Confessou-me
recentemente um octogenário, com o qual tenho vindo a aprender outro
significado de ser jovem:
“– Grande parte do que sou fica a
dever-se ao romance de Máximo Gorki, A
Mãe. Foi com ele que abri os olhos para começar a compreender o mundo”.
Como se pode calcular, depois de
chegar a casa, não resisti e mandei vir o revolucionário livro do escritor
russo. Cerca de uma semana depois, ultrapassada a última página, senti que
conseguira compreender um pouco melhor o percurso cívico daquele homem de
longos cabelos brancos, nascido na década de 30, atraído pela ideologia
comunista na luta contra o Estado Novo. Um autodidacta, a quem a vida roubou a
possibilidade de estudar de modo formal, mas, ainda assim, sempre marcado por
uma vontade imensa em compreender e transformar a sociedade em que vivia. Por
isso, nunca se cansou de criar bibliotecas públicas, de dirigir e colaborar nas
mais variadas instituições culturais da comunidade local, de praticar desporto,
escrever, ler, conviver...
Ora, dificilmente se poderá hoje
compreender um indivíduo sem conhecer de antemão os livros que mais o marcaram,
bem como as grandes referências universais da sua vida ou, por exemplo, as
relações interpessoais que travou. Serve isto para tentar dizer que, nesta era
do digital, um dos grandes desafios que se coloca à Escola é conseguir voltar a
colocar os livros nas mãos dos seus alunos. E a partir da leitura promover
depois momentos de partilha oral e escrita (neste último caso, os jornais
escolares constituem uma ferramenta fulcral). O que pressupõe tempo para
amadurecer as ideias e aprender a não ter medo de errar e ousar pensar. Sem
erro não pode haver pensamento.
Os jovens portugueses não têm hoje
menos capacidades do que os seus homónimos do passado. Antes pelo contrário. O
problema é que as crianças e os jovens de hoje são o fruto de uma época em que
o sistema educativo, logo no primeiro ciclo (antiga “Escola Primária”), foi
transformado na antecâmara da universidade. Eles são o fruto de uma época
alucinante, atravessada pela pandemia das dependências digitais, que
recorrentemente matam o tempo e o silêncio, pré-requisitos fundamentais ao
pensamento, à criatividade e à criação de efectivos laços interpessoais.
Enquanto aluno e professor, as experiências
que mais me marcaram resultaram quase sempre de estratégias aparentemente
simples, mas muito bem planeadas. Uma delas, que nunca mais vi replicada,
consistia em consagrar no calendário um dia da semana à leitura. Assim, no
âmbito da disciplina de Português, os alunos saíam da sala em pequenos grupos,
dirigiam-se à biblioteca e depois de requisitarem um livro, à sua escolha,
regressavam à sala, onde permaneciam o resto do tempo, simplesmente, em
silêncio, a ler. Cerca de dez minutos antes de soar a campainha, iam devolver
as obras e na aula seguinte apareciam com um breve texto ou um desenho
inspirados na leitura realizada. A dinâmica foi ensaiada pelo professor logo
nas aulas iniciais, com a imposição de regras muito claras, e a verdade é que
ao longo de todo o ano lectivo nunca se registou qualquer incidente. Excepções,
dirão os mais pessimistas…
Dou por mim muitas vezes a pensar
que o historiador do futuro, que um dia se debruce sobre a nossa época e o
sistema educativo em particular, ficará, por certo, admirado com a nossa
ambição em criar professores universitários logo no primeiro ciclo. A
quantidade e a densidade de conteúdos são de tal modo avassaladoras que as
explicações extra-curriculares são cada vez mais uma necessidade, logo a partir
do 1.º ano. Não, não exagero! Infelizmente, o sistema educativo é cada vez mais
um meio de perpetuar o poder das classes privilegiadas (Pierre Bourdieu) e
transformar a pobreza numa herança quase irreversível.
Esta é, porém, apenas a ponta de um
icebergue, ou seja, um elo de uma tendência muito mais vasta, da qual não se
pode dissociar a aberração do Novo Acordo Ortográfico, cujos malabaristas socráticos
deixaram há muito, curiosamente (ou talvez não), de abençoar publicamente o “admirável
mundo novo” que ajudaram a criar (leia-
-se, o caos do “aspeto”, da “ata”, das “endorreativas”, do “perentório”, do “infantojuvenil” e quejandas preciosidades que para aí circulam).
-se, o caos do “aspeto”, da “ata”, das “endorreativas”, do “perentório”, do “infantojuvenil” e quejandas preciosidades que para aí circulam).
O
monstro, é certo, não reside apenas em Portugal, ele estende os seus
tentáculos, pelo menos, à chamada cultura ocidental. E se há alguma palavra que
pode definir esse movimento ela terá de ser a indiferença.
Deste crescente isolamento cívico,
numa época obcecada em matar o silêncio e o vazio, decorre uma progressiva
campanha de morte ao pensamento. E se as pessoas reflectem cada vez menos, há
também uma crescente dificuldade em separar o essencial do acessório, a verdade
da mentira. Esvaziado das ferramentas que poderiam ajudar cada indivíduo a
construir, em função do outro, a sua própria narrativa para conferir sentido à
existência, o indivíduo entra num círculo vicioso de esquecimento.
Esquecer torna-se o resultado quase
inevitável de um processo vertiginoso. E quando, pelas mais variadas
circunstâncias da vida (v.g., morte
de um ente querido), o sujeito entra em confronto com esse vazio, tende
rapidamente a preenchê-lo, entretendo-
-se, ou seja, distraindo-se de si mesmo. Por isso é que muitos jovens já não conseguem viver afastados do smartphone. A vertigem provocada pelo vazio do abismo à frente dos pés tornar-se-ia insuportável.
-se, ou seja, distraindo-se de si mesmo. Por isso é que muitos jovens já não conseguem viver afastados do smartphone. A vertigem provocada pelo vazio do abismo à frente dos pés tornar-se-ia insuportável.
Vários autores, como Habermas,
invocaram o conceito de “presentismo” para sustentar, em traços gerais, que o
Homem contemporâneo, desligado do passado e do futuro, vive apenas no seu
instante imediato. Segundo creio, a tendência mais geral é para que o indivíduo
assuma uma experiência ainda mais radical com o tempo: ausentando-se, numa
espécie de alienação permanente.
Vivemos na era da indiferença, o
produto de uma época progressivamente esvaziada de referências, horrorizada
pelo silêncio e temerosa do pensamento próprio (os comentadores que para aí
proliferam são pagos para pensar pelos outros).
Regressar aos livros e, em especial,
aos grandes clássicos é uma das opções para colocar alguma ordem nessa estrada
da morte, onde ainda circulamos quase todos de olhos vendados. E numa época com
tanta transformação científica e tecnológica, marcada pela aceleração do tempo,
urge aprender a abrandar, “ouvir” e interrogar o silêncio, sem o qual a vida,
sublinhe-se, perderia grande parte do significado…
Renato
Nunes (renato80rd8918@gmail.com)
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