Todos
os domingos, depois da missa matinal, os garotos lá da aldeia juntavam-se no
clube para jogar matraquilhos e roubar um beijo às gaiatas. Ricardo, porém,
raramente brincava com os seus colegas e, cerca de uma hora antes de amanhecer,
partia com o pai na icónica 4L castanha, em direcção ao rio Mondego.
Naquele
tempo, já lá vão mais de 30 anos, o pimpão vermelho inundava as águas ainda
límpidas e os pescadores ansiavam por chegar a casa com o balde cheio de barbatanas-vermelhas
para reclamar junto das patroas o suculento molho de escabeche. Esse manjar dos
deuses, que os beirões de outros tempos conheciam como ninguém.
Ricardo
fez-se poeta junto às margens do Mondego, para onde fora arrastado, tantas
vezes quase a dormir, durante anos a fio. Aqueles que já assistiram ao nascer
do sol, sentados ao lado das águas serpenteantes, dificilmente poderão esquecer
esses momentos sagrados. À medida que o negro da madrugada se dissipa, o rio
assume a forma de uma envergonhada noiva que, lentamente, vai despindo o véu,
até desnudar a cara. O frio gela-nos o sangue, mas o silêncio é tão profundo
que a eternidade parece revelar-se mesmo ali à nossa frente. Então, encobertos
por uma espécie de cápsula do tempo, tornamo-nos imunes a quase todas as tragédias.
O
pescador – diz a gíria popular – é, habitualmente, um efabulador (repare-se que
não digo mentiroso):
“–
Ontem, apanhei um achigã com 20 kg!” – e os companheiros, sabedores das manhas
da faina, lá relativizam os números, enquanto os mais desprevenidos ficam de
queixo caído, pensando num tal enigmático monstro das águas subterrâneas Porém,
o pescador é também, vulgarmente, um dos mais introspectivos seres que
poderemos encontrar à face da Terra. Verdadeiro filósofo, atrever-me-ia mesmo a
concluir.
Para
compreender Ricardo era forçoso tomar em consideração as intermináveis horas
que este passara junto ao rio, a ouvir o seu silêncio corrente. Verdade seja
dita que ele nunca foi um grande pescador. Distraído como era, raramente pressentia
a bóia a afundar-se nas águas profundas e, por isso, quando, finalmente,
despertava para a realidade já o peixe comera as iscas colocadas no anzol:
bichos das mais variadas espécies, trigo, milho, massa ou até, imagine-se, pão,
cuidadosamente repartido em pequenas bolinhas. É certo que o pai bem tentava
dar-lhe uns carolos, para ver se o acordava para a realidade, mas o raio do
rapaz raramente conseguia concentrar-se na pescaria. Poucos minutos depois de
ter a cana na mão, já a sua cabeça viajava para outros continentes e planetas
longínquos, sendo quase impossível trazê-lo de volta.
Era,
precisamente, no momento do regresso a casa que Ricardo mais sentia o abismo
que o separava dos seus pares. Os outros transportavam os baldes repletos de
peixe, enquanto Ricardo raramente se estreava. Nesses instantes em que todos
comparavam os troféus, o pai castigava-o severamente, humilhando-o em frente
aos colegas. E nada lhe doía mais do que aquelas terríveis palavras, para
sempre inscritas na alma:
“–
Não vales nada. Todos tiram peixes, menos tu. Olha para esse balde… vazio como
a tua cabeça”.
Fruto
das suas circunstâncias, Ricardo passou então a tornar-se um menino cada vez
mais triste e solitário. Tão triste e solitário que, por vezes, apenas o rio
lhe servia de consolo. E foi muitas vezes ao rio que ele confiou a sua história
e o terrível drama em ser tão distraído e diferente.
O
menino não sabia (como poderia imaginá-lo?), mas era um poeta e um aprendiz de
filósofo. Interessado em tudo o que o rodeava, imaginava-se a cavalgar em cima
das nuvens, convocava todos os seres das profundezas do rio e quando menos se
precatava já estava a léguas e léguas de distância, confiando ao infinito as
mais surpreendentes perguntas.
Um
dia, já lá vão mais de 30 anos, Ricardo chegou ao Mondego ainda mais triste do
que o habitual. A sua mãe acabara de falecer e um vazio profundo apoderara-se-lhe
do espírito. Por isso, naquela madrugada, ao contrário do que sucedia nos
outros dias, Ricardo abandonou a cana junto às margens, em cima de um salgueiro,
e sentou-se a contemplar silenciosamente o vazio das águas. As lágrimas
escorriam-lhe pela face, caindo nas mãos e alagando-as torrencialmente.
Sozinho, afastado dos demais, o menino confundia-se de tal modo com a paisagem,
que até os guarda-rios se aproximavam dele e as distraídas rãs vinham aninhar-se
a seu lado, a coaxar demoradamente.
Naquele
dia, foi apenas a poucos instantes do regresso que Ricardo decidiu colocar uma
minhoca no anzol e atirar a linha para a água. Contudo, assim que o fez, a bóia
deu um violento tropeção, afundando-se imediatamente nas profundezas. De
imediato, Ricardo imprimiu um pequeno esticão na cana e começou a recuperar
lentamente a linha. Depois, quando o peixe estava mesmo a chegar à beira, o
menino levantou o braço. Sem compreender muito bem como, viu então um enorme
barbo, de longos bigodes e boca profundamente escancarada, a saltitar no chão. De
cá para lá, de lá para cá… enquanto o tempo parecia ter parado.
Ricardo
olhou demoradamente o majestoso peixe e sorriu. Do outro lado, chegavam,
entretanto, os primeiros vultos espantados com o tamanho de tal gigante a
estrebuchar em terra. Foi a primeira vez que o menino conheceu o orgulho de ter
alcançado algo admirável.
Há
muitos anos, alguém me disse que o rio ouve sempre o que lhe segredamos. Por
vezes, sempre em silêncio, sacrifica mesmo alguns dos seus filhos para
recompensar com um sorriso os que mais sofrem, apesar de nunca termos aprendido
a respeitá-lo.
Vale
sempre a pena regressar às margens do rio da nossa infância para escutar a voz
que nos habita nas mais recônditas profundezas da alma… Afinal, são esses
locais sagrados – autênticos santuários – que ainda nos podem salvar, não só
enquanto indivíduos, mas enquanto Humanidade.
Mondego
Águas
da meninice
Vinde
agora ouvir-me,
Afinal,
tudo o que já disse
Foi
este rio a contar-me…
Renato
Nunes (renato80rd8918@gmail.com)
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