Introdução
Manuel Cid Teles nasceu em 8 de Março de 1911, em Tábua, e faleceu em Oliveira do Hospital, em 25 de Abril de 2009, com 98 anos. Tive apenas oportunidade de conhecê-lo na fase final da vida, quando se encontrava no lar da Fundação Aurélio Amaro Diniz. Certo é que os nossos encontros, apesar de esparsos no tempo, me marcaram profundamente.
Ia, habitualmente, visitá-lo quando
regressava dos Açores, onde estava a trabalhar desde Setembro de 2007. O modo
como sempre me recebeu no seu quarto emprestado continua ainda hoje a
comover-me profundamente. Quase sempre de pé, ao lado da cama, sem recorrer a
qualquer registo escrito, declamou-me um sem número de poemas, uns da sua pena,
outros de Florbela Espanca (1894-1930). Abrindo as gavetas, confiou-me os intermináveis
(e mais estranhos) papéis, nos quais ia incessantemente rabiscando os mais
recentes versos, tocou no piano improvisado, declamou efusivamente e voltou a
declamar poemas, que a poesia e a música corriam-lhe no sangue quase tão
naturalmente como o oxigénio que respirava. Tudo isto e muito mais, como se me
conhecesse há longos anos e nos unisse uma profunda amizade. Estranhamente ou
talvez não, sempre que entrei naquele refúgio senti que fazia parte da sua extensa
e anónima família, pese embora o facto de ele nunca me ter perguntado quem era,
onde vivia, o que fazia ou a que vinha. Certo é que o brilho do seu olhar – com
o desconto que devem merecer-nos todos estes géneros de comparações feitas à
distância de uma década – ainda hoje me faz lembrar a limpidez de Fernando
Valle (1900-2004), um dos históricos fundadores do PS, que tive o privilégio de
conhecer num fugaz encontro agendado pelo engenheiro António Campos, também ele
uma das incontornáveis figuras históricas do PS.
Servem estas palavras introdutórias
para anunciar que, ao longo dos próximos artigos, irei procurar ajudar a
iluminar um pouco melhor a longa vida de Manuel Cid Teles, um homem que viveu
quase um século, longo período no decurso do qual Portugal viveu sob a I
República, a Ditadura Militar, o Estado Novo e o pós-25 de Abril. Trata-se
apenas de alguns contributos, divididos em seis artigos, para o estudo
histórico, psicológico, biográfico e literário de um homem que imagino sempre
com os seus cabelos brancos, num porte de matusalém atravessado por uma
imperturbável serenidade, mas, simultaneamente, caracterizado por um certo
mistério próprio das águas profundas da sensibilidade artística. Afinal, Cid
Teles foi também o poeta dos paradoxos: um homem sociável, mas, outrossim, um
indefectível solitário; um trovador, mas também um saudosista; uma cigarra, mas
também um poeta da mágoa, da tristeza e das sombras.
Fernand Braudel, o consagrado historiador da
Escola dos Annales, acreditou ser
fundamental iluminar o rei Filipe II de Espanha (Filipe I de Portugal) à luz da
sua religiosidade interior. Eu penso que será muito importante tentar
compreender Cid Teles à luz do seu percurso solitário, qual peregrino que
Morris West eternizou na obra Uma Visão
Sublime. Ao longo dos próximos artigos, veremos até que ponto esta tese
poderá ou não ser confirmada.
O
objectivo de estudar a personalidade e a psicologia do homem, à luz das suas
circunstâncias espácio-temporais, levou-me a dividir os vários artigos em
quatro núcleos aglutinadores, aos quais se seguirá a síntese possível. Assim, no
segundo artigo, que dará continuidade à presente Introdução, ocupar-me-ei das
origens de Cid Teles, com destaque para a família, o meio e a época. No terceiro
texto, procurarei surpreender as principais influências recebidas pelo poeta,
enquanto no quarto artigo será meu intento sintetizar os temas privilegiados
por Cid Teles nas suas obras, arrumando-os numa espécie de breve dicionário
literário telesiano. O quinto texto
terá como objectivo chave acompanhar algumas das representações (as imagens)
veiculadas, ao longo do tempo, pela imprensa a respeito de Cid Teles, sendo que
no último texto procurarei apresentar as principais conclusões. Devo, desde já,
confessar que um dos grandes problemas com que me deparei residiu em conseguir
sintetizar em poucas páginas a grande quantidade de material que fui recolhendo
ao longo dos últimos anos, pois, quando tomei consciência, já tinha armazenado
umas boas centenas de páginas de elementos dispersos. Diga-se ainda que optei
por eliminar as referências bibliográficas e todo o tipo de anotações habituais
em trabalhos académicos, pois pretendi simplificar ao máximo a tarefa do leitor.
