1. Esperava-se que corresse mal. Correu pior. A única
réstia de esperança é que poderia ter corrido ainda pior. Mas continua a ser
legítimo dizer que não parece haver número de infectados ou de mortos, cenários
catastróficos para a economia, números do desemprego a dispararem a uma
velocidade raramente vista, cidades-fantasmas, angústia generalizada quanto ao
futuro, que consiga levar os líderes dos 27 países da União Europeia a agirem
como europeus. Foi triste a imagem que
o terceiro Conselho Europeu por teleconferência deu de si próprio. E não foi
por culpa de todos.
Também
é legítima uma discussão sobre dívida conjunta ou sobre o montante de crédito
que o Mecanismo Europeu de Estabilidade (MEE) deve conceder aos
Estados-membros. Ela foi, certamente, intensa na última reunião do Eurogrupo
que precedeu a cimeira e que, perante a constatação de divisões insanáveis,
preferiu passar aos líderes a responsabilidade da decisão. Não é essa a questão
essencial. O que é mais perigoso na situação que a Europa vive neste momento e
na sua incapacidade de reagir em conjunto é que alguns dos seus líderes (ainda)
não mudaram a sua forma de pensar. Pensam hoje o que pensavam antes da
pandemia.
2. O primeiro-ministro português referiu quatro países
que se opuseram à emissão de dívida conjunta para enfrentar a reconstrução
económica e social da Europa. Depois corrigiu: três irredutíveis e um quarto
que aceita o debate. Não revelou quais foram. Não lhe compete. Mas a forma como
decorreu o Conselho, num clima tão tempestuoso que ia levando à ruptura,
permite algumas conclusões.
Que
os Países Baixos se opõem furiosamente aos eurobonds, seja qual for
a forma que revistam, já sabíamos, e não houve qualquer esforço de Mark Rutte
em desmenti-lo. Foram, aliás, as declarações do seu ministro das Finanças que
levaram António Costa a dizer o que disse durante a conferência de imprensa
final do Conselho Europeu, classificando-as de “repugnantes”. As suas
palavras tornaram-se virais, provavelmente
porque exprimem um sentimento partilhado em muitos países europeus. Na
sexta-feira, o primeiro-ministro holandês não as quis comentar, mas sentiu-se
obrigado a esclarecer que as palavras do seu ministro terão sido mal
interpretadas – qualquer coisa entre “não escolheu bem as palavras” e “não o
interpretaram bem”. Rutte também disse que eram “muitos” os países que pensavam
como ele sobre a emissão de dívida. Hoje, sabemos que “muitos” quer dizer
quatro, mesmo que haja ainda alguns líderes europeus que tenham preferido um
relativo silêncio. Mesmo assim, nas últimas horas, mais três países juntaram a
sua assinatura aos nove chefes de Estado e de Governo que, na véspera da
cimeira, enviaram uma carta conjunta a Charles Michel, defendendo que a Europa
precisa de recorrer a todos os instrumentos à sua disposição para enfrentar
esta crise, incluindo a emissão de dívida. Entre eles, estão países ricos do
Norte, como a Bélgica ou o Luxemburgo, mas também a França, a Itália e a
Espanha, respectivamente a segunda, terceira e quarta economias do euro, ou
Portugal, Irlanda e Grécia e, a partir de sexta-feira, Malta, Chipre e
Lituânia.
3. O choque frontal que quase levou o Conselho
Europeu à ruptura foi, como seria de prever, entre Mark Rutte e os
primeiros-ministros dos dois países onde o sofrimento atingiu já as proporções
de uma tragédia humana: Giuseppe Conte e Pedro Sánchez. Nem um nem outro
estavam disponíveis para assinar uma Declaração conjunta cheia de palavras
vazias, espelhando apenas o “menor denominador comum”, ou seja, o recurso ao
Mecanismo Europeu de Estabilidade (MEE) em determinadas condições e a exclusão
de “coronabonds”. A ruptura acabou por ser evitada in extremis pela
chanceler alemã através de uma intervenção considerada em Lisboa como
“construtiva e moderada”, ainda muito longe de ceder no que diz respeito à
emissão de dívida conjunta, mas capaz de evitar o pior. O argumento de Angela
Merkel em relação aos “coronabonds” não é igual ao “nunca, jamais” de
Rutte ou do chanceler austríaco Sebastian Kurz. O seu argumento é que não se
deve prometer o que não se tem a certeza de poder cumprir. Mesmo assim, a sua
intervenção permitiu aliviar a tensão e encontrar um acordo em torno do ponto
14.º da Declaração, onde nenhuma solução é mencionada para a reconstrução
económica pós-pandemia, nem nenhuma é rejeitada. O Eurogrupo volta a ser
mandatado para apresentar propostas concretas em duas semanas. “As propostas
devem ter em conta a natureza sem precedentes do choque da covid-19, que afecta
os nossos países todos”. “A nossa resposta decorrerá passo a passo, à medida
que for necessária, com novas acções e de uma forma inclusiva, à luz dos
desenvolvimentos e de forma a dar uma resposta abrangente.”
A
Alemanha, como Merkel voltou a dizer no final da reunião, prefere o recurso ao
MEE. Mas uma das razões pelas quais a Itália, entre outros países, se opõe a
este mecanismo de resgate europeu (240 mil milhões dos 410 de que dispõe, que
correspondem ao limite máximo de 2 por cento do PIB de cada país), está nas
condicionalidades que impõe para a concessão de empréstimos – vistas como uma
espécie de “programas de ajustamento” aplicados pela troika durante
a crise das dívidas soberanas, com a mesma natureza estigmatizante. Nenhum
país, de Portugal a Itália, quer voltar ao tempo da resposta à crise financeira
de 2008, com as suas hesitações, as suas decisões no último minuto, as suas
“estratégias de punição”, a sua execução em tempo recorde, impedindo as
economias de respirar e saldando-se em custos sociais elevados. Sexta-feira,
António Costa voltou a insistir nesta comparação.
Também esta sexta-feira, o Financial
Times resumia bem a discussão que envolveu os lideres
europeus. “Praticamente todos os países sairão desta crise com as suas dívidas
inflacionadas e um défice mais pesado. Perante um pano de fundo desta natureza,
discutir quem sairá com finanças ligeiramente mais saudáveis seria como
vangloriar-se de ter a cara mais limpa depois de um combate na lama.”
4. O Presidente
francês e o primeiro-ministro português insistiram no risco de vida que a
Europa corre. Não estarão a exagerar. Se esta é a maior crise que os europeus
enfrentam depois da II Guerra – como diz Merkel -, se esta é uma “guerra”
contra um inimigo comum que não escolha quem ataca, como voltou a dizer esta
sexta-feira António Costa, então a resposta só pode ter uma dimensão
equivalente. Também esta sexta-feira, o Presidente do Parlamento Europeu, o
italiano David Sassoli, manifestando a sua desilusão perante os fracos
resultados do Conselho Europeu, lembrou que “ninguém conseguirá escapar a esta
emergência sozinho”. “A Europa que vai emergir desta crise não será a mesma.
Mas há quem ainda não tenha compreendido isso.”
Artigo de opinião escrito por Teresa Sousa
Jornal Público 28 de Março
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