quarta-feira, 2 de setembro de 2020

João Brandão, um vilão que aterrorizou as Beiras. Autor: Luís Filipe Torgal



A vida de João Victor da Silva Brandão (1825-1880) dava um romance e um filme magníficos. Esta é a perceção com que ficamos depois de melhor conhecermos as aventuras e desventuras desta personalidade que, como todos os protagonistas da história, só pode ser compreendida à luz da época em que viveu. E que, no seu caso, foi o período marcado pela afirmação do liberalismo em Portugal. Um tempo de crise política que modelou a primeira fase do sistema constitucional português – crise provocada por uma guerra civil entre liberais e miguelistas/absolutistas, depois por confrontos sucessivos entre diferentes fações liberais e pelos primeiros processos eleitorais do sistema constitucional, onde emergiram várias formas de caciquismo (termo originário dos idiomas da América pré-colombiana, com significado de “chefe”, que terá sido adotado pela primeira vez no léxico político português, em 1886, por Oliveira Martins, para rotular os indivíduos que tinham uma incontestável supremacia política e eleitoral a nível local). Uma época que determinou, afinal, a desagregação das estruturas seculares do “Antigo Regime” e o nascimento do Portugal contemporâneo. 


Os feitos, reais ou imaginários, de João Brandão foram cantados em verso nas feiras e romarias do país e têm sido mesmo musicados para grupos corais. A sua história inspirou a literatura de cordel e originou a edição de vários outros livros, folhetos e artigos de jornal escritos por autores que proclamaram a apologia do herói ou apregoaram a delação do criminoso. Os seus maiores detratores, como o jornalista Joaquim Martins de Carvalho (Os Assassinos da Beira, 1889), identificam-no como um “sicário” sem escrúpulos que, com os seus crimes violentos, aterrorizou a vasta região das Beiras. Por sua vez, os seus defensores, como José Dias Ferrão (João Brandão, 1928), preferiram considerá-lo um “político” que se bateu corajosamente pelo triunfo da nova ordem liberal constitucional, mas que soçobrou vítima dos crimes cometidos nesse tempo revolucionário caracterizado pela desordem e a violência. O próprio João Brandão terá também contribuído para potenciar e perpetuar o seu mito com a representação hagiográfica que construiu sobre si próprio, numa curiosa e bem escrita obra autobiográfica (tendo em consideração a limitada formação literária do autor), bem ao gosto romântico da época, redigida na cadeia do Limoeiro (Apontamentos da vida de João Brandão, 1870). 


Para além das interpretações e juízos de valor maniqueístas, existem dados objetivos que nos permitem conhecer melhor o homem que está por detrás do mito. Nasceu no Casal da Senhora (Midões), no seio de uma família rural proletária (o avô e o pai eram ferreiros) que ascendeu socialmente, graças a alianças e casamentos, bem como à audaciosa ação política em prol da causa liberal. 


Em 1828, D. Miguel autoproclamou-se rei absoluto e o seu Governo lançou uma violenta ação repressiva contra os liberais que permaneceram no país, a qual culminou em inúmeros homicídios, prisões e condenações à morte por fuzilamento e enforcamento. Depois, Portugal mergulhou numa guerra fratricida que terminou com a assinatura da Convenção de Évora Monte (1834) e a consequente vitória dos liberais. 


Nessa época agitada, o pai de João Brandão teve uma vida errante, a fugir às perseguições de que foi alvo por parte dos partidários miguelistas e a participar em ações de guerrilha que terão levado os seus inimigos absolutistas a confiscar e a incendiar os seus bens e a retaliar sobre a sua mulher e filhos. Ao invés, no rescaldo da derrota miguelista, a família Brandão terá participado, com a anuência declarada ou críptica do ainda débil Estado liberal, em violentas ações revanchistas contra os vencidos, extorquindo vultuosas indemnizações às famílias derrotadas e combatendo de forma implacável as quadrilhas de bandoleiros miguelistas que recusaram depor as armas. Este último procedimento mereceu mesmo, em 1841, por parte da rainha D. Maria II e do Governo constitucional, um louvor público formal aos Brandões do Casal da Senhora.  


Durante a década de quarenta, eclodiram novas sublevações sociais e políticas agora contra o Governo cartista de Costa Cabral: Maria da Fonte (1846) e Patuleia (1846-47). João Brandão e os seus irmãos combateram em defesa do Cabralismo e por isso entraram em rota de colisão com os seus primos de Midões que haviam abraçado a fação setembrista implicada nas revoltas da Patuleia. A fidelidade de João Brandão à ordem cabralista vigente ter-lhe-á permitido assumir funções de vereador e fiscal da Câmara de Midões. 


Com a Regeneração (1851-68), as recorrentes lutas armadas entre bandos rivais deram, gradualmente, lugar a combates políticos dentro da legalidade constitucional. O propósito fundamental seria, doravante, eleger os governantes do país e os deputados dos dois partidos que constituíam o sistema rotativista dominante: Regenerador e Histórico. 


Contudo, à revelia deste ambiente mais conciliador, o bando de João Brandão, com a aquiescência do próprio ministro do Reino, Rodrigo da Fonseca Magalhães, envolveu-se no célebre episódio da “montaria” ao salteador João Nunes, conhecido como o “Ferreiro da Várzea”, que culminou no bárbaro assassinato deste velho adversário de Brandão, em 1854. Tal ato originou uma campanha hostil no jornal O Conimbricense contra João Brandão e todos os ladrões e assassinos que, com a cumplicidade do poder estabelecido, continuavam a saquear a província da Beira, que “vive há muitos anos debaixo do império do trabuco e do punhal”. 


Foi indiciado deste crime e perseguido por forças militares. Passou à clandestinidade durante cinco anos (1855-1860). Acabou por se entregar, tendo sido preso, julgado e absolvido pelo crime atrás citado, num rocambolesco processo judicial que foi denunciado pelos detratores de João Brandão como tendencioso e indulgente para com os culpados. 


Saído em liberdade, casou com Ana Eugénia Correia Nobre (da Várzea da Candosa), que possuía alguma fortuna, pretendeu renunciar à sua anterior vida aventurosa e dedicar-se à administração das propriedades de sua mulher. Consta que, muito antes disso, chegou a planear casar com Maria Rita das Neves, a mulher que viria a ser mãe de António José de Almeida (1866-1929, presidente da República Portuguesa, entre 1919 e 1923), e que certa vez, no contexto das lutas entre liberais, teria ameaçado de morte o pai do futuro presidente (Luís Reis Torgal, António José de Almeida e a República, 2004, p. 33). A este propósito, importa esclarecer que as origens mais ancestrais da sua família provêm das freguesias de São Martinho da Cortiça (Arganil) e de Farinha Podre (atual São Pedro de Alva, Penacova), de onde são originários os avós paternos, a avó materna e os pais de António José de Almeida.  


Porém, retomou as atividades de eleitor e cacique local, tendo-se envolvido, fervorosamente, nos processos nada democráticos de angariação de votos em benefício dos candidatos que apoiou e que concorreram sucessivamente à Câmara de Deputados pelos círculos de Arganil, Oliveira do Hospital e Penacova. Tais processos, que revelam bem o poder e a influência que João Brandão tinha na região, envolviam, por um lado, a lealdade, a reciprocidade de favores, a amizade, a adesão voluntária; por outro lado, desvendam a submissão pessoal e a ameaça de coerção de que era vítima a sua rede clientelar. 


O fenómeno do caciquismo oitocentista aqui aflorado permite-nos ainda confirmar que as mais altas personalidades políticas das fações do Estado demoliberal recorriam amiúde aos serviços de homens truculentos como João Brandão – ou, sobretudo, de grandes proprietários agrícolas e altos funcionários do Estado – para obter triunfos eleitorais regionais e locais que lhes permitiam vencer eleições nacionais. Em contrapartida, estes conluios possibilitavam aos caciques organizarem-se em influentes oligarquias locais que obtinham avultadas benesses do poder central e dominavam de forma muito pouco transparente as administrações municipais e até os próprios tribunais.


Todavia, este tipo de ação política comportava também os seus riscos, sobretudo para aqueles caciques irredutíveis cuja fama de malfeitores começava a torná-los incompatíveis com uma fase mais consolidada, cívica e progressista da Monarquia Constitucional. Com efeito, os diversos inimigos que João Brandão foi gerando (alguns deles bem posicionados na hierarquia dos poderes político e judicial) jamais esqueceram os seus crimes e afrontas. Vários terão mesmo acabado por se coligar para mover-lhe um ardiloso processo de acusação pelo assassinato e roubo do padre José de Anunciação Portugal, na Várzea de Candosa. Foi preso por estes crimes cometidos em 1866. Após um julgamento parcial e crivado de infrações legais, onde a acusação nunca terá conseguido provar com clareza a culpabilidade do réu, João Brandão foi declarado culpado do crime de homicídio premeditado e condenado pelo tribunal da Comarca de Tábua à pena de morte comutada com o degredo perpétuo em África. Embarcou para Angola, em 1870, colónia em que manteve uma vida romanesca, terá amealhado proventos na produção de açúcar e de aguardente de cana, mas, também, onde acabou por morrer assassinado, em 1880. Suspeita-se que o seu sócio e o próprio Governador de Benguela estiveram envolvidos na sua morte. De todo o modo, a autoria e as motivações deste crime, assim como o caso macabro da decapitação do seu cadáver e o transporte da cabeça de João Brandão para Benguela estão ainda hoje por esclarecer. 


Para quem desejar compreender melhor a extraordinária história da vida de João Brandão, aconselho seis obras fundamentais: João Brandão, Apontamentos da vida de João Brandão: por elle escritos nas prisões do Limoeiro envolvendo a história da Beira desde 1834, com [excelente] introdução de José Manuel Sobral, Lisboa, Vega, 1990; Joaquim Martins de Carvalho, Novos apontamentos para a história contemporânea: os assassinos da Beira, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1889; José Dias Ferrão, João Brandão, Porto, Litografia Nacional, 1928; José M. Castro Pinto, João Brandão, o «terror da Beira», Lisboa, Plátano Editora, 2004; Irene Vaquinhas, “Alguns aspetos da violência nos campos portugueses no século XIX”, in Revista de História da Sociedade e da Cultura, Coimbra, Centro de História da Sociedade e da Cultura da Universidade de Coimbra, 2001, pp. 285-325; e Marco Daniel Duarte, Tábua. História, Arte e Memória, Município de Tábua, 2009, pp. 287-320. Os dois últimos textos supracitados e até o prefácio de José Manuel Sobral atrás mencionado são das poucas obras publicadas de teor historiográfico, embora pouco exaustivas, sobre o tema aqui tratado. Quem pretender obter mais informações sobre a vida e a morte de João Brandão em Angola, deve também ler o folheto de César Santos, O desventurado de Midões. João Brandão em África, 1880-1950, Coimbra, Tipografia Coimbra Ed., 1950. 


Apesar da prolífica literatura, mais ou menos recente, existente sobre este tema, continua por publicar uma obra historiográfica de grande fôlego acerca do homem que foi reconhecido, por alguns autores, como “benemérito, altruísta” e “desventurado”, mas cognominado, por outros escritores, de “terror da Beira”. Essa investigação detalhada e narrativa interpretativa fluente poderão desconstruir as representações fabulosas, paradoxais e redutoras de “bandido generoso” ou de “bandido facínora” e, porventura, apresentá-lo inserido numa tipologia mais inteligível. A saber: João Brandão teria sido, no mundo rural português oitocentista, um “cacique” ou uma espécie de “coronel” (trata-se de um modelo social que prosperou no Brasil no período da “República Velha”, 1889-1930), quase sempre armado e desprovido de escrúpulos, movido por motivações mais pessoais e económicas do que sociais e políticas, e simultaneamente temido e admirado pela população da região das Beiras. 


Por tudo o que ficou escrito, creio que não devemos enquadrar João Brandão na controversa tipologia de «bandido social» conceptualizada pelo historiador Eric Hobsbawm. Ele foi, sobretudo, um fora-da-lei recalcitrante cuja conduta violenta, assassina e amoral não foi consagrada à defesa dos pobres e espoliados. Por isso, não se tornou um herói popular, mas antes um vilão intrépido tão respeitado como receado pelos diversos estratos da sociedade rural da sua época. Assim, apesar de o seu nome permanecer gravado na memória coletiva dos beirões, a sua trajetória de vida não faz dele uma personalidade especialmente talhada para intitular espaços públicos atuais. Muito menos para a autarquia de Tábua ter decidido destinar o nome de João Brandão para patrono da sua Biblioteca Municipal.    


 Autor: Luís Filipe Torgal 


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