Stanley
Kubrick produziu e dirigiu, em 1980, um perturbador filme de terror intitulado The Shining, no qual Jack Nicholson
desempenhou, de um modo magistral, o papel de Jack Torrance, um escritor, com
problemas alcoólicos.
Ao
arranjar trabalho num misterioso hotel que, no auge do Inverno, permanecia
isolado, Jack parecia ter encontrado também o tempo livre e a solidão que o
ajudariam a escrever um livro. Porém, começou a ter visões e, aparentemente influenciado
por uma presença sobrenatural, enlouqueceu, chegando mesmo a tentar assassinar
a mulher e o filho.
Ora, segundo creio, este filme de
terror parece traduzir o que se passa actualmente em Portugal, no âmbito de
vários ministérios, com particular destaque para a Educação e a Saúde. Para
compreender os motivos que nos conduziram a este ponto é fundamental ter em
consideração vários aspectos.
I
– a corte de Luís XIV.
Os ministérios políticos que por aí
proliferam transformaram-se num mundo obscuro, onde vão subsistindo milhares de
funcionários politicamente arregimentados na situação. Ávidos de mostrar
serviço e receosos de regressar à profissão de origem, procuram criar
documentos e mais documentos, como se o mundo dependesse deles para continuar a
sobreviver. Por isso, vociferam, “é bom que as leis durem pouco tempo e sejam
substituídas por outras que já estão na forja”.
Esta
massa de burocratas foi, progressivamente, deixando de funcionar como um todo e
hoje representa apenas um conjunto de partes divididas em gabinetes distintos,
que em situações muito excepcionais lá são mobilizadas para a cerimónia do
beija-
-mão. Enfim, eis a corte de Luís XIV, com as suas características intrigas palacianas e redes tentaculares, adaptada à actualidade nacional.
-mão. Enfim, eis a corte de Luís XIV, com as suas características intrigas palacianas e redes tentaculares, adaptada à actualidade nacional.
II
– a síndrome do gabinete.
Isolados, estes funcionários
públicos, que actuam como inspectores morais da Nação, perderam completamente a
noção da realidade. Com a caneta, uma folha e meia dúzia de teorias
estapafúrdias colhidas nas esotéricas escolas das ciências da educação que para
aí proliferam as ideias brotam-lhes como cogumelos venenosos. “Iluminados” (Shining), começam a ouvir vozes: (“Olhai
todos: este é o caminho do futuro”). Empreendedores, não têm dúvidas ou
hesitações. Claro está, quem, ingenuamente, cai
no erro de contraditá-los é visto como um incompetente, que cometeu o pecado
mortal de não ter assimilado as admiráveis oportunidades da ambígua legislação,
esse vasto mundo de indefinições onde pode caber tudo e precisamente o seu
contrário, ou seja, nada...
III
– acelerar o futuro.
“O
futuro das competências está ao virar da esquina”, proclamam os teóricos da “nova
educação”, como os gurus da auto-ajuda, os vendedores de banha da cobra, os
videntes ou os cartomantes. Esse futuro será tão diferente do mundo que
conhecemos que os saberes tradicionais de pouco ou nada nos valerão, afinal as
profissões mudarão por completo. De que adianta memorizar datas, conhecer a
tabuada de trás para a frente ou estimular a memória? A inteligência artificial
obriga-nos a percorrer um admirável caminho novo. Não vale a pena dizer que
esses trilhos conduzem à profunda ignorância, pois Eles jamais nos irão ouvir.
Eles são como deuses e os deuses não se desmentem ou contrariam. Veneram-se,
com as costas curvadas e os olhos postos no chão.
Na verdade, ontem, como hoje,
ninguém sabe como será o futuro. E ainda bem que assim é. No entanto, a
sistemática desvalorização do conhecimento substantivo, da exigência, do
trabalho e do estudo, em detrimento de um facilitismo reinante que permitirá a
todos – sem excepção – concluir o 12.º ano (sem a mácula das dispendiosas
retenções), implicará, numa perspectiva de médio e longo prazo, consequências
catastróficas: agravamento dos desequilíbrios sociais e criação de uma
sociedade constituída por indivíduos egoístas e incapazes, mas convictos de que
são infalíveis e inquestionáveis e, por isso, mal preparados para lidar com a
frustração e o insucesso próprios da vida. Cada vez mais, o berço determinará a
posição social que se ocupa na pirâmide, por muito que as mais recentes leis
(ditas) “inclusivas” sustentem o contrário e pretendam, utopicamente, acabar
com todas as categorizações. Estes são, sem margem para dúvida, tempos de
profundas exclusões.
Por outro lado, os profissionais que
perseguem a excelência, nos mais variados sectores do Estado, aqueles que de
facto vivem com maior angústia toda esta trapalhada legislativa, sentem-se cada
vez mais sufocados, desgastados e desmotivados, ao ponto de mal dormirem ou
entrarem em processo de falência mental (burnout).
É
bom recordar que assassinar alguém não implica apenas sacar do revólver ou
dissolver veneno na comida. Em Portugal, a excelência é cada vez mais
destruída, privilegiando-se os arrivistas, capazes de lamber as botas a todos
os focos do poder. Eles representam a face visível de um sistema podre, que
esconde os doentes nas macas arrumadas a um canto do corredor e, entre outros
exemplos, insiste em considerar as touradas como produtos culturais que importa
financiar.
III – o Leopardo.
Giuseppe
Tomasi di Lampedusa deixou-nos um dos romances mais notáveis que tive
oportunidade de ler. O Leopardo,
inicialmente recusado por várias editoras, desenrola-se na segunda metade do
século XIX, na época da luta pela unificação de Itália. Em 1963, foi minuciosamente
adaptado ao cinema por Luchino Visconti e ainda hoje tem uma “actualité
brûlante”.
A personagem central, D. Fabrizio, príncipe de
Salina, um aristocrata italiano, consegue revelar a inteligência e a intuição
suficientes – mas raras – para interpretar os sinais do seu tempo e
perspectivar a agonia de uma civilização (que ele, enquanto nobre,
representava), em detrimento da emergente, pautada pela afirmação da burguesia.
Para além da solidez psicológica, D.
Fabrizio toca-me profundamente, em especial pela sua capacidade de análise, isto
apesar de estar dentro dos próprios acontecimentos, que, como quase sempre
sucede, evoluem de um modo surpreendentemente vertiginoso e incontrolável. A consagrada
máxima, inicialmente proferida por Tancredi (sobrinho e protegido de Fabrizio,
futuro deputado a quem, reflicta-se, será prometida uma legação em Lisboa),
tornar-se-á um dos lemas do príncipe de Salina, até aos últimos dias da sua
vida: “É preciso que tudo mude, se quisermos que tudo fique como está”. E é
isso que ele procurará fazer: garantir que, no novo mundo, o seu sobrinho (a
quem ele ama como um filho) perpetue, embora de um modo renovado, o poder e o
prestígio da família.
Talvez esta lição de um homem, que
sente a vida a esvair-se-lhe irremediavelmente das veias, possa ainda hoje
servir-nos, de algum modo, nestes tempos em que assistimos ao inevitável
estertor de uma civilização e ao nascimento de outra, que não augura nada de
bom (“depois do Leopardo virão os chacais”). Neste momento, talvez a maior
resistência que possamos oferecer aos comportamentos psicóticos daqueles que
nos governam (não, já não é apenas uma questão de ignorância) deva passar pelo
bom senso de, enquanto classes profissionais, recordar diariamente que aderir
não significa participar...
Num dos seus mais recentes livros (Homo Deus. História Breve do Amanhã), o historiador
Yuval Noah Harari diz-nos que inteligência e consciência não são sinónimos.
Talvez a segunda, individual, nos possa ainda salvar da falta de inteligência e
dos comportamentos psicóticos daqueles que nos governam. Ainda iremos a tempo?
Renato
Nunes (renato80rd8918@gmail.com)
1 comentário:
Renato agradeço o teu texto. O crescimento da burocracia sufoca quem verdadeiramente quer trabalhar. Revejo-me nas tuas palavras pois sinto que os alunos saem da escola sem autonomia para enfrentar o mercado de trabalho.
Tiago Sousa
Enviar um comentário