Luís
Bigotte Chorão deu à estampa, em 2009, A
crise da República e a Ditadura Militar, estudo que lhe permitiu obter o
Doutoramento em História, pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.
Com um total de 960 páginas, o livro encontra-se estruturado em duas partes: na
primeira, o historiador reflecte sobre os motivos que estiveram na origem da
crise da I República (1910-1926), enquanto na segunda parte procura compreender
o modo como a Ditadura Militar (1926-1933) colocou ao seu serviço os
instrumentos jurídicos, destacando-se a este respeito a acção do Ministro da
Justiça e dos Cultos Manuel Rodrigues Júnior. Trata-se, afinal, de um conjunto
de aspectos fundamentais para compreender as circunstâncias que conduziram ao
Estado Novo (1933-1974).
Sem ter a estulta pretensão de
querer resumir aqui quase 1000 páginas de um estudo monumental, sério e
minucioso, partilha-se de imediato algumas ideias, mais com o objectivo de incentivar
a leitura do trabalho em causa.
I – A obra tem subjacente um esforço
meritório, quer no que diz respeito ao levantamento das fontes primárias, quer
ao nível dos estudos já realizados. Abrange o espaço nacional (continental e
insular), não integrando as colónias. Constitui, por conseguinte, um trabalho
de referência para todos aqueles que se proponham estudar, em especial, o
período nacional balizado entre 1910 e 1933.
II – Do ponto de vista editorial,
teria sido importante condensar as ideias, de modo a dar à estampa uma obra
mais acessível ao grande público, com um tempo médio disponível para a leitura
(infelizmente) cada vez mais reduzido. Não se justifica de todo a existência de
notas de rodapé e citações com a extensão das que são apresentadas. Mesmo
pensando num nicho de especialistas, teria sido preferível proceder a um
trabalho de síntese e disponibilizar depois, em jeito de apêndice documental,
uma amostra de elementos considerados pertinentes. Esse exercício permitiria
libertar o texto principal de dados acessórios, que em nada contribuem para uma
leitura fluente e para uma compreensão cabal das ideias do autor. E aqui
referimo-nos, sobretudo, às teses que Bigotte Chorão pretendeu demonstrar, e
que nem sempre são claras. Por vezes, o leitor sente-se de tal modo embrenhado
nos inúmeros acontecimentos descritos que se revela muito difícil não perder a
visão de conjunto.
III – Segundo Bigotte Chorão, a I
República criou, logo na sua fase inicial, as condições propícias para a sua
posterior “decadência”. Aos factores habitualmente invocados nos manuais de
História (v.g., ataques dos
monárquicos à I República; perseguições aos católicos levadas a cabo pelos
republicanos, sobretudo na fase inicial; inexistência do sufrágio universal;
contexto de atracção pelos modelos autoritários/totalitários europeus;
consequências da participação de Portugal na I Guerra Mundial), Bigotte Chorão associa
ainda a “inutilização” do Presidente da República. Ou seja, segundo este
historiador (jurista, de formação base), o facto de o Presidente não possuir o
poder moderador (que lhe permitiria dissolver as câmaras) teria contribuído
para que fosse incapaz de resolver a instabilidade política, que depois
conduziria à sucessiva queda dos governos. Todavia, importa dizer que esta
tese, embora tentadora, não nos parece de todo bem fundamentada, até porque
existiram outras circunstâncias que também contribuíram para a crise da I
República e que não são invocadas pelo aludido historiador. Desde logo, a falta
de uma alargada base social de apoio do novo regime implantado em 1910 (João
Medina recupera a este respeito o sintomático fenómeno da “adesivagem”, que lhe
permite sustentar uma “República frustrada ao nascer”).
IV – Bigotte Chorão esforça-se por destacar
a ideia segundo a qual a Ditadura Militar não começou com Salazar, sendo que
este apenas influenciou, verdadeiramente, os acontecimentos a partir de 1928,
enquanto Ministro das Finanças, e sobretudo após 1932, na qualidade de
Presidente do Conselho. Não se trata de todo de uma tese original, embora nos
pareça de facto muito pertinente alertar para a importância de separar os
conceitos de Ditadura Militar, Ditadura Nacional e Estado Novo. Algo que nem
sempre sucede, pois até Irene Flunser Pimentel – uma das historiadoras
contemporâneas nacionais mais consagradas – pretendeu abranger todo o período
de 1926 a 1974 sob o título História da
Oposição à Ditadura. Outrossim, a chamada de atenção a respeito da acção
nevrálgica desempenhada por Óscar Carmona também merece realce.
V – Na segunda parte do seu estudo,
Bigotte Chorão, enquanto jurista de formação base, detém-se na acção de Manuel
Rodrigues Júnior, na qualidade de Ministro da Justiça e dos Cultos (1926-1928)
e como Ministro da Justiça, já durante o Estado Novo salazarista. Esta
tentativa de fazer dialogar a História e o Direito afigura-
-se-nos muito pertinente, embora a especificidade de determinadas matérias abordadas torne, por vezes, o discurso demasiado hermético. Num estudo desta extensão, ter-se-ia justificado, como já escrevemos, um esforço de síntese, bem como a introdução de momentos de paragem, nos quais se fossem apresentando as principais conclusões e apontando as ideias a testar nos capítulos seguintes. A introdução de algumas notas biográficas a respeito de Manuel Rodrigues Júnior, logo a abrir a parte II, teria sido bastante útil para o leitor.
-se-nos muito pertinente, embora a especificidade de determinadas matérias abordadas torne, por vezes, o discurso demasiado hermético. Num estudo desta extensão, ter-se-ia justificado, como já escrevemos, um esforço de síntese, bem como a introdução de momentos de paragem, nos quais se fossem apresentando as principais conclusões e apontando as ideias a testar nos capítulos seguintes. A introdução de algumas notas biográficas a respeito de Manuel Rodrigues Júnior, logo a abrir a parte II, teria sido bastante útil para o leitor.
VI – Em jeito de síntese, a obra resulta
de um esforço hercúleo, divulga aspectos inovadores, é apresentada numa edição
muito cuidada (quase expurgada de gralhas) e contribui para renovar a perspectiva
vigente sobre o complexo período abordado. E aqui não poderemos deixar de
recuperar a tese segundo a qual teriam sido as próprias desinteligências entre
os vários grupos que fizeram o 28 de Maio de 1926 a justificar depois a
sobrevivência do regime ditatorial (uma ideia claramente alicerçada na própria
Biologia, que há muito vem demonstrando a importância da diversidade). Enfim, para
o bem e para o mal, o estudo aqui recenseado faz já parte de um tempo
pretérito, no qual as investigações conducentes à obtenção de um grau académico
implicavam a reunião de centenas ou mesmo milhares de páginas, nas quais, no
entanto, nem sempre era evidente a tentativa do autor em manter-se focado nas
teses essenciais a demonstrar. Esta é, segundo cremos, a principal desvantagem
desta obra de referência para todos aqueles que se interessam por este período.
Renato
Nunes (renato80rd8918@gmail.com)
Sem comentários:
Enviar um comentário