Há quem diga que um Homem começa a ser gerado pelo menos um século antes
de nascer, pelo que quem o quiser compreender deverá estudar a época dos seus
avós. Ora, há um século atrás, vivia-se no Ocidente
a euforia dos “Loucos anos 20”, também conhecidos como “Roaring Twenties”. O
pós I Guerra Mundial, conflito no qual se inaugurou a indústria da morte,
trouxe consigo um período marcado pela ânsia de recuperar o tempo perdido. A
cultura de massas na qual hoje vivemos submersos nasceu nesse período, atravessado
pelos incríveis desenvolvimentos técnicos do cinema, da rádio, da televisão, pelo
incremento da arte, da música e do desporto, bem como por um conjunto de
transformações sociais e políticas, entre as quais importa destacar os movimentos
feministas e sufragistas.
No dealbar da década de 20, quem imaginaria, porém, que o crash da Bolsa de Wall Street, em Nova
Iorque (1929), mergulharia quase todo o mundo numa profunda crise? A “Longa
Depressão”, como escreveu Eric Hobsbawm, é de resto fundamental para
compreender a ascensão de Hitler ao poder na Alemanha ― em Janeiro de 2020, relembre-se, completam-se 87 anos após a
nomeação do fűhrer como chanceler.
Apesar de a História não se repetir, é assustador constatar as dramáticas
semelhanças do nosso tempo com as circunstâncias que existiam há 100 anos.
Ontem como hoje, os extremismos proliferam a uma velocidade vertiginosa. Donald
Trump, o “Brexit” e Jair Bolsonaro representam apenas alguns exemplos desta perigosa
tendência moderna marcada pela vitória do espectáculo sobre o conteúdo, pelo
triunfo da ignorância/loucura em detrimento do rigor, do trabalho sistemático e
do conhecimento científico (sim, ao contrário do que as redes sociais parecem
levar-nos a acreditar, os intelectuais fazem-nos muita falta).
Mais do que identificar detalhadamente essas similitudes entre o passado
e o presente, penso, porém, que é importante reconhecer que nós somos filhos
dos “Loucos anos 20”. A cultura do espectáculo permanente na qual vivemos
embrenhados nasceu provavelmente ali e, portanto, quem quiser compreender o
mundo actual terá de regressar às três décadas iniciais do século passado. Às
décadas, sublinhe-se, onde nasceu o Fascismo e o Nazismo, cujas origens e exponencial
crescimento também radicam na já mencionada civilização do espectáculo.
A atracção das massas pela evasão proporcionada pelos mass media, que despertou no mundo
ocidental a partir dos anos 20, parece ter atingido na hodierna o seu clímax,
com famílias inteiras viciadas nas redes sociais e os mais jovens, em especial,
a mergulharem durante horas a fio em jogos virtuais, evidenciando depois uma
terrível incapacidade para interagirem com os seus semelhantes. No meio disto
tudo, a Inteligência Artificial desenvolve-
-se a um ritmo alucinante. O mundo transforma-se a uma velocidade tal que é impossível captar as suas complexas transformações e, tal como Yuval Noah Harari já teve oportunidade de concluir, o Homem começa a perder a ilusão da liberdade: “The sacred Word ‘freedom’ turns out to be, just like ‘soul’, a hollow term empty of any discernible meaning” (Homo Deus. A Brief History of Tomorrow, 2016, p. 329).
-se a um ritmo alucinante. O mundo transforma-se a uma velocidade tal que é impossível captar as suas complexas transformações e, tal como Yuval Noah Harari já teve oportunidade de concluir, o Homem começa a perder a ilusão da liberdade: “The sacred Word ‘freedom’ turns out to be, just like ‘soul’, a hollow term empty of any discernible meaning” (Homo Deus. A Brief History of Tomorrow, 2016, p. 329).
Nós podemos, efectivamente, não saber como serão as profissões daqui a 15
ou 20 anos, mas é fundamental que nos interroguemos a respeito do mundo que
pretendemos ter daqui a duas ou três décadas, pois só isso nos poderá ajudar a
definir melhor os conteúdos que os nossos alunos deverão estudar nas escolas.
Sem uma resposta concreta a esta pergunta o futuro poderá revelar-se dramaticamente
perigoso. E os holocaustos poderão estar novamente ao virar da esquina.
Na década de 1980, o historiador francês Marc Ferro deu à estampa a obra A manipulação da História no ensino e nos
meios de comunicação, na qual, logo a abrir, declarou: “Não nos enganemos:
a imagem que fazemos de outros povos, e de nós mesmos, está associada à
História que nos ensinaram quando éramos crianças” (1983, prefácio, p. 11). Há
cerca de duas décadas que, enquanto professor de Educação Especial, tenho o
privilégio de ir circulando por muitas salas de aula, nas mais diversas
disciplinas. E quanto mais o tempo passa, mais reforço a convicção segundo a
qual a História pode desempenhar um papel crucial no futuro que pretendemos
edificar. O estudo do passado ajuda-nos a criar pontes, entre nós e os outros.
Ajuda-nos a reconhecer o profundo elo que nos aproxima dos primeiros seres
humanos, há cerca de 3 milhões de anos, mas também de todos os seres com os
quais partilhamos este planeta. A humildade de aprender a duvidar (de tudo o
que sabemos ou pensamos saber) para depois perseguir outros trilhos é,
porventura, uma das mais eficazes vias para construir um mundo mais democrático
e inclusivo, uma lição que, afinal, também a História nos pode ajudar a
reforçar. Fora disto, todas as palavras se tornam infrutíferas. E este é um dos
meus maiores receios: nós, que tanto invocamos a inclusão e a democracia,
estamos, muito provavelmente, a construir um país, uma Europa e um mundo,
afinal, cada vez mais totalitário e que exclui, de modo irreversível, os mal-afortunados
do berço e da genética.
Não é possível compreender o nosso tempo sem recuar aos “Loucos anos 20”:
nós somos os filhos e os netos dessa era das massas. E, talvez como todos os
descendentes, exponenciámos os defeitos e as virtudes desse passado. Resta-nos
agora aprender a lidar de um modo mais equilibrado com esse património, numa
era em que um novo e catastrófico conflito mundial parece iminente e as
alterações climáticas se revelam cada vez mais mortíferas, como, de resto, os fogos
infernais da Austrália têm vindo a demonstrar, nos últimos meses.
Aprender a ignorar os ruídos, viver apenas com aquilo que necessitamos,
nomeadamente do ponto de vista tecnológico, é talvez um dos mais prementes desafios
que temos hoje entre mãos. Por isso é que, segundo penso, a História, a
Literatura e a Filosofia poderiam revelar-se cruciais para definir qual é,
afinal, o futuro que pretendemos deixar aos vindouros. Mas isso exigiria outro
tipo de sabedoria e consciência ética por parte de quem governa e por parte de
quem é governado. Algo que depende ― cada vez mais ― de cada um de nós e da
nossa capacidade para aprender a ignorar os vendedores da “banha da cobra” que
por aí proliferam, travestidos dos nomes e títulos mais flamejantes e
inclusivos que possamos imaginar…
Renato Nunes (renato80rd8918@gmail.com)
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