segunda-feira, 23 de março de 2020

Soeiro Pereira Gomes: um escritor esquecido?


Soeiro Pereira Gomes nasceu em Gestaçô (concelho de Baião, Porto), no dia 14 de Abril de 1909, e faleceu no dia 5 de Dezembro de 1949, com apenas 40 anos. Se fosse vivo, completaria 111 anos. O seu exemplo de luta cívica e a sua obra bem mereciam outro destaque, daí este breve artigo.
Quando morreu, Soeiro vivia na clandestinidade há cerca de 5 anos, pois, enquanto membro do Partido Comunista, fora um dos dirigentes locais, em Alhandra (Vila Franca de Xira), da greve de 8 de Maio de 1944. Sublinhe-se que Soeiro era, desde 1932, empregado de escritório na Fábrica de Cimentos Tejo, em Alhandra.
Ao longo da sua curta vida, colaborou com o jornal O Diabo, publicou, entre outros, Esteiros (1941) e, já a título póstumo, Refúgio Perdido (1950) e o romance inacabado Engrenagem (1951). Além disso, profundamente comprometido com a transformação da realidade social, desempenhou também um papel importante ao nível da comunidade local, ajudando a construir uma piscina para que as crianças e os jovens aprendessem a nadar sem enfrentarem os perigos dos esteiros do Tejo, desenvolvendo actividades de cariz cultural ou dando lições de ginástica aos filhos dos operários.
Quem hoje fala em Soeiro Pereira Gomes recorda-se, sobretudo, da obra Esteiros, dada à estampa durante a II Guerra Mundial, quando o autor tinha 32 anos. O livro — um dos marcos do Neo-Realismo português — contou com uma capa e ilustrações de Álvaro Cunhal e foi dedicado aos “filhos dos homens que nunca foram meninos”.
O enredo do romance gira em torno de 5 crianças (Maquineta, Gaitinhas, Guedelhas, Gineto e Sagui), que são obrigadas pelas duras circunstâncias da vida a tornarem-se adultos antes do tempo, ingressando no árduo mundo do trabalho e da exploração capitalista, para conseguirem, graças ao parco rendimento auferido, ajudar as famílias a pagar a sobrevivência. Por exemplo, no forno, onde se fazia o tijolo, “Gaitinhas deu o ombro à carga, mas deixou-a cair, derreado, pela violência do calor que lhe trespassou a camisa e queimou os ombros e orelhas. Um empurrão do mestre fez-lhe brotar lágrimas de raiva”.
Este é também, como escreveu Isabel Pires de Lima, em jeito de introdução à 5.ª edição do livro (1979), um “grito de denúncia”, que alerta para as profundas clivagens entre os explorados e os exploradores, a miséria social, a fome. Eis-nos perante um conjunto de crianças que, impedidas de frequentar a escola, acabam por ter de mendigar e roubar, por vezes até mesmo outros miseráveis como elas.
Muitas pessoas, sobretudo aquelas que nasceram no Estado Novo salazarista, recordar-se-ão das circunstâncias descritas por Soeiro Pereira Gomes no romance Esteiros. Lembrar-se-ão dos seus próprios percursos ao relerem os relatos pungentes daquelas crianças e das suas famílias exploradas pelos patrões capitalistas; reconhecer-
-se-ão no sofrimento que ainda os atravessa por terem sido incapazes de ultrapassar a dureza das suas circunstâncias. O espelho intemporal criado pelo talento literário de Soeiro ajudará muitos a compreenderem ainda melhor aquilo que a vida lhes roubou — quantos não desejariam ter estudado, concluído um curso superior e não o fizeram porque foram forçados a abandonar a escola para ir trabalhar? Deixo somente um exemplo, entre muitos outros igualmente significativos. Gaitinhas (cujo verdadeiro nome era João) vivia com a mãe, Madalena, que estava muito doente com tuberculose (acabaria, de resto, por falecer). Madalena, devido às dificuldades financeiras, teve de convencer Gaitinhas a sair da escola e, por isso, foi pedir ajuda ao sr. Castro para empregar o filho na Fábrica Grande. Durante a conversa, porém, Madalena deixou escapar a mágoa de ver o seu menino abandonar os estudos (o Mestre-Escola previra que ele tinha muitas capacidades e podia ir longe. Já o pai de Gaitinhas, que andava algures pelo mundo, queria mesmo que ele fosse um médico que ajudasse os mais pobres…). Eis a resposta do ricaço à malograda mãe: “Que mal tem isso? […] Evidentemente que vossemecê não queria fazer dele um doutor”. Afinal, isso estava reservado para o seu filho Arturinho e para os restantes filhos dos capitalistas, pois os pobres estavam — na lógica da sua época — condenados a perpetuar a herança da miséria e do analfabetismo.
