mesma linha que gostaria de partilhar o entusiasmo que vivi recentemente, enquanto lia sofregamente um livro intitulado História Global de Portugal, dirigido por Carlos Fiolhais, José Eduardo Franco e José Pedro Paiva. Trata-se de um conjunto de 93 textos produzidos por cerca de 80 autores, integrados em cinco partes aglutinadoras: Pré e Proto-História, Antiguidade, Idade Média, Época Moderna e Época Contemporânea.

Um dos aspectos surpreendentes da obra, com um total de 660 páginas, reside, desde logo, na sua estrutura coerente e rara limpidez textual. Os textos individuais, com cerca de seis páginas, podem ser lidos nos momentos mais banais do quotidiano, trazendo-nos um conjunto de sínteses, que colocam em causa vários mitos que continuam erradamente a ser repetidos até à exaustão. Apenas alguns exemplos: a associação simplista dos Montes Hermínios à Serra da Estrela, bem como da Lusitânia ao actual território português ou até mesmo a pouco sustentada associação de Fernão Magalhães a um suposto projecto de circum-navegação do Mundo, quando, de acordo com as fontes disponíveis, o seu objectivo passou isso sim por atingir as Molucas (ou ilhas de “Maluco”), na Indonésia. Poderia também destacar teses particularmente interessantes, como sejam as sucessivas movimentações humanas, já desde a Pré-História, a emissão de gás metano antes da Revolução Industrial (século XVIII), o entrelaçamento entre o mundo atlântico e o mundo mediterrânico, pelo menos desde a Idade do Bronze (III milénio a.C.), bem como alguns apontamentos interessantes a respeito da presença dos Viquingues no território que actualmente integra Portugal ou ainda um actual exercício de síntese a respeito da peste negra, no século XIV, que teria provocado a morte de aproximadamente 50 milhões de pessoas, das cerca de 80 milhões que à época viveriam na “Europa” (p. 272), bem como uma interessante entrada sobre o estudo da cultura do arroz em Portugal (pp. 347-351).

Este esforço, ainda pouco comum mesmo na comunidade científica nacional, de congregar um número elevado de investigadores à volta de um projecto comum, procurando entrelaçar o local e o global afigura-se-me meritório, sendo que a obra em causa passa a constituir uma ferramenta de trabalho quase obrigatória, quer na mesa de outros investigadores, professores ou simples curiosos pela compreensão do mundo em que vivem.

A reflexão que agora procuro desenvolver ajuda-me também a recordar um antigo professor universitário chamado Saul António Gomes, um historiador especializado na Época Medieval, ao qual, se bem me lembro, ouvi repetidamente — durante as aulas de Paleografia e Diplomática — sustentar que era forçoso ultrapassar a velha dicotomia entre o local e o nacional/mundial, pois os designados “estudos locais” ainda eram frequentemente percepcionados de um modo particularmente pejorativo. Não posso assegurar que eram exactamente aquelas as palavras utilizadas pelo aludido docente, mas aquela ideia continua, cerca de duas décadas depois, bem presente no meu espírito e esta também é, por conseguinte, uma das melhores homenagens, que, segundo creio, posso continuar a prestar-lhe.

Entre os aspectos mais discutíveis da obra, talvez seja importante destacar os seguintes: associação, frequentemente forçada, do tema em estudo a um suposto e quase obsessivo carácter global, o que, como teve oportunidade de assinalar Diogo Rama Curto numa crítica particularmente incisiva (p. 401), se traduziu, por vezes, em exercícios que roçam o anacronismo; uma perspectiva, porventura, demasiado decalcada da interpretação eclesiástica do fenómeno das “Aparições” de Fátima (1917), apresentada pelo historiador do Departamento de Estudos do Santuário de Fátima, Marco Daniel Duarte (pp. 573-578), parecendo ignorar, por exemplo, a transformação da própria mensagem apresentada pela Igreja Católica (os designados “segredos”) ao longo do século XX (ver, a este respeito, os estudos do historiador Luís Filipe Torgal ou numa perspectiva mais teológica as obras do proscrito padre Mário de Oliveira, bem como os “inflamados” textos de Tomás da Fonseca). Destaque-se, ainda, a quase omissão dos Açores (abordados superficialmente), que, à semelhança do que sucedeu com a Madeira, bem mereciam um texto individualizado; a integração do Estado Novo, num período situado logo a partir de 1928 (p. 359), o que, em certo sentido, escamoteia as especificidades da Ditadura Militar/Nacional (1926-1932); a ausência de notas de rodapé, o que se por um lado permite uma leitura mais fluida dos textos, por outro lado impede a confirmação dos elementos mencionados e, neste sentido, dificulta o trabalho de outros investigadores que pretendam debruçar-se sobre o tema.

