Em 1943, o escritor neo-realista Manuel da Fonseca (1911-1993) apresentou o seu romance Cerromaior à censura prévia. A análise da obra ficou a cargo do capitão Silva Dias.
Cerromaior é um livro que colheu as suas raízes na realidade alentejana, das décadas de 30 e 40 do século XX. Como escreveu Mário Dionísio: “Manuel da Fonseca nasceu para revelar o Alentejo” (Fernando Rosas e J. M. Brandão de Brito, direcção — Dicionário de História do Estado Novo, p. 366). Importa, de resto, não esquecer que Manuel da Fonseca tem as suas origens em Santiago do Cacém, no distrito de Setúbal.
Com um total de aproximadamente 250 páginas, Cerromaior narra o percurso de Adriano, que, apesar das suas origens burguesas, foi gradualmente tomando consciência da injusta divisão do mundo entre os que obedecem e os que mandam e acabou mesmo por decidir colocar-se ao lado dos mais pobres e oprimidos. Pobres e explorados camponeses, aos quais ouvira relatar pungentes histórias de vida: “Olhe… nós éramos seis irmãos e a minha mãe passava fome por mor da gente. E o meu pai, quando chegava do trabalho, começava a ralhar e acabava a bater-lhe. Encolhidos a um canto, a gente chorava. Mais tarde, o meu pai deu em beber e abandonou o trabalho. Um dia, desapareceu; nunca mais voltou. E a minha mãe, que era doente, passou a ir à monda, à ceifa e a tudo o que aparecia. Depois, a minha mãe morreu…” (Manuel da Fonseca — Cerromaior, p. 184).
A descrição da situação vivida pelos ceifeiros aquando dos intensos trabalhos nos campos alentejanos, na canícula de Verão, é igualmente dramática: “Autómatos, os homens lançavam a foice. Cabeças tombadas, bocas abertas, barbas crescidas, pingando suor. Suor amargo na boca e nos olhos, escorrendo entre a pele e a roupa, empapando tudo. Um formigueiro a borbulhar da testa e a foice ia e vinha. / O manajeiro olhava ainda o relógio” (Manuel da Fonseca — Cerromaior, p. 166). Ao longo do enredo, destaca-se também a história de Doninha, antigo carteiro local, que acabou por enlouquecer e que depois foi preso, tal como um criminoso. Um episódio que levou um homem do Povo a protestar: “Não está certo. Digo e repito: leve-se para o hospital, para o manicómio; para a cadeia, não. Bolas! Não matou, nem roubou (Manuel da Fonseca — Cerromaior, p. 195). Ora, esta contundente crítica, sintomaticamente colocada pelo narrador na boca de um dos anónimos do Povo, denunciava um dos dramas da saúde psiquiátrica, durante o Portugal salazarista: a falta de respostas clínicas levava ao encaminhamento destas complexas situações para a polícia e frequentemente para a mendicidade nas ruas (Susana Pereira Bastos — O Estado Novo e os seus vadios, ps. 263 e 266). E a descrição do narrador acompanha-nos, sempre que pensamos na imagem da noite cerrada, na vila de Cerromaior, a ser invadida pelo grito de desespero do encarcerado: “Era a espantosa imagem do Doninha, todo nu por detrás das grades da cadeia, uivando para a vila” (Manuel da Fonseca — Cerromaior, p. 206).
Cerromaior denuncia também a situação vivida pelas mulheres, vítimas dos permanentes abusos por parte de uma sociedade profundamente machista, como bem o demonstra o exemplo da criada Antoninha, alvo de uma tentativa de estupro e imediatamente despedida... Uma sociedade na qual os homens derretiam na taberna quase todo o dinheiro que, dolorosamente, ganhavam, para depois, frequentemente, espancarem as esposas já em casa, onde reencontravam a nua realidade dos filhos com fome. Uma sociedade marcada pela palmatória na escola, pelos abusos dos poderosos patrões perante a fragilidade dos dependentes empregados sazonais, como bem evidencia o abate (a tiro) da cadela de João Codesso, após este se ter recusado a vender ou dar o pobre animal ao terratenente Carlos Runa, ou ainda os despedimentos de Maltês e de Toino Revel, motivados pelos meros rumores de que eles teriam publicamente denegrido a imagem do patrão. Uma sociedade, afinal, onde os mais pobres não podiam ter opiniões: “São como um rebanho: pedrada nos cornos, e boca calada” (Manuel da Fonseca — Cerromaior, p. 213).
Ora, estas e outras matérias politicamente perigosas — o romance neo-realista encerrava mesmo com um acto de revolta de alguns camponeses — não poderiam ter passado despercebidas ao censor literário incumbido de analisar a obra. Eis as principais conclusões apresentadas pelo censor Silva Dias ao longo do seu relatório: “Este romance, tal como está concebido, não o julgo com possibilidade de ser autorizado”. E seguia-se a justificação: a obra em causa “apresenta ao leitor factos concretos que revelam profundas deficiências da estrutura social, entre nós. / A vida dura e miserável do trabalhador rural alentejano, a carência ao mesmo de assistência social, a indiferença do abastado pelo humilde que trabalha em seu proveito, cenas pornográficas e imorais efectuadas por pessoas de melhor condição, são neste romance postas em evidência, podendo concluir-se que o seu autor não mediu os perigos para a sociedade, de narrativas sobre pretensos preconceitos demolidores que levam os fracos ou os menos preparados a meditações condenáveis. / A descrição da desgraça a que chegou um antigo carteiro, que fora sempre zeloso e que enlouqueceu e foi levado para uma cadeia onde morreu, sem qualquer protecção das autoridades, dá-nos logo de começo uma má impressão do livro. / Depois espraia-se sobre a vida angustiosa do camponês, realçando-se as inúmeras agruras dos que vivem da terra, mais parecendo mendigos. As faltas de trabalho, a diferença, doentias, entre o patrão e o trabalhador e também exposições de atitudes indecorosas referentes aos amores clandestinos dum patrão, leva-nos à conclusão que inicialmente escrevi: o livro não deve ser autorizado, tal como é apresentado”. E, após mencionar que já tinha assinalado no original as passagens inconvenientes, acrescentou: “Um arranjo com o que fica, julgo tornar-se difícil, pelo sabor anti-social que pode ainda deixar transparecer” (EPHEMERA). No entanto, através de um posterior despacho superior (22/11/1943), o livro acabaria por ser autorizado, embora com cortes. Seria, de resto, interessante cotejar a versão inicialmente prevista por Manuel da Fonseca com os cortes solicitados pela censura, mas não se revelou, por enquanto, possível aceder a essas fontes (uma situação, de resto, muito comum quando se exploram os caóticos e dispersos arquivos da censura literária, durante o Estado Novo).
Seara do Vento foi outro dos romances escritos por Manuel da Fonseca que também foi analisado pela censura prévia. Em 1959, o censor literário coronel Fernando Salgado decidiu aprovar a sua publicação, mediante as seguintes conclusões: “ Retrata um meio rural, rude e de miséria, onde se sente formar o sentimento amargo e de revolta dos que se sentem escravos da terra e do patrão. […] / Parece-me, creio, que tudo isto tende a formar no juízo do leitor o sentimento de revolta contra a organização actual da sociedade. […] / É de deixar publicar, pois é do mesmo género explorado, há uns anos, pelos Fernandos [sic] Namora, Aquilino, etc., etc.” (EPHEMERA). Certo é que a reedição da mesma obra seria proibida em 1966, tendo como base, entre outros aspectos, os “novos elementos agora controlados sobre a tendência política do escritor e das suas possíveis ligações com o partido comunista” (Cândido de Azevedo — A censura de Salazar e Marcello Caetano, p. 608). A eventual ligação de Manuel da Fonseca ao Partido Comunista foi, por conseguinte, um dos motivos para justificar a interdição de um livro já anteriormente permitido, sublinhe-se, pelo mesmo censor (Cândido de Azevedo — Mutiladas e proibidas, p. 83)…
Manuel da Fonseca foi um dos mais destacados autores do neo-realismo português. Os dramas do mundo contemporâneo reclamam uma atitude mais interventiva, ainda que em novos moldes, de todos os cidadãos, nomeadamente dos intelectuais. Nesse sentido, o neo-realismo é uma lição que bem merece ser estudada, pelo que o reencontro com os seus autores revela-se uma necessidade premente…
Referências bibliográficas: Cândido de Azevedo — A censura de Salazar e Marcello Caetano. Imprensa, teatro, cinema, televisão, radiodifusão, livro, Lisboa, Caminho, 1999; Cândido de Azevedo — Mutiladas e proibidas. Para a história da censura literária em Portugal nos tempos do Estado Novo, Lisboa, Caminho, 1997; “Censura – despachos da direcção dos serviços da censura relativos a livros de Manuel da Fonseca”, EPHEMERA (26/6/2021); Fernando Rosas e J. M. Brandão de Brito (direcção) – Dicionário de História do Estado Novo, volumes I, 1.ª edição, Venda Nova, Bertrand Editora, 1996; Manuel da Fonseca — Cerromaior, 4.ª edição, Lisboa, Forja, 1976; Susana Pereira Bastos — O Estado Novo e os seus vadios. Contribuição para o estudo das identidades marginais e da sua repressão, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1997.
Renato Nunes (renato80rd8918@gmail.com)
1 comentário:
Um excelente texto que nos dá a conhecer a dura realidade do início do século XX.
O Renato já nos habituou a fantásticas obras sobre a censura aos livros no Estado Novo. Abriu-me o apetite para ler o livro Cerromaior que o tenho em casa dos meus pais.
Obrigado Renato
Tiago Sousa
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