A luta destas crianças e das suas famílias pela sobrevivência representa o trágico percurso de tantas gerações portuguesas, às quais a realidade roubou os sonhos: como no caso de Maquineta, que tanto desejara ir trabalhar para as máquinas na Fábrica Grande e acabou por ter de carregar carvão no cais. Ou das trágicas consequências das cheias no rio Tejo, durante o Inverno: “O caudal barrento do rio arrastava fardos de palha, animais e lágrimas. E o homem daqueles sítios, alheio às conversas, nada mais via do que luto à sua frente”.
Mas as páginas de Esteiros também reflectem a gradual tomada de consciência cívica e política das suas personagens: “Madalena cerrou os lábios. Bem sabia ela que o destino era a vontade dos homens”. Ou ainda: “Maquineta bateu com força na nuca, e asseverou, como se discutisse com o próprio mestre: — Aqui é que ninguém põe a canga, nem que me matem”.
Claro que este perigo não poderia passar despercebido à censura do Estado Novo, que, em 1966, ou seja, 25 anos após a edição do livro, afirmava num dos seus relatórios:
“É um romance regionalista de análise crítica da vida miserável das populações ribeirinhas do rio Tejo, nas zonas das Lezírias, fazendo realçar a injustiça, a exploração da miséria, resultado das desigualdades sociais, no que o livro não é justo, mas antes especula.
[…] Julgo por isso que este livro deveria ter sido proibido quando apareceu, mas agora dever ser ignorado”.
O leitor Francisco C. Salgado (censor especializado na análise das obras literárias) pesava, portanto, os efeitos contraproducentes de uma eventual proibição da obra (fruto proibido é o mais apetecido), mas encerrava, considerando que deveriam ser impedidas as referências ao livro nos meios de comunicação social, condenando-o assim, na prática, à não-existência.
O final dos Esteiros representa uma inequívoca mensagem de esperança, ou não tivesse este livro sido publicado em 1941, quando decorria a II Guerra Mundial e nascia, gradualmente, entre as oposições portuguesas, a esperança de que a vitória dos Aliados traria consigo o fim do regime salazarista. Este esforço de procurar colocar o texto no seu contexto, segundo penso, revela-se fundamental para compreender esta obra e em particular o seu desenlace.
Eis o final do romance, com sabor a futuro de mudança: Gineto, preso na cela (depois de ter sido apanhado a roubar carvão), pensou ouvir Gaitinhas, que todavia já partira com Sagui para percorrer o mundo, em busca do pai. O pano encerra com o sonho de Gineto: quando os amigos regressarem, virão libertá-lo e “mandar para a escola aquela malta dos telhais — moços que parecem homens e nunca foram meninos”. A escola — sublinhe-se — surge aqui como um instrumento de libertação individual e social. E o sonho fica em aberto. Até hoje...
Soeiro Pereira Gomes passou à clandestinidade em 1944. Nessa sequência, a sua esposa, Manuela Câncio Reis, foi presa pela PIDE, mas nem isso levou o escritor a entregar-se. Em 1947, na sequência de uma queda de bicicleta (pensaria que estava a ser perseguido pela PIDE), foi-lhe diagnosticado um cancro nos pulmões, que acabaria mesmo por matá-lo dois anos depois. Hoje, as suas obras não fazem parte do Plano Nacional de Leitura e dificilmente se consegue adquiri-las numa livraria. A RTP, porém, dedicou-lhe, numa das suas emissões pedagógicas, um breve programa particularmente interessante, que recomendo vivamente a todos os leitores (https://ensina.rtp.pt/artigo/esteiros-de-soeiro-pereira-gomes/).
Numa época em que todos vivemos um drama mundial, com impactos imprevisíveis, é altura de aproveitar o nosso isolamento para regressar aos grandes clássicos da literatura. Soeiro Pereira Gomes figura, por direito próprio, no patamar dos grandes escritores e merece, por conseguinte, que as escolas o estudem e os portugueses o leiam.
Esteiros, esses braços (canais) do rio Tejo, “como dedos de mão espalmada”, ajudam-nos também a não esquecer que o destino dos Homens é construído diariamente por cada um de nós. E que é, sobretudo, pelos mais desfavorecidos que vale a pena lutar. Uma mensagem cada vez mais útil e que importa repetir à exaustão. Também por isso, a reedição das obras de Soeiro Pereira Gomes é, segundo penso, uma necessidade premente...
Renato Nunes (renato80rd8918@gmail.com) 

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