sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Quantas sardinhas cabem numa lata? (asas para poetas analfabetos)- Jornal Expresso

A poesia está antes de aprender a Juntar as letras. É a maior lição do "o Poeta Faz-se, iniciativa que, em Matosinhos, foi descobrir os poetas por trás de quem é adulto, a aprender a ler e a escrever


Três! Júlia tem a certeza. A pergunta da formadora parece que foi feita para si, que ainda ontem abriu uma lata de sardinhas. Vinham lá três, só, e picantes, em molho de tomate, junto com “um jindungo deste tamanho”. Com as mãos, estabelece um comprimento exagerado enquanto a entoação lhe foge para mostrar que o achou isso mesmo, exagerado, para uma lata só com três sardinhas. A professora escreve:

“Três sardinhas numa lata

Com um jindungo deste tamanho”

“Isto ainda não rima, mas depois nós damos a volta”, antecipa Maria David. As regras para rimar poemas, que havia ensinado nas duas aulas passadas, não estavam a ser, para já, ali aplicadas, pensava alto, alheia a Júlia, que continuava numa descrição empolgada da lata para mostrar indignação com a falta de peixe nela. “Conclusão: o piripiri era mais do que as sardinhas”.

Alguém bate à porta da sala de aula. É Albina. Já que o tema para a poesia é sardinhas enlatadas, foi buscar uns quantos exemplares, ela que trabalhou uma série de anos na Conserveira Portuguesa, ali em Matosinhos. Albina é a pessoa certa para responder à pergunta-mote da última sessão do curso de poesia. Quantas sardinhas cabem numa lata? Mas antes de se aperceber da problemática, pousa irrequieta pratos de plástico azuis sobre uma mesa desocupada, com a expressão de uma quase ceia de Natal. Quando se apercebe, pergunta: “Quem é que disse que eram três?”. “Eu”, afirma Júlia. “Mas eu digo que são quatro”, discorda Albina. “As latas de conserva, tanto de óleo, como de azeite, como de tomate ou malagueta, têm todas de quatro para cima”, reforça. “Mas aquela tinha três”, insiste Júlia. Os dois primeiros versos do poema estavam transformados num diálogo entre Júlia e Albina.

Com o resto da turma calada e a quadra a precisar de ser terminada, Maria David procura apanhar, entre as conversas cruzadas, alguma lógica para os próximos versos, e escreve no quadro “Mas eu digo…”. Albina interrompe-lhe o pensamento. “Você diz o quê? Eu aqui é que sou a peixeira!”, e vai buscar uma lata das que trouxe, abre-a sem que o óleo lhe suje demasiado aos mãos, e prossegue. “Quantas sardinhas tem?”. “Cinco”, diz a professora, para espanto da aluna. “Cinco? Eu aqui é que sou a analfabeta!”.

Naquela e noutras sete turmas do projeto +Literacia, promovido pela Biblioteca Municipal de de Matosinhos, todos estão a aprender a ler e a escrever, embora já tenham ultrapassado a idade escolar a passos largos. Às aulas de todo o ano, foi agora acrescentada uma variável: a do curso de poesia, em três sessões, na primeira metade do mês de outubro, para mostrar que “O Poeta Faz-se”.

“Toda a gente sabe ler”, diz Júlia, após presentear a última sessão com a leitura esforçada de um poema de Eugénio de Andrade. “Isso não é verdade”, contesta Albina, que ainda se esforça por dar significado às letras. “Mas toda a gente pode fazer poesia, mesmo que não saiba ler”, diz a formadora Maria David, como que a afincar o mote do projeto e a última lição da lição do dia.

Quando a cooperativa cultural Bairro dos Livros, junto com a autarquia da mesma cidade, lhe propuseram dar seis sessões de poesia a analfabetos, pensou como é que um mestrado em literatura moderna, focado na poesia narrativa de Al Berto, e duas décadas de experiência no mundo editorial poderiam aproximar a poesia de quem viveu sempre tão longe dela. “Tendemos a associar a literatura a questões romantizadas e sentimentalizadas. Eu, pessoalmente, evito um bocadinho essa abordagem. Tenho um certo gosto em pensar nestas coisas e agrada-me a ideia de as desconstruir ao ponto de serem acessíveis para qualquer pessoa”. Por isso, tratou de conhecer as duas turmas em que pegou, e trazer o dia a dia delas para a sala de aula. Com sardinhas, quis mostrar “como a potencialidade poética da linguagem está sempre presente, até na linguagem de todos os dias”.

ENLATADOS
Quantas sardinhas cabem numa lata? Os últimos números oficiais, que remontam aos Censos de 2011, dão conta de um analfabetismo que atinge cerca de 5% da população. A maioria, idosos a viverem em zonas do interior. O número baixou 20 pontos percentuais em 50 anos. Nos anos 70, 25% da população era analfabeta. Mas desenganemo-nos. Portugal continua no topo da tabela dos países europeus com maior taxa de analfabetismo. Há 30 mil pessoas em idade ativa (entre os 18 e os 65 anos) que não sabem ler nem escrever. E quase nunca sobre o investimento sobra para as desenlatar.

O +Literacia surgiu há quatro anos, “após um diagnóstico social no concelho de Matosinhos de que não havia uma resposta para as pessoas que não sabiam ler nem escrever ou que tinham baixos níveis de literacia”, explica a professora Ana Sofia Lopes que, com 25 anos e um curso de 1º e 2º ciclos do Ensino Básico, se viu a ensinar a adultos o que aprendeu a ensinar a crianças. O método é o mesmo, mas há um choque constante de realidade. “Ver as montras e conseguir ler, ver as placas na estrada e saber para onde se vai, assinar, quando muitos o fazem com impressão digital. Às vezes não paramos para pensar em que é que isto limita a vida destas pessoas - e limita muito”.

Pedro começou a aprender a ler esta semana. Reformado aos 42 anos, por invalidez, só sabe assinar o nome. Vai à caixa multibanco e faz “tudo sem saber ler”. No computador, usa um programa que transforma as palavras ditadas em palavras escritas. Quando recebe mensagens ou notificações no telemóvel, usa outro programa para lhe dar sentido às letras. “É muito bonito termos um telemóvel, mas dá-lo a um amigo ou a um irmão para nos escreverem uma mensagem faz com que não guardemos segredo para nós”, conta ao Expresso.

É o aluno mais recente do projeto que quer retirar da vulnerabilidade social os que, por uma razão ou por outra, não puderam completar o ensino básico regular antes de entrarem para o mercado de trabalho. Uma amiga que tem há 19 anos disse-lhe: “Vais tirar a carta!”. Só que, para isso, precisa primeiro de aprender a ler. Ela pegou nele por uma mão e levou-o ao Centro Qualifica, da associação Adeima. E a coincidência do calendário fê-lo confrontar-se logo no começo das aulas com três sessões de poesia, ao leme da outra formadora do curso, Raquel Patriarca. Poesia, essa coisa longínqua que pensava ser “uma coisa de poetas, só”

SAIR DA LATA
“Os livros não são para mim. A poesia é coisa de pessoas inteligentes”, resume Raquel, pondo em palavras o que vai na cabeça dos alunos com que se viu à frente nas seis sessões que conduziu. Nesta ideia de relação direta entre a inteligência e a escolaridade, “que não é tão líquida quanto isso - aliás, não tem nada de líquido, é bastante gasoso, até” - está assente uma crença enraizada de fracasso com que a formadora se viu a debater pela primeira vez.

Após uma carreira como professora e autora de livros para crianças, diz que a vantagem de levar a poesia a adultos é, precisamente, retirá-los dessa crença. “A poesia é algo que não se ensina a ninguém”, começou por explicar. Tal como nas crianças, ela vem “antes de aprender a ler e a escrever”. Por isso abraçou este projeto da Adeima, e diz que, “tal como os projetos primos e irmãos, ele tem uma importância incrível porque apoia uma faixa da população que está a cair nas frinchas da sociedade. O mundo democrácio não pode dar-se ao luxo de ter pessoas sem acesso à literacia”.

Pedro quer fazer a quarta classe, e, talvez um dia saber decifrar a informática. “Eu sei muita coisa, mas o que me custa é juntar as letras”. Com ajudas, escreveu o primeiro esboço da sua incursão no mundo poético.

“O coração fica nervoso

quando sentimos algo

por uma pessoa

Eu fico ansioso”

Escolheu o amor como tema. “Se o coração fica nervoso e o poeta fica ansioso, o que é que se está a passar aqui?”, pergunta a formadora da turma de Custóias. “O coração palpita como uma batata frita”, ouve-se ao fundo. É Rosário a fazer brilhar os olhos de Raquel com uma comparação, uma metáfora e uma rima, tudo junto num verso só. Na sua vez de ler o que escreveu, agarra logo na folha, colocando-a melhor no campo de visão, e lê:

“O sol, quando brilha

Todos ficamos contentes

Onde vais, minha filha?

Vou buscar os meus presentes”

Com 58 anos, Rosário entrou para o projeto +Literacia em fevereiro, “antes disto da pandemia”, e juntou-se aos cerca de 100 outros alunos, distribuídos pelas quatro uniões de freguesia do concelho. Está no fundo de desemprego, tem estado em casa. Tem a quarta classe, “mas mal”, e todos os trabalhos que se lhe apresentam pedem pelo menos o 6º ano. “Hoje em dia, se a gente não souber ler e escrever em condições, não é nada.”

Raquel apaixonou-se desde logo pelo projeto. Na primeira aula, trouxe às suas turmas um poema em forma de chave. Visualmente, é uma chave, cujo único texto que tem é o abecedário. “Alguns deles disseram logo que não conseguiam ler”. Um conjunto de letras que nem fazia sentido. Depois, trouxe-lhes uma página do manuscrito inicial do "Guardador de Rebanhos", de Fernando Pessoa, impossível de ler. “Aquilo tem anotações na margem, tem palavras riscadas, tem palavras substituídas, mudadas de sítio. A leitura que eu queria que eles fizessem era a do curso. Nenhum poeta, nem os mais geniais, fazem tudo à primeira”.

Na última das sessões que se comprometeu a dar, despediu-se com um pedido. “Agora que já abriram a porta, venham saber todos os caminhos que essa chave pode abrir.” As letras são chaves, abre-latas, asas, ou outros lugares comuns quaisquer, a partir do momento em que soubermos casá-las bem.

“Ele está aí

Vamos todos agasalhar-nos

Vai ter vento, chuva

E, se calhar, vai até

Nevar”

Maria das Graças

“As folhas caíram da árvore

O vento assobia no monte

A chuva bate no telhado”

José Maria

“Eu sinto borboletas dentro de mim

Não se apaga do coração

O sentimento assim”

Fernando

“Como gostaria de mergulhar

No fundo de mim

Para dizer-te o quanto sinto

Como gostaria de ter as

Palavras certas

Para te dizer o quanto te sinto”

Maria João

(O projeto “O Poeta Faz-se” culminará numa instalação artística exposta em espaço público, em Matosinhos, no mês de novembro)

Texto Escrito por Joana Ascensão e Rui Duarte Silva
20 de Outubro de 2020

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