Estes e outros aspectos da obra, que mereciam ser discutidos e aprofundados, não obscurecem, no entanto, o seu inestimável valor e pertinência, justificando-se plenamente a sua leitura. Afinal, os tempos que vivemos revelam-se cada vez mais incertos e com perigosas e assustadoras similitudes com as décadas de 20 e 30 do século passado, no decurso das quais milhões de pessoas ansiaram por um salvador, que destruísse o sistema e voltasse a construir, do vazio, um mundo perfeito. O resultado monstruoso desse passado já muitos de nós o conhecem, mas qual será o resultado deste presente que agora vivemos? Qual será o desfecho desta tendência assustadora que leva a que, em várias freguesias portuguesas, a extrema-direita se torne numa das forças políticas mais votadas?

Os argumentos, os não-argumentos, a hipocrisia e a loucura dos novos potenciais ditadores que por aí pululam, alimentados pelos dramas que estamos a viver, apenas poderão ser combatidos com mais conhecimento científico e políticas inclusivas. Eu não conheço outra ferramenta que possa ajudar-nos tanto nesse combate como a História. É também por isso que, apesar de as contingências da vida me terem forçado a procurar a sobrevivência para além das suas fronteiras profissionais, continuo frequentemente a agradecer o privilégio de poder estudá-la. A agradecer a todos aqueles que me ajudaram a amá-la, em especial aos professores com os quais tive a sorte de cruzar-me. É também graças a essa ciência-narrativa que pude e posso diariamente compreender melhor aqueles que me rodeiam e rodearam, como a minha querida e saudosa avó materna, que um dia rumou para o sonho do Brasil, em busca de uma vida melhor, mas poucos anos depois foi forçada, também pelo terrível poder da crise global, a regressar ao país natal, no navio “Highland Princess” e a enfrentar uma sociedade ultraconservadora e machista, onde a mãe solteira era frequentemente alvo da chacota e da exclusão social…

Mais do que através de leis e mais papéis, a inclusão constrói-se com conhecimento e sabedoria, algo que dificilmente se poderá separar da História. Ignorar isto é continuar a alimentar os extremismos. E quem alimenta monstros, acaba por ser devorado por eles — é apenas uma questão de tempo…       

Referências bibliográficas: Carlos Fiolhais, José Eduardo Franco e José Pedro Paiva (direcção) — História Global de Portugal, 1.ª edição, Lisboa, Temas e Debates, 2020.

 

Renato Nunes (renato80rd8918@gmail.com)

2 comentários:

Tiago Sousa disse...

Caro amigo ler os teus textos é sempre um prazer imenso.

Conhecer a História ajuda-me a perceber melhor o que estamos a passar atualmente. Assusta-me os tempos que aí vêm, a crise política económica e social.

O nascimento dos movimentos de extrema direita acontecem pelo descontentamento popular que lhe abre as portas ao poder.
Um discurso simples e percetível por todos ajuda a alastrar ideologias tão prejudiciais.
Nas primeiras semanas de janeiro tive discussões com um número elevado de alunos que iam voltar "Chega" apenas por causa dos ciganos e do RSI. Enfim vêm apenas o problema de uma forma muito redutora e superficial. Comecei por lhes explicar que a entrada do chega culminaria com a saída da União Europeia e o consequente empobrecimento do país. Bem depois vi que os meus argumentos não mudaram em nada as suas convicções e falei-lhes que caso o "Chega" chegue ao poder os cursos profissionais, CEF e outros são os primeiros a acabar e no futuro apenas estuda quem tiver posses financeiras.
Lá consegui que eles refletissem um pouco mas muito provavelmente não consegui que eles alterassem o destino do seu volto.
Grande Abraço amigo

Renato Nunes disse...

Estimado Amigo
Agradeço as tuas palavras.
Vivemos tempos muito complicados, mas é fundamental manter viva a luz da esperança.

Abraço.