Dizia
Miguel Torga que o universal é o local sem paredes. Lev Tolstói escreveu mesmo:
“Se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia”. Ao longo dos últimos
anos, sobretudo nos momentos de descanso, quer das actividades lectivas, quer
de um longo e ciumento namoro que travo obsessivamente com o escritor Aquilino
Ribeiro (1885-1963) há 11 anos, fui perscrutando Cid Teles e regressando
regularmente à sua obra, como um filho que mata saudades da casa paterna,
olhando para a imagem de uma velha e esmaecida fotografia.
Perscrutar
Cid Teles, ousar colocar o poeta, o músico, o pintor autodidacta e o homem no
xadrez da sua época, ajudou-me a compreender melhor a História do meu próprio
concelho, Oliveira do Hospital. E ao estudar a História local foi também mais
fácil enquadrar alguns aspectos da História nacional.
A
História de um indivíduo cruza-se com a História do seu país e, por vezes, até
mesmo com a História do próprio mundo (estou a lembrar-me, por exemplo, da I
Guerra Mundial, na qual participaram tantos homens do concelho de Oliveira do
Hospital). Tudo o que fazemos também é o produto das nossas circunstâncias. Ao
interrogá-las é que compreendemos melhor o que somos e também o que nunca
pudemos ser. Um esforço, afinal, fulcral para entender qualquer Homem e
aprender a perdoar. O que não me impede, porém, de subscrever as palavras de
Cid Teles, quando este afirma, nas suas Quadras Soltas, que a melhor
biografia de qualquer autor se encontra nas suas próprias obras:
Se
alguém desejar saber
O
que foi a minha vida,
Leia
meus versos, que neles
Eu
lha deixo resumida.
O
principal escopo destes artigos, cuja edição agora se inicia, é trazer de novo
a debate a incontornável figura de Cid Teles, alertando para a importância do
seu estudo, muito especialmente nas escolas do Ensino Básico e Secundário, bem
como entre os próprios investigadores.
Vale
sempre a pena regressar às obras do poeta. Vale mesmo a pena requisitar os seus
livros na Biblioteca Municipal de Oliveira do Hospital (no Largo Ribeiro do
Amaral) e rentabilizar os momentos de descanso, para revisitar o autor do
notável e libertário soneto “Sou como sou”:
Sou como sou, e
não me importo nada
Que este ou aquele
não goste do que eu sou.
Sei o que quero, e
aonde quero vou,
A passo firme e
fronte levantada!
Amo essa mão
estranha, ignorada,
Que do destino as
linhas me traçou,
E dos outros
diverso me tornou,
Dando-me esta alma
inquieta de nortada!
Louco! Poeta! E
que me importa a mim?
Tantos falando
porque eu sou assim,
Tantos dizendo o
que eu devia ser…
Sou como sou! E
sinto até vaidade,
Quando posso
gritar esta verdade:
Sou
como sou, e assim hei-de morrer!
Vale
a pena passar pelo memorial consagrado ao poeta, na Praceta Manuel Cid Teles,
em Oliveira do Hospital, e determo-nos nas suas palavras. Afinal, sempre que
regressamos aos locais por onde vagueou um poeta, os versos adquirem outro
significado. O verbo faz-se sangue.
O
património histórico de uma terra também se estende aos trilhos literários dos
seus cidadãos e o vasto concelho de Oliveira do Hospital possui, neste âmbito,
um prolífico e surpreendente conjunto de exemplos que bem merecem continuar a
ser estudados e divulgados. Cid Teles é apenas um dos possíveis exemplos, para
figurar nesse roteiro histórico-literário concelhio que tanta falta nos faz e
para a elaboração do qual tão prementes seriam os comentários, as sugestões e
as correcções de todos os leitores, rentabilizando, assim, as fantásticas
oportunidades que as novas tecnologias podem abrir-nos. Por isso, caro leitor, não
hesite e deixe também o seu testemunho pessoal a respeito de Manuel Cid Teles…
Renato
Nunes (renato80rd8918@gmail.com)
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