À medida que
os anos se acumulam nos ossos, maior parece ser a necessidade que os Homens sentem
em recordar a própria infância. Num mundo em que tudo muda tão depressa, parece
ser fundamental acreditar que, pelo menos uma vez por ano, ainda subsiste uma
noite em que quase tudo continua a ser igual, sem, no entanto, nunca se tornar
banal. É a noite em que o Menino volta a nascer dentro de cada um de nós...
Talvez por
isso, agora que o Natal se aproxima uma vez mais, dou por mim a recordar aquela
época da meninice em que a minha avó São
me puxava para junto da lareira e me contava as histórias mais belas que algum
dia pude ouvir.
– O tio Chedas ― explicava-me a minha
saudosa avó ― vivia numa gruta do Algar, bem lá no meio da floresta…
― Numa
gruta, avó?!
― Sim, numa
gruta, imagina! Não digas a ninguém, mas contava-se cá em Vila Franca que ele
tinha ajudado a matar o rei Dom Carlos e, por isso, decidiu esconder-se por
aqui. Quem me contou isto foi a tua bisavó Ana, pois eu ainda era muito
pequenina quando tudo aconteceu …
― A avó
também já foi pequenina?!
― Sim, meu
tontinho, já fui. Há muitos, muitos anos…
― Ó avó, os
polícias nunca prenderam o tio Chedas?
― Parece-me
que não. A minha mãe contava-me que ele viveu cá até morrer e foi sepultado no
nosso cemitério.
― Mas ele estava
sempre escondido na gruta?
― Sim,
sempre na gruta. Apenas existia uma altura do ano em que ele se arriscava a
sair do covil…
― Era a
noite dos lobisomens, não era avó?! ― interrompia eu, de tão ávido que estava
com a chegada do sempre surpreendente desenlace, que a minha avó dramatizava ainda
mais com o enigmático olhar das videntes.
― Não! Era a
noite de Natal. Os lobisomens ficarão para outra história, uuuuuu…
― A noite de
Natal? ― perguntava eu, enquanto me continuava a desfilar pela imaginação
aquele som do uuuuuu… Até hoje, nunca
conheci ninguém que imitasse o vazio do medo tão bem como a minha avó.
O tio Chedas
― como a avó São lhe chamava ― usava
uma longa barba branca e coxeava ligeiramente. Embora eu nunca tivesse
realmente acreditado que ele ajudou a matar o rei em 1908, certo é que ainda
hoje, lá na minha aldeia nativa, existem pessoas que me asseguram que ele viveu
na gruta do Algar, sempre escondido, tendo apenas como companhia os coelhos que
ia criando e que depois se compadecia de matar para comer.
Recordava-me
a minha avó que todas as madrugadas do dia 25 de Dezembro o tio Chedas
abandonava as galerias subterrâneas e vinha sentar-se junto à fogueira que
ainda agora se acende no adro da capela. Depois de aquecer os pés e as mãos,
caminhava solitariamente pelas gélidas ruas da povoação, revisitando cada casa
adormecida na memória.
Lá na
aldeia, as pessoas passaram a conhecer-lhe esse ritual e habituaram-se a
aguardar silenciosamente a sua passagem, espreitando-o por entre as frinchas
das pedras. Nessa época de tanta fome, não havia iluminação, quer nas casas,
quer nas ruas, e, por isso, apenas lhe pressentiam a sombra, cada vez mais
contorcida e derreada pela caudalosa passagem dos invernos.
Alguns
conterrâneos, talvez porque a consciência lhes pesasse mais naquela altura do
ano, começaram a deixar-lhe, pendurado nas portas, um saco com o pouco que lhes
sobrara da ceia de Natal. A minha bisavó, que era forneira de profissão, guardava-lhe
sempre uma côdea de pão de milho para que depois, algures pela madrugada
dentro, ele pudesse fazer a consoada ao lado dos coelhos que criava, a única
família que ainda lhe restava.
Ao longo da
meninice, ano após ano, fui ouvindo cada vez com maior espanto a fabulosa narrativa
do tio Chedas e da sua enigmática gruta (ou mina, como tantas vezes ouvi dizer)
no Algar. Ainda hoje, decorridas que são mais de três décadas, me arrepia só de
pensar na imagem deste homem solitário a caminhar pelas ruas escuras da minha
aldeia nativa, em busca do calor do Natal, para depois se refugiar nas
intermináveis profundezas. E logo nessa noite tão transcendente, ao longo da
qual todas as feridas se avivam e se revisitam intensamente alguns dos
esqueletos que trazemos escondidos na alma…
Este conto é
dedicado a todos os anónimos da História que continuam a ajudar os seus
semelhantes a encontrar a estrela de Natal, mesmo nas circunstâncias mais dramáticas
desse profundo mistério cósmico ao qual damos o nome de vida.
O brilho de Natal também faz parte
dessas ilusões sem as quais a vida se tornaria insuportável. E escrever este
conto é talvez a forma mais sentida que eu ainda possuo para desejar a todos os
leitores um Santo e Feliz Natal.
Renato Nunes (renato80rd8918@gmail